A cultura dos jogo | Domínios da Imagem | 2022

Numero de desenvolvedoras de jogos digitais cresceu para 375 no ano passado no Brasil Imagem
Número de desenvolvedoras de jogos digitais cresceu para 375 no ano passado no Brasil | Imagem: Divulgação/VIP/Exame

Foi com muito prazer que aceitamos o convite e o desafio para organizarmos o Dossiê “A cultura dos jogos”. Em primeiro lugar, por sermos da área de antropologia e, em segundo lugar por termos sido reconhecidas pelos editores da revista como pesquisadoras de games.

Assim, após realizarmos a leitura e seleção dos artigos iremos apresentar os artigos selecionados, mas também aproveitando para retribuir o convite tecendo uma breve reflexão a fim de contribuir para os estudos dos games no Brasil, em função do crescimento do consumo desse tipo de conteúdo digital audiovisual entre nós que tem levado milhões de pessoas a se interessarem e a se envolverem com jogos, sejam como jogadores casuais, ou como jogadores profissionais.

Nesse sentido, falar de uma cultura dos jogos digitais no Brasil pode ser prematuro, porém deve ser mencionado pelos números que demonstram que eles estão em vias de superarem as demais mídias, incluíndo as outras mídias digitais, tanto em termos financeiros quanto de público. Tal fato envolve diferentes dinâmicas sócio-culturais, bem como promove distintas formas de engajamento com a própria tecnologia digital.

Sem dúvida, um primeiro elemento a ser destacado diz respeito à valorização da imagem nos jogos e dos jogos, cuja centralidade e suas diferentes estéticas, além de constituirem um atrativo maior, propicia através da imersão do jogador com seu personagem no ambiente e na narrativa, diferentes possibilidades de trocas culturais entre grupos de jogadores. Isso inclusive entre jogadores de diferentes sociedades, alargando fronteiras e promovendo encontros – e por vezes desencontros- culturais do modo que poderíamos considerar até mais significativo do que as redes sociais. Assim, por conta de seus atributos imagéticos, os games permitem um alcance mais universal e ao mesmo tempo intercultural, isto é, aumenta as chances de chegarem a um número maior de pessoas, mas promovendo o surgimento de novas sociabilidades que não excluem formas de singularizações e apropriações estéticas e narrativas.

Outra discussão importante é que essas narrativas, em parte, conduzidas pelos próprios jogadores e singularizadas por eles, trazem à tona uma discussão particularmente cara a disciplinas como a antropologia e a história. Qual seja, que a imagem não é um problema fundamentalmente moderno, contemporâneo, trazido apenas pela industria cultural. Ela constitui a base cognitiva da espécie, do pensamento mítico e da linguagem. Tal fato pode ser constatado em diferentes contextos onde foram encontrados vestígios da presença de diferentes grupos humanos há milhares de anos, como é o caso das imagens pré-históricas da caverna de Chauvet documentada pelo cineasta Werner Herzog (2010), que impressionaram não somente os pesquisadores que pesquisam a caverna, mas a todos os que assistem o documentário, fundamentalmente pela capacidade narrativa e descritiva das imagens feitas há milhares e milhares de anos por diferentes grupos que passaram por ali.

Não se pretende postular aqui continuidades entre as imagens de Chauvet e os jogos, mas talvez a permanência das imagens enquanto potência cognitiva capaz de promover o processo de hominização e que, portanto, não deve ser posta em oposição à escrita. Humanos não iniciaram suas especulações através da escrita, mas observando o mundo ao seu redor e as formas das coisas que nele existiam, usando todos os seus sentidos. O fato mesmo de poderem “copiar” ou “desenhar” algumas dessas coisas ou seres em paredes das cavernas, traz à lume muitas questões que devem e precisam ser retomadas. Isto especialmente no momento em que, apesar de as imagens possuirem um carater eminentemente tecnológico, ou talvez exatamente por isso, elas são mais do que nunca passíveis de serem manipuladas, modificadas, singularizadas.Tais recursos, que podem trazer mudanças relevantes em suas biografias sociais, podem torná-las capazes de narrarem ou mesmo revelarem algo: “mostrarem” aspectos da vida e da existência que a palavra escrita, ou não consegue enunciar ou não podem fazê-lo. Aqui referimo-nos por exemplo às imagens de personagens de HQ, que deixaram de ser meros “desenhos” ou imagens mas se tornaram emblemas e significados (hérois, mitos, etc), e materializaram algumas guerras culturais, inclusive recentes. Ou, ainda, os memes, que são hoje fundamentais na linguagem da Internet, e potentes instrumentos na transmissão e contrução de idéias, discursos e práticas políticas.

Disso decorre a importância que os jogos possuem para as ciências sociais como um todo e para a história e a antropologia em particular. A possibilidade de se pesquisar esses conteúdos permite vislumbrar dimensões recônditas de nossas subjetividades contemporâneas, muitas vezes tornadas ainda inacessíveis pelas formas mais tradicionais de comunicação ou de socialidades. Um interesse renovado pelas narrativas e também pelas questões identitárias, pelas materialidades como elas se apresentam nos meios digitais, corporalidades, gênero, sexualidades podem contribuir para a elucidação de muitos aspectos que são importantes para o engajamento das pessoas com os jogos.

Não menos importante é levar em conta as circunstâncias que cercaram a organização desse dossiê. Em 2020 com a pandemia da covid 19 boa parte da população mundial viu-se obrigada a praticar o distanciamento social. Nesse sentido, os usos da internet assumiu grandes proporções, não apenas para o trabalho e estudos remotos, mas também para o entretenimento, o lazer e a sociabilidade. Já nos primeiros meses de distanciamento social muito se falou sobre excesso de tempo diante das telas, pandemia de lives e zoom fatigue, fazendo referencia a plataforma zoom, muito utilisada nesse período. Curiosamente, nesse mesmo contexto os jogos foram bastante procurados, mesmo por aqueles que não eram tão interessados neles, e não apenas para jogar. Em termos dos jogos propriamente ditos, as vendas não apenas subiram, como alguns jogos tiveram uma procura grande por conta de suas características de jogabilidade e de sociabilidade.

Um desses fenômenos do período de confinamento foi o jogo de videogame Animal Crossing, desenvolvido pela empresa japonesa Nintendo, que faz parte de uma série que existe desde 2001. Sua última versão, Animal Crossing New Horizons (ACNH), foi lançada em 20 de março de 2020 para o console Switch e é considerada como “o jogo da pandemia”. Mais de 13 milhões de cópias do jogo foram vendidas entre março e maio de 2020, de acordo com o relatório fiscal da Nintendo. O conteúdo do jogo certamente não podem ser desconsiderados no entendimento de seu grande apelo no início da pandemia. Confinados em diversos países, jogadores e jogadores podiam experimentar viver em uma ilha deserta, repleta de imagens de paisagens naturais. Podiam caminhar na areia quente da praia, olhar o por do Sol do alto de uma rocha, banha-se na água do mar, caminhar ao meio às ávores, escavar a terra, plantar e colher. Além deles, no entanto, as próprias mecânicas do jogo convergiram com o momento da pandemia, danso sentido a o interesse particular por esse jogo – e por outros. É interessante pensar que as próprias memórias desse período pandêmico serão, no caso de alguns grupos sociais, entremeadas de vivências que passam não só pelo imperativo de uso das mídias digitais, de modo geral, mas pelos jogos.

Enquanto isso, no Second Life, mundo virtual pesquisado por nós de longa data e ao qual retornamos no mesmo período do distanciamento, observamos um retorno expressivo de antigos residentes que haviam deixado o mundo, promovendo mesmo a emergência de um circuito de “turismo” (Krischke-Leitão & Gomes, 2021) com a construção de inúmeros “hotéis” criados com a finalidade de acolherem os visitantes durante a pandemia. Nosso argumento principal para tal retorno foram algumas das características estruturais dessa plataforma que propiciaram sua apropriação no período: sua mundidade, ou propriedade de ser um mundo, o que passa pela sua fisicalidade, simulada pelo motor de física Havok, mas também por sua sincronicidade e persistência, respondendo a certa urgência de ocupar coletivamente o mesmo tempo e espaço; sua imersividade, mecanismo que permite nossa inserção dentro do mundo como modo de habitação, e a incorporação dele à nós mesmos, produzindo experiências e sensações à partir da associação entre som, imagem, textura, profundidade e narratividade; e como terceiro elemento, a existência sob forma de avatares, cuja corporeidade incarna as sensações coproduzidas no e pelo mundo, além de propiciar imaginativas experimentações identitárias, permitindo sair de si temporariamente, ou ao menos decentrar-se.

Uma terceira questão importante que norteou nossa apresentação dos textos que compõem o dossiê diz respeito às duas abordagens que podem ser feitas sobre os jogos e que não são excludentes entre si. A primeira abordagem trata daquilo que chamaremos de uma abordagem externa ao jogo, no sentido de tomá-lo como uma narrativa da qual não se participa diretamente, mas, mesmo assim, podemos à guisa de interpretação, reinvidicar e destacar algumas questões. A 2a abordagem é a abordagem interna, ou seja, de dentro do jogo na condição de jogadores a partir da qual fazemos nossas observações participantes, portanto, apresentamos uma interpretação implicada. Sabemos que existem muitos estudos sobre jogos, mas na maioria das vezes a abordagem é externa, portanto exterior ao jogo. O autor não parte da experiência do jogar e “estar lá”, não passa pelas vicissitudes de ter de exercer as habilidades necessárias para jogar o jogo e acaba fazendo uma análise um tanto quanto “desencarnada”, das circunstâncias de ter contato com a realidade intradiegética do jogo. Não leva em conta o que ocorre dentro do jogo em termos de eventos psíquicos, emocionais e afetivos próprios que podem mudar, afetar a percepção do jogador, em relação à sua experiência com o jogo.

Os primeiros três artigos desse dossiê tratam de jogos digitais, história e memória. Helyom Viana-Telles, à partir de pesquisa etnográfica, aborda a construção da memória e da identidade coletiva dos jogadores de City of heroes. Debruçando-se sobre as práticas de auto-documentação e arquivísticas da própria comunidade de jogadores, o autor mostra os esforços desta para reconstruir o universo do MMORPG após este ter sido encerrado pela companhia que o criou.

O texto de Marcos Antonio Manoel Junior e Cláudio de Sá Machado Junior, por sua vez, analisa “Valiant Hearts – The great war” com o propósito de discutir como a história é abordada pelo jogo. Os autores analisam a narrativa histórica do jogo, imbricada em sua jogabilidade, mostrando que esse produto cultural trasmite discursos e visões de mundo, atuando mesmo na construção – ainda mais partir da experiencia imersiva e interativa – na produção de uma memória coletiva. Como indicam os autores, Valiant Hearts foi lançado quando do centenário da Primeira Guerra Mundial, situando-se numa série de iniciativas do governo francês para homenagear os combatentes do conflito e resgatar a memória da guerra.

Mas se Valiant Hearts poderia ser visto como uma reatualização de versões mais ou menos hegemônicas da memória coletiva, transmitindo a história oficial, outros jogos se apresentam como espaços de problematização e mesmo revisão desta. É o caso, por exemplo, do game Árida: backland’s awakening, que constitui o tema do artigo seguinte, escrito por Patricia da Silva Barbosa, Ebbe Humberta Fernandes Lima, Cristiane Crispim Bezerra e Luiz Adolfo Andrade. De acordo com os autores e autoras o jogo constrói uma representação de temas políticos da história do sertão brasileiro, mas contada à partir de uma perspectiva invisibilizada nos discursos oficiais, a de uma protagonista mulher, negra e sertaneja. A questão da representatividade se coloca então com força, tanto em termos de representatividade na narrativa histórica quanto em termos de presença nos jogos digitais de questões de gênero e raciais. Além de entretenimento, assim, o jogo é pensado como dotado de um potencial político considerável, o que aparece em várias esferas: além do protagonismo feminino, que recupera vozes outrora silenciadas, a estética de cordel, por exemplo, levada para o campo dos games, inova nas formas de narrar.

Assim, o artigo sobre Árida aborda questões de gênero, bem como os dois que o seguem no dossiê. Mais no campo da produção de games do que na análise de conteúdo, o texto de Lucas Aguiar Goulart e Henrique Caetano Nardi parte da observação de um workshop da cena queer norte-americana de jogos digitais para explorar justamente a importância política das formas de narrar em jogos queer independentes. Explorando o que nomeiam de “ética queer afetiva” e “estética da fofura”, os autores mostram que no contexto por eles estudado há uma preocupação em ir além da representatividade ou assimilação da “diversidade” ao mainstream dos jogos comerciais, procurando criar impactos artísticos e políticos que resistem e questionam a cis-normatividade na cultura de jogos digitais. Mesmo alguns jogos comerciais tem criado controvérsias que impactaram consideravelmente o meio no que concerne as discussões sobre genero entre gamers e na cultura de jogos digitais. Como mostra o artigo de Danieli Klidzio, Vicent Solar e Lucas Back de Araújo, esse foi o caso de The Last Of Us Part II ora de seu lançamento. De acordo com a autora e autores o impacto do jogo se deu sobretudo pela conexão emotiva com os personagens através da narrativa interativa do gameplay e da corporificação. Se a representatividade das diferenças poderia ser pensada como um consumo mais passivo de informações que podem ou não sensibilizar, The Last Of Us Part II de certo modo obriga quem está jogando a viver na pele experiências dissidentes quanto ao gênero e a sexualidade. Além disso, muda-se de perspectiva ao longo do gameplay, sendo o jogo assim experimentado a partir de pontos de vista distindos de personagens complexas não estereotipadas.

O artigo de Frédérick Guillaume Dufour, Roxane Noël e Erika Olivaux, embora não trate de gênero e sim de relações raciais, discute problemáticas que convergem com essas exploradas no texto sobre The Last of Us. As autoras e o autor se debruçam sobre o jogo Skyrim para analisar o papel das raças no jogo, mostrando que serem a racialização e as relações raciais elemento central da narrativa e do gamplay. Isso é verdade, no entanto, quando estamos falando do destino e da experiência dos NPCs. Se em The Last of Us jogadores e jogadoras vivem na pele uma experiência dissidente, em Skyrim jogadores e jogadoras observam como a raça é performatizada nos NPCs e suas consequências, sem jamais ter suas próprias experiencias de jogo afetadas por esse marcador social da diferença. Assim, se em aparencia o jogo poderia ser visto como espaço potencial para a problematização de questões raciais, finalmente acabaria reificando uma noção de neutralidade racial no ambito da experiencia, posição supostamente “neutra” que, como argumentam as autoras e o autor, correspondem a uma posição socialmente dominante no jogo.

O próximo artigo é de autoria de Caio Túlio Olímpio Pereira da Costa sobre o jogo Papers Please. Nele o autor trata de um mundo onde a ação principal ocorre em um posto de imigração onde o jogador simula as atividades de um funcionário do posto que precisa conferir a documentação dos interessados em atravessar a fronteira. O jogo é um exemplo para mostrar que a imersão não é somente decorrência do ambiente gráfico do jogo, mas da própria consciência do jogador ao representar as ações do funcionário. A ideia é tomar uma atividade como esta, no caso burocrática, e se engajar a partir dela. Seguem três artigos, Punhos de Repúdio de Luiza Aragon Ovalle e Vinícius Cruz Pinto, Jogos Políticos de Richard Romancini e A representação do Brasil no jogo Max Payne 3, de Tiphani Postale e Tadeu Rodrigues Luama, todos eles voltados para a exploração do universo brasileiro. O primeiro recorre ao gênero de briga de rua, ainda numa versão demo atualizado para o contexto político brasileiro, a partir de personagens e situações do dia-a-dia identificados com a direita. O segundo artigo é baseado na figura de Bolsonaro e nas representações a ele associadas. O terceiro artigo é voltado para a crítica social. Neste jogo temos um ambiente gráfico mais realista, onde o jogador é posto às voltas com várias situações relacionadas à violência, corrupção etc.

Encerrando o dossiê temos dois artigos que apresentam reflexões mais do ponto de vista externo, enfatizando as abordagens teórico-conceituais sobre jogos. O primeiro deles, de autoria de Isaias Isidio de Almeida Junior e Edivaldo Simão de Freitas, propõe uma revisão de diferentes abordagens teóricas sobre jogos para discutir aprendizados socioculturais e o caráter lúdico-didático dos jogos. O segundo e último artigo do dossiê, Máquinas Semióticas, de autoria de Levy Henrique Bittencourt, como o próprio título menciona, analisa os jogos a partir do conceito de Charles Peirce de “máquinas semióticas”, uma vez que o autor aborda os jogos não apenas pela perspectiva dos jogadores diretamente envolvidos com o jogo e suas regras (perspectiva interna), mas leva em conta o caráter midiático que ele pode assumir, caso disponha de uma platéia que o assista sendo jogado, e que, diferentemente do jogador, pode também experimentá-lo como entretenimento e forma de sociabilidade à semelhança de um filme ou outro conteúdo audiovisual. Essa perspectiva permite diferentes apropriações com possibilidades de gerarem diferentes narrativas de acordo com a plateia, a medida que o jogo vai sendo jogado e narrado pelo jogador/streamer e ocorrem as trocas de mensagens entre ele, seu jogo e a platéia. (tome-se como exemplo, o caso da twitch, uma plataforma especializada em explorar os jogos como máquinas semióticas).

Os 13 artigos que fazem parte do dossiê adotam abordagens metodológicas e teórico-conceituais bastante variadas. Eles também dão conta de um conjunto heterogeneo de materiais empíricos, tratando de vários jogos digitais diferentes. Esperamos assim que o dossiê possa contribuir para a consolidação do campo de estudos de jogos nas ciências humanas no Brasil, além de estimular futuras pesquisas sobre a cultura dos jogos. Boa leitura!

Referência

Krischke-Leitão, Débora & Gomes, Laura Graziela. «Second Life comme espace de sociabilité pendant la pandémie de COVID-19». Anthropologica 63, no. 1 (2021) : 1–23. https://doi.org/10.18357/anthropologica6312021352

Organizadores

Débora Krischke Leitão

Laura Graziela Gomes

Referências desta apresentação

LEITÃO, Débora Krischke; GOMES, Laura Graziela. Apresentação. Domínios da Imagem. Londrina, v. 16, n. 29, p. 3-8, 2022. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

 

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.