Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro | Petrônio Domingues

Petronio Domingues
Petrônio Domingues | Foto: INFONET/Acervo pessoal

Em 2019, o livro Irmã outsider, da feminista negra estadunidense Audre Lorde (1934-1992), foi publicado no Brasil. Reunindo escritos das décadas de 1970 e 1980, a obra é, segundo Cheryl Clark (1947-), seu “trabalho em prosa mais importante”[1]. Um dos textos mais avassaladores da obra é Aprendendo com os anos 1960.  Bem, mas o leitor ou a leitora poderá estar se perguntando se este texto não é uma resenha sobre o livro do historiador brasileiro Petrônio Domingues – docente da Universidade Federal de Sergipe (UFS) –, Estilo Avatar. Sim, exatamente.

A leitura desta obra fez-me refletir sobre o conceito de militância presente no texto supracitado de Audre Lorde. Como mulher negra, lésbica, poeta e escritora, ela defendeu que a militância é, entre outras coisas, “trabalhar ativamente pela mudança, às vezes sem nenhuma garantia de que ela esteja a caminho. Significa fazer o trabalho tedioso e nada romântico, ainda que necessário, de formar alianças relevantes, significa reconhecer quais alianças são possíveis e quais não são”[2].

Na leitura deste livro, que tem como personagem central Nestor Macedo e a sua Ala Negra Progressista (ANP), foi inevitável não relacionar a atuação política deste afro-brasileiro com a reflexão de Audre Lorde. Já na introdução da obra o autor adverte ao seu leitor(a) que “[…] a ideia central deste livro é mostrar como, por um lado, a população negra no decurso da experiência democrática foi versátil, estabelecendo alianças e negociações com várias forças políticas”[3].

Para tanto, o autor retoma um conceito “polêmico” no campo das ciências sociais, o populismo. Cunhado nas décadas de 1960 e 1970, o termo pretendia, à época, explicar a relação assimétrica entre o Estado e as classes trabalhadoras no período de 1930 à 1964, no qual o “[…] populismo era, em última instância, uma forma de controle, que servia aos interesses, não dos trabalhadores, mas da classe dirigente”[4]. Na década de 1980, surgiram novos estudos, como A Invenção do trabalhismo da historiadora Angela de Castro Gomes, publicado em 1988, que passou a sugerir um novo olhar acerca da relação entre Estado e a classe trabalhadora[5]. Apesar das críticas e do quase abandono do conceito no campo das ciências sociais, Domingues recupera tal categoria analítica para analisar as interfaces entre o Partido Social Progressista (PSP), de Adhemar de Barros (1901-1969), e a ANP, de Nestor Macedo. Ao trazê-lo à luz, enfatiza que “[…] seu argumento central é de que populismo não foi mera manipulação das massas, de cima para baixo, uma vez que houve interlocução entre a estrutura governamental e a classe trabalhadora”[6].

A retomada do conceito de populismo faz sentido, segundo o autor, pois a categoria substitutiva, o trabalhismo, também apresenta falhas. Domingues adverte que o “novo conceito” também é limitante, uma vez que seu escopo de análise estaria restrito ao mundo sindical, “[…] a principal objeção é pois, que esse novo conceito de populismo tende a negligenciar a experiência, seja dos setores populares excluídos do pacto trabalhista, seja dos grupos específicos, como comunidades de bairros, mulheres, negros, e migrantes”[7].

Diante disso, Estilo Avatar recupera o conceito de populismo, e, “[…] é a luz justamente dessa nova linha interpretativa para o fenômeno do populismo que se inscreve o presente livro”. Como demonstrado, o historiador busca distanciar-se das interpretações da década de 1960 e 1970. Para isso, ele propõe uma nova definição, que compreende o populismo como “[…] um campo de disputa, em que agências do Estado, autoridades públicas, lideranças e agremiações da sociedade civil estabeleciam alianças e permutas políticas, embates e correlações de forças ideológicas, tendo em vista à conquista da hegemonia”[8].

Nesse sentido, o conceito de populismo é mobilizado para pensar a relação entre uma parcela do movimento negro de São Paulo, que se engajou no campo da política partidária, e os políticos da experiência democrática, em especial do PSP. Estilo Avatar pretende, entre outras coisas, afirmar que as lutas protagonizadas pelos afro-brasileiros tiveram influência no sistema político brasileiro durante o período da experiência democrática (1945-1964), porque “[…] a trajetória da Ala Negra indica que a militância afro-brasileira não só se fez presente no período da experiência democrática, como ainda pelejou para interferir na haute politique ou, como o historiador estadunidense prefere designar, no sistema político brasileiro.”[9]

Esta obra reforça a diversidade de forças existentes no seio do movimento negro de São Paulo. Segundo Domingues, “[…] mais do que unívoca e homogênea, a população afro-paulista era plural e heterogênea, sendo capaz de engendrar múltiplas identidades”[10]. No caso da militância de Nestor Macedo e da sua ANP, trata-se do tipo de ativismo que não se diferenciava das atividades de cunho recreativo e político. Pelo contrário, elas estavam intimamente interligadas, já que a estratégia da Ala era estreitar os laços dos afro-brasileiros com o PSP no contexto das atividades recreativas, tais como as festas e os bailes dançantes, sobretudo nos bairros periféricos da cidade de São Paulo.

Para mobilizar a comunidade negra, “[…] patrocinavam-se programas recreativos, festivos e de lazer, envoltos numa atmosfera de alegria, euforia e descontração”[11]. Vale ressaltar que apesar do apoio categórico da ANP à política populista de Adhemar de Barros e a tentativa de cooptação do meio negro por intermédio das festas e bailes dançantes, o autor salienta que tal prática “[…] não se revertia automaticamente, em dividendos políticos-eleitorais”[12].

Em relação à Nestor Macedo, afirma o autor que este era “[…] astucioso, sabia muito bem onde pisar no campo movediço do populismo, procurando tirar vantagens das situações as mais diversas, isto não significa que ele fosse coerente ou desprovido de um ideal”[13]. Ao defini-lo de forma direta, Domingues é categórico, “ambíguo”. Pelo que pude investigar na minha pesquisa de doutorado, Nosso imperativo histórico é a luta: intelectuais negros/as insurgentes e a questão da democracia racial em São Paulo (1945-1964), a estratégia política de Nestor Macedo, provavelmente, não agradou uma parcela significativa dos afro-paulistas.

Certamente, a postura do personagem central de Estilo Avatar não atraiu algumas lideranças, como José Correia Leite, que desde o início da redemocratização, em 1945, defendia o afastamento dos partidos políticos. Para Leite, o associativismo seria a estratégia mais eficaz frente aos novos desafios que se apresentavam nas décadas de 1940, pois “[…] toda a trajetória de militância de Leite foi em torno da integração do negro. Com isso, defendia a ideia de que o afastamento da política partidária seria uma condição necessária para o movimento negro, pois não deveríamos nos dividir em disputas ideológicas”[14].

Por fim, parece-me que uma das maiores contribuições da obra Estilo Avatar é conferir visibilidade às histórias dos afro-paulistas no contexto da redemocratização. Ainda há muitas lacunas acerca das histórias do movimento negro em São Paulo, bem como de outras regiões, a exemplo do Nordeste, no período de 1945 a 1964. A historiografia do pós-abolição tem se dedicado a investigar dois momentos específicos, a década de 1930 e a década de 1970, períodos de atuação da Frente Negra Brasileira (FNB) e do Movimento Negro Unificado (MNU). Ainda nos falta avançar um pouco mais em direção a outras temporalidades, e, nesse sentido, a obra de Domingues cumpre um papel importante, pois lança luz sob um período ainda pouco estudado pelos(as) historiadores(as) do campo do pós-abolição.

Nestor Macedo e a ANP estão inseridos numa conjuntura de efervescência política, marcada pelo (re)florescimento do movimento negro na cidade de São Paulo. A partir de 1945, surgiram importantes entidades, como a Associação dos Negros Brasileiros (ANB)Associação Cultural do Negro (ACN)Associação José do Patrocínio (AJP), além dos jornais da imprensa negra, Alvorada, Novo Horizonte, O Mutirão, entre outros. Vale salientar que além de Macedo, outros/as afro-paulistas também buscavam aproximar-se da política partidária, como foi o caso de Raul Amaral (1914-1988) e Luiz Lobato (1916-?).

Para concluir, retomo mais uma vez as reflexões de Lorde, nas quais a “[…] unidade implica a reunião de elementos que são, para começar, variados e diversos em suas naturezas individuais”[15]Estilo Avatar é um livro sobre pluralidade, diversidade, estratégias múltiplas. Em relação a isso, o autor afirma que havia dois projetos políticos, por vezes, divergentes: a) “[…] um privilegiava o associativismo negro como principal arena para a construção e o amadurecimento dos recursos em prol da população de cor […]”; e b) “[…] outro que descartava o associativismo, mas via na política partidária um espaço fundamental para introduzir reivindicações”[16].

Estilo Avatar é leitura necessária para aqueles(as) que pretendem compreender com mais afinco o período da experiência democrática (1945-1964). Qualquer interpretação sobre o período, que desconsidere a atuação dos afro-brasileiros, será incompleta e inconclusa, como salienta o autor, “[…] urge vermos os afro-brasileiros como agentes históricos capazes de fazer as suas próprias escolhas. Ocasionalmente eles fizeram más escolhas, lutaram entre si e apoiaram chefes políticos que os traíram e os frustraram as expectativas”[17].

Com isso, a história de Nestor Macedo e da ANP nos faz refletir sobre algo que já dissemos a pouco e que é uma característica não só do movimento negro, mas de todos os movimentos sociais, o pluralismo e a diversidade. A obra de Domingues convida o (a) leitor (a) a conhecer um personagem que, como ele próprio diz, é ambíguo, e, ao mesmo tempo, refletir sobre a nossa militância: até que ponto nossas alianças nos tem proporcionado, enquanto comunidade, resolver os “nossos problemas” (que na verdade não são nossos, mas da sociedade brasileira)? Será que, de fato, estamos tensionando os poderes hegemônicos, de modo a romper com o racismo estrutural?

Referências

DOMINGUES, Petrônio. Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2018.

GOMES, Angela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

LORDE, Audre. Irmã Outsider. Tradução Stephanie Borges. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

OLIVEIRA, Felipe Alves. Nosso imperativo histórico é a luta: intelectuais negros/as insurgentes e a questão da democracia racial em São Paulo (1945-1964). 2020.  Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2020.

Notas

[1] LORDE, Audre. Irmã Outsider. Tradução Stephanie Borges. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 7.

[2] Ibidem, pág. 178.

[3] DOMINGUES, Petrônio. Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2018. p. 19.

[4] Idem, pág. 71.

[5] GOMES, Angela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

[6] DOMINGUES, op. cit., p. 73.

[7] Ibidem, pág. 226.

[8] Ibidem, pág. 84.

[9] Ibidem, pág. 226.

[10] Ibidem, pág. 224.

[11] Ibidem, pág. 136.

[12] Ibidem, pág. 145.

[13] Ibidem, p. 122.

[14] OLIVEIRA, Felipe Alves. Nosso imperativo histórico é a luta: intelectuais negros/as insurgentes e a questão da democracia racial em São Paulo (1945-1964). 2020. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2020. p. 155.

[15] Lorde, op. cit., pág. 172.

[16] DOMINGUES, op. cit., p. 215.

[17] Idem, p.231.


Resenhista

Felipe Oliveira  – Doutor em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Professor da Rede Coleguium de Ensino Lagoa Santa, MG, Brasil. Correio eletrônico: [email protected]


Referências desta resenha

DOMINGUES, Petrônio. Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2018. Resenha de: OLIVEIRA, Felipe. Nestor Macedo e a Ala Negra Progressista no contexto da experiência democrática (1945-1964). Revista Nordestina de História do Brasil, São Paulo, v. 4, n. 8, p. 1-6, jan./jun. 2022. Acessar publicação original.

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