História, arquivos e mulheres: perspectivas interdisciplinares | História e Cultura | 2022

Luiza Tavora e Virgilio Tavora na Hidreletrica de Paulo Afonso 1965 Imagem Historia da energia no Ceara Ary Bezerra LeiteFortaleza em Fotos
Luiza Távora e Virgílio Távora na Hidrelétrica de Paulo Afonso (1965) | Imagem: História da energia no Ceará (Ary Bezerra Leite)/Fortaleza em Fotos

Desde a década de 1970, historiadoras vêm apontando a ausência das mulheres nas narrativas da história tradicional. Como lembra Michelle Perrot, em seu hoje clássico texto “Práticas da Memória feminina”, “no teatro da memória as mulheres são sombras tênues”. As razões para isso estavam no fato da história privilegiar o espaço público, a política e a guerra, lugares sociais que foram durante muito tempo pouco acessíveis às mulheres, mas também à ausência de fontes para uma escrita da história das mulheres, o que Perrot denominou de “o silêncio dos arquivos”. A ausência das mulheres nas narrativas da história, contrapunha-se com o seu papel como guardiãs da memória. Se, como defendeu Perrot, “a memória feminina é verbo”, as fontes primeiras de uma história das mulheres que começou a ser escrita nas décadas de 1970 e 1980 foram os relatos orais, os diários e autobiografias.

Atualmente, como demonstra Joana Maria Pedro, é possível traçar uma historiografia da “história das mulheres” – de vocação interdisciplinar – e mapear um vocabulário específico que foi construído ao longo do tempo pelo uso de categorias como “mulher”, “mulheres”, “gênero” e “feminismo”, impactado mais recentemente por reflexões decoloniais. A proliferação desse campo de estudo a partir dos anos 2000 e a importância não só acadêmica, mas também política e cultural que ele adquiriu é patente e fica visível nos muitos artigos, publicações e eventos acadêmicos dedicados à área. A própria revista História e Cultura lançou dois dossiês sobre “História e Gênero”, em 2018 e 2019.

Se as narrativas históricas que estão emergindo sobre as mulheres, suas construções de identidades e representações, são muitas e diversas, são raros os debates sistemáticos e abrangentes sobre o lugar das mulheres e os impactos das reflexões de gênero nas instituições de salvaguarda da memória, em particular no campo dos arquivos. Nos últimos anos, estudos vêm indicando e problematizando a escassez de documentos sobre mulheres nos arquivos brasileiros, o que corrobora para a manutenção do apagamento de sua atuação. Essa ausência é fruto de processos sociais que não reconheciam as mulheres como sujeitos históricos e das múltiplas imposições que frequentemente preteriram a atuação feminina ao ambiente doméstico. Falar de arquivos de mulheres é reconhecer que muitas vezes esses documentos, se encontram dispersos e fragmentados em diferentes instituições ou mesmo relegados à esfera dos arquivos familiares, restritos à consulta pública.

Os arquivos históricos são lugares privilegiados de produção de conhecimento, acessados por pesquisadores de diversas áreas e que por meio de suas leituras sobre o passado ajudam a consolidar o que será lembrado. Ao guardar experiências de pessoas, grupos e instituições, os arquivos são espaços legitimadores, produtores e difusores de determinadas memórias. Pensar nas lógicas de exclusão como conformadoras de acervos históricos é compreender que eles se constituem em um contexto de silenciamento derivado de um projeto político mais amplo. Assim como a história tradicional privilegiou em suas narrativas grupos e pessoas específicos, os acervos também o fazem em relação à salvaguarda documental. As teorias feministas e estudos pós-coloniais têm introduzido novas reflexões e suscitado debates éticos a respeito do papel dos acervos salvaguardados por instituições patrimoniais de memória, tais como bibliotecas, arquivos, centros de memória ou museus.

Para discutir sobre esses apagamentos, visibilizar os conjuntos documentais de e sobre mulheres (incluindo coletivos, movimentos e associações feministas ou femininas) e pensar os impactos dos estudos de gênero e do feminismo na prática da arquivologia, foi criada, em novembro de 2020, a Rede Arquivos de Mulheres (RAM). Ela reúne instituições de salvaguarda e seus funcionários e pesquisadores interessados em refletir sobre as diversidades de gênero associadas às assimetrias étnico-raciais e regionais em arquivos. Visa ser um espaço coletivo e colaborativo de troca de conhecimento e de formação e busca fomentar a realização de eventos e publicações, além de difundir informações sobre o tema. A RAM tem também instigado as instituições arquivísticas que a integram a realizar um mapeamento das mulheres presentes em seus acervos e a repensar metodologias de organização e processamento de arquivos com atenção especial para os instrumentos de descrição e atividades de indexação e classificação, que podem corroborar com o apagamento ou contrapor-se a ele, garantindo maior visibilidade para as mulheres e para os documentos produzidos por elas.

Em consonância com os objetivos da RAM o dossiê História, arquivos e mulheres: perspectivas interdisciplinares reúne artigos de pesquisadores de diferentes áreas das ciências humanas, de diferentes cidades do Brasil, que refletem sobre as relações entre o fazer historiográfico e as práticas arquivísticas sob perspectivas de gênero. Procurou-se reunir textos que tratam da história de mulheres, movimentos, coletivos e associações femininas ou feministas com base em fontes arquivísticas. Composto por quinze artigos, o dossiê trata de mulheres atuantes nos campos da política, da cultura e das artes, mas também sobre concepções de feminino produzidas pela imprensa e pelos discursos jurídicos e médicos. Alguns deles refletem ainda sobre formas de processamento e difusão de arquivos de mulheres, buscando visibilizar novas fontes para pesquisas históricas.

Os primeiros seis artigos do dossiê abordam o tema das mulheres na política em diferentes períodos históricos por meio de perspectivas diversas. Em Agripina Menor em Suetônio: o olhar masculino sobre o protagonismo feminino, Isabela Pissinatti discute os processos de construção da história evidenciando as articulações e tensões de gênero, para além dos binarismos que privilegiaram leituras masculinas e de grupos hegemônicos com o objetivo de valorizar o protagonismo feminino. Para tanto, analisa a representação da imperatriz-consorte romana Agripina Menor na obra de Suetônio, As Vidas dos Doze Césares. Ao descrever Agripina como uma mulher sedutora, Suetônio ataca sua reputação evidenciando traços de sua personalidade como antipatia e devassidão, supervalorizando características pejorativas marcadas por uma análise misógina que secundariza sua atuação política na Roma Antiga. A autora atualiza o debate ao incorporar uma reflexão sobre a perpetuação das violências provocadas pelo machismo na leitura de personagens femininas contemporâneas.

Já em A hierarquia do acervo: anotações sobre a presença de Luíza Távora no acervo do arquivo público do estado do Ceará (Apec), Norma Sueli Semião Freitas trata da trajetória de Luíza Tavóra, que foi a primeira-dama do estado do Ceará entre 1963-1966 e 1979-1982, período em que desenvolveu atividades voltadas para assistência social. A autora mostra como as articulações entre gênero, classe e poder perpassam a trajetória, persona e memória de Luíza Távora. Ao refletir sobre os processos de construção da memória dessa personagem, Freitas nota que esse não é um processo único e que ele é marcado por atitudes distintas: se de um lado “a Luíza de tinta e cores da imprensa e de pedra e cal dos monumentos” é rememorada enquanto sujeito autônomo, de outro lado, sua documentação é tratada pelo Arquivo Público do Estado do Ceará como um apêndice do arquivo de seu marido, sendo classificada como uma subsérie na série “documentos pessoais” do “Fundo Documental Virgílio Távora”. Assim, emerge a discussão sobre como os sistemas de classificação reproduzem desigualdades de gênero e como diferentes processos de construção da memória podem tanto visibilizar quanto invisibilizar uma mesma personalidade.

O artigo A presença delas: o “paradigma indiciário” das mulheres nos arquivos sobre revoltas coloniais discute o apagamento da participação feminina nas revoltas coloniais da América portuguesa na historiografia e lança um novo olhar sobre o protagonismo de mulheres como Benta Pereira e Maria da Cruz através dos arquivos. Patricia Macedo e Alexandre Rodrigues apresentam um panorama sobre a invisibilidade feminina nos arquivos em que mulheres se apresentam como personagens secundárias, relacionadas a seus maridos, filhos e pais e/ou como guardiãs da memória. Em busca dos indícios da participação feminina nos arquivos são apresentadas novas abordagens para os documentos produzidos por e sobre mulheres nos campos da História e da Arquivologia.

Já os três textos seguintes: Gênero, identidade e revolução nos tempos de Vargas, Os arquivos femininos do CPDOC através da experiência do Escola no Acervo e Arquivos e feminismo: o acervo de Maria Lacerda de Moura tratam de um mesmo período histórico e contexto político enfocando trajetórias de mulheres engajadas politicamente seja em lutas revolucionárias quanto pelos direitos e emancipação das mulheres. O artigo de Luiz Antonio Dias; Alzira Lobo de Arruda Campos e Rafael Lopes de Sousa aborda a atuação das mulheres revolucionárias durante o governo Vargas e discute a invisibilidade das análises sobre a exploração da mulher nos debates tradicionais que tomam por referência a luta de classes. Amparados nos pressupostos teóricos do feminismo político analisam as críticas feitas às feministas por seus companheiros de militância, o apagamento da participação revolucionária das mulheres (stalinistas ou trotskistas) em São Paulo, os estereótipos negativos vinculados às mulheres que dedicavam à militância comunista nesse contexto e a criação de sociedades e associações exclusivamente femininas comprometidas com os direitos das mulheres. Os documentos históricos registram as perseguições, prisões de militantes brasileiras e deportações de mulheres estrangeiras em função da sua atuação em organizações comunistas. Se juntam às personagens já conhecidas, mulheres anônimas que ocuparam o espaço público e atuaram politicamente no contexto revolucionário dos anos 30 e 40.

Já Ayra Garrido trata da experiência do projeto Difusão e Educação Patrimonial do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, Escola no Acervo, que busca refletir e visibilizar os arquivos femininos da instituição contemporâneos à Era Vargas, especificamente os de Almerinda Farias Gama, Alzira Vargas e Anna Amélia de Queiroz. Constatada a ausência do protagonismo feminino na história política e nos arquivos, o projeto tem como intuito contribuir para que o público escolar conheça a história dessas mulheres, contadas por meio de seus documentos e entrevistas. Além de fomentar maior conhecimento sobre os arquivos destas importantes mulheres de trajetórias e identidades sociais distintas, o artigo faz uma reflexão sobre as desigualdades de gênero nos arquivos de história política levantando possibilidades de atenuar essas assimetrias, seja por meio de mudanças nos modos de classificação, por estratégias de difusão que valorizem os acervos de mulheres, ou ainda por modificações nas políticas de aquisição que visem aumentar o escasso contingente de arquivos femininos.

Em Arquivos e feminismo: o acervo de Maria Lacerda de Moura, Fernanda da Costa Monteiro Araújo e Bárbara Moreira Silva de Barros analisam o acervo documental da escritora que atuou na luta pelos direitos das mulheres no movimento feminista brasileiro. As autoras discutem o arquivo como lugar de memória e como elemento fundamental para construção de uma história do movimento feminista. Através de um panorama sobre os movimentos feministas e anarcofeministas, Maria Lacerda de Moura é apresentada a partir de sua atuação política e rede de relações. A fragmentação e dispersão de seu arquivo em diferentes instituições, além da venda de um conjunto de documentos em leilão, denotam a dificuldade de encontrar registros e o descaso com a história das mulheres. Num entrelaçar das reflexões sobre arquivo e memória a partir do acervo documental de Maria Lacerda de Moura são apresentados caminhos para repensar a história das mulheres através do fortalecimento da demanda por reconhecimento do Estado e das instituições para a importância da preservação e da visibilidade dos arquivos feministas.

Os cinco artigos seguintes exploram diferentes concepções de feminino veiculadas pela imprensa e pelos discursos médico e jurídico na primeira metade do século XX. Em Arquivos de imprensa: possibilidades e desafios para o estudo de jornais da segunda metade do século XIX, seus novos públicos, interesses e a figura das mulher leitora e escritora, Isadora de Mélo Escarrone Costa e Laura Junqueira analisam os diferentes tipos de imprensa voltados ao público feminino, em particular às mulheres brancas, burguesas e letradas, na segunda metade do século XIX. Tratam da emergência da imprensa, da leitora e da escritora e como isso também é resultado de uma ampliação do mercado, buscando fazer das mulheres uma nova categoria de consumidores. Demonstram como arquivos de jornais digitalizados são fontes fundamentais para compreender mudanças políticas, sociais e culturais do fim do século XIX que engendram discursos civilizatórios que tem como foco moldar comportamentos femininos.

Também tendo como fonte de pesquisa arquivos de imprensa, Wellington do Rosário de Oliveira vale-se de diferentes revistas como O Malho e Vida Policial para compreender quais eram os discursos escritos e visuais sobre o meretrício e tráfico de mulheres nas décadas de 1910, 1920 e 1930. Assim, o artigo Abrindo às frestas: ilustrações sobre prostituição no periodismo do Rio de Janeiro (1910-1935) faz um contraponto ao anterior mostrando que as prostitutas eram entendidas como “sujeira moral” que deveria ser “varrida” pelas autoridades, sofrendo repúdio por parte da imprensa. No entanto, o autor demonstra que tal repúdio não incluía as mulheres traficadas, denominadas de “escravas brancas”. Ao contrário, os periódicos disseminavam um imaginário romântico sobre elas, retratando-as como mulheres frágeis e passivas, transformadas em mercadoria, vítimas de cáftens retratados como seres verdadeiramente monstruosos, sendo representados muitas vezes de maneiras zoomórficas.

O artigo ser mãe é uma concepção divina? representações de deveres maternalistas nas revistas femininas Jornal das Moças e O Cruzeiro (1930-1950) apresenta uma análise sobre a construção do feminino pela imprensa do início do século XX analisando o estímulo à formação de mulheres através das revistas que disseminavam padrões de comportamento direcionados ao corpo feminno. Ao se utilizarem do paradigma indiciário, Carolina Fernandes da Silva; Bruna Letícia de Borba e Liziane Nathália Vicenzi percorrem os arquivos em busca de vestígios sobre a representação feminina no Jornal das Moças e na revista O Cruzeiro, buscando observar reportagens que versavam sobre a educação física e a instauração de tecnologias baseadas em um ideal de aperfeiçoamento moral e da saúde da população. Esse projeto, intimamente relacionado à política higienista do período, via na imprensa uma forma de disseminar padrões comportamentais voltados para mulheres, em especial às mães, contribuindo para consolidar representações sobre o feminino no imaginário social.

Em Narrativas médicas sobre feminilidade nas publicações da Liga Brasileira de Higiene Mental (1925-1947), Cláudia Polubriaginof; Lucciano Franco de Lira Siqueira e Paulo Fernando de Souza Campos analisam a construção de um ideal de feminilidade disseminado nas publicações da LBHM através da consulta aos documentos salvaguardados pelo Museu Histórico, da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo (MH/FM/USP) e pelo Departamento de Psicologia, da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Fundada no Rio de Janeiro em 1923 e profundamente integrada a um projeto de saúde mental eugenista, a Liga teve um papel importante na conceituação do que se entendia por “estigmas da anormalidade”, e baseada na prerrogativa de controle da saúde mental organizava ações com o objetivo de promover uma limpeza étnico racial na população brasileira. Os autores apresentam as narrativas difundidas pela medicina mental e o direcionamento do discurso às mulheres como forma de controle. Essas normas ditavam o padrão de normalidade ancorados no binômio “esposa-mãe” e por distinção construíam um repertório daquilo que se contrapunha a esses padrões de comportamento. Era responsabilidade da mulher como mãe e esposa cuidar e frear, através da educação e do amor à família, a vida desregrada dos homens, impedindo a reprodução de degenerados, negros e pobres. Esses discursos coadunam com um projeto nacional republicano fortemente disseminado pela medicina no início do século XX.

No artigo Valoração diferencial da vida: a invisibilidade daquelas que não se enquadram nos padrões, os documentos salvaguardados pelo Arquivo do Judiciário Amazonense são analisados à luz das reflexões de Michel Foucault sobre a sexualidade. Isabel Saraiva Silva observa os dispositivos de controle que incidem sobre os corpos de trabalhadoras domésticas através dos documentos da repressão policial e judicial registrados entre os anos de 1932 e 1962. Esses documentos evidenciam as estratégias do estado para controlar os corpos e disseminar um padrão de moralidade, amplamente difundido pelo saber médico. Os processos analisados indicam a falta de suporte e apoio que as jovens mulheres “defloradas” obtinham da justiça. Por serem trabalhadoras domésticas, de origem popular, não se enquadravam no grupo de mulheres que merecia a proteção do estado. As denúncias de “defloramento” eram constantemente julgadas improcedentes. As vítimas seguiam desamparadas enquanto seus violadores eram absolvidos.

Os três artigos seguintes — Arquivos, fontes e as lacunas na história das mulheres: o caso da pintora Nicota Bayeux; Sobre arquivos e legados: uma experiência a partir do arquivo Waldisa Russio e Arquivos e coleções de mulheres no Cedoc/Funarte: um diagnóstico – abordam o campo das artes e demonstram de formas diferentes a riqueza, a importância e diversidade dos arquivos pessoais como fonte para a pesquisa histórica.

A pesquisa de Mariana Sacon Frederico é dedicada à pintora Nicota Bayeux, que desenvolveu sua carreira no Brasil e na França. O artigo revela as dificuldades de se encontrar documentos sobre mulheres artistas no século XIX e registra a exímia investigação da autora por diferentes arquivos, visando encontrar vestígios da obra e trajetória de Bayeux. Nessa busca são mobilizados textos de imprensa, arquivos privados e públicos e catálogos de exposição. Como demonstra a autora, a maior parte dos poucos documentos encontrados não permitia explorar a subjetividade da artista, uma vez que, eram discursos de outros sobre ela. No entanto, ao encontrar “Álbum”, uma espécie de diário da artista que documentava sua estada em Paris, Mariana Frederico passa a ter acesso a algumas formas de pensar e criar da artista, analisando também as percepções de Nicota sobre o que era ser mulher naquele período. A autora conclui lembrando que no caso das mulheres os acervos pessoais são fundamentais devido à escassez das fontes públicas.

Nesse sentido, o artigo de Viviane Sarraf e Karoliny Borges explora também um arquivo pessoal que havia sido pouco pesquisado: o da museóloga Waldisa Russio, sob a custódia do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB). As autoras abordam a trajetória de Russio e seu papel central para a consolidação da museologia no Brasil. Como morreu prematuramente sem ter conseguido organizar e revisar sua obra, seu trabalho e seu arquivo foram invisibilizados. As autoras também tratam do processamento do arquivo e de sua difusão realizado por elas e equipe vinte anos após a doação dele ao IEB. Demonstram que nele documentos privados e públicos se intercruzam, sendo um arquivo que contribui para a melhor compreensão de Russio, mas também da própria constituição da museologia no Brasil e de instituições museais do Estado de São Paulo, tais como a Estação Ciência e o Museu da Indústria.

Já o artigo de Caroline Lopes, tem como foco os arquivos de mulheres custodiados pela Funarte. O objetivo central do texto é fazer um diagnóstico dos principais arquivos pessoais da instituição buscando levantar as principais ocupações desempenhadas pelas titulares dos fundos. A autora argumenta que, diferentemente de outras instituições, há uma grande quantidade em termos absolutos de arquivos de mulheres na instituição, embora ainda assim predominem os arquivos de homens. Ela demonstra que isso ocorreu devido ao modo pelo qual o acervo foi constituído e também pelo fato de 91 titulares de fundos provirem do campo do teatro, sendo em sua maioria atrizes. O teatro é considerado um campo mais feminino se comparado aos outros campos da produção artística e intelectual (Pontes, 2011). Lopes conclui que para pensar em estratégias que conduzam a representações mais igualitárias de gênero nos arquivos é preciso também levar em conta as dinâmicas de gênero que perpassam os campos de atuação dos titulares dos fundos.

No artigo História oral & história das mulheres: entre silenciamentos e memórias, que fecha o dossiê, Nikolas Corrent discute a invisibilidade das mulheres e a subjugação feminina na história. Para se contrapor a essa lógica excludente, apresenta a contribuição da história oral na consolidação das narrativas que visam contar as histórias das mulheres contribuindo para sua emancipação política. O surgimento da história oral no final dos anos 60, contribuiu para a emergência de narrativas de sujeitos subalternizados pela historiografia oficial, se tornando um marco essencial na consolidação da crítica sobre a exclusão e o silenciamento das mulheres nas narrativas históricas hegemônicas ao fornecer uma alternativa metodológica para combater o apagamento feminino.

Os artigos de jovens pesquisadores aqui apresentados demonstram como no Brasil as dinâmicas de gênero perpassam os processos de construção da memória de maneiras múltiplas, apontando a necessidade de se recorrer a estudos de caso, refletir sobre contextos específicos e analisar as diferentes instâncias que operam nessa construção. Também assinalam a importância dos periódicos e dos arquivos pessoais como fonte para a escrita de histórias das mulheres. Em termos metodológicos, as teorias de Joan Scott sobre as relações entre gênero, poder e história e as de Michelle Perrot são frequentemente mobilizadas pelos textos, denotando sua atualidade. Por fim, o dossiê reflete, ainda, as preocupações recentes de algumas instituições arquivísticas em valorizar acervos femininos, tanto por meio do processamento de arquivos, quanto de projetos de difusão de fundos de titulares mulheres. Esperamos que esse dossiê possa servir de estímulo para que pesquisadores e instituições de memória continuem a aprofundar esse debate.

Referências

PEDRO, Joana Maria. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea.Topoi, v. 12, n. 22, p. 270-283, jan/jun. 2011.

PERROT, Michelle. Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História, 9( 18), São Paulo, ANPUH, 1989.

PONTES, Heloisa. Intérpretes da Metrópole: História Social e relações de gênero no teatro e no campo intelectual, 1940-1968. São Paulo: EDUSP, 2011.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n. 2, jul./dez, 1990.


Organizadores

Marina Mazze Cerchiaro

Carolina Alves


Referências desta apresentação

CERCHIARO, Marina Mazze; ALVES, Carolina. Mulheres, histórias e arquivos. História e Cultura,  v.11, n.1, p. 13-21, jul. 2022. Acessar publicação original [DR]

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