Variação, gêneros textuais e ensino de Português: da norma culta à norma-padrão | Silvia Rodrigues Vieira e Monique Débora Lima

Silvia Rodrigues Vieira 2 Gêneros textuais
Silvia Rodrigues Vieira | Foto: UFRJ

A metáfora de que “a língua padrão é um peixe ensaboado” circula entre nós, brasileiros, há quase 30 anos! É surpreendente, portanto, que de tempos em tempos precisemos evocá-la novamente, dentre outros propósitos, para lembrar aos professores de português, em consonância com Faraco (2008; 2015), que não existe uma única “norma culta”, mas, antes, um conjunto de variedades que expressam a maneira de falar (e de escrever) dos falantes cultos, ou seja, daqueles falantes que tiveram o privilégio de completar seu percurso de escolarização.

Variacao generos Gêneros textuaisMuitos linguistas, pesquisadores, professores vêm levantando a bandeira de, no Brasil, termos uma escola que opere com uma língua real, uma língua que seja, de fato, a dos brasileiros, ao invés de uma língua idealizada, ou uma “língua de ninguém”. É para essa causa que a obra Variação, gêneros textuais e ensino de Português: da norma culta à norma-padrão vem somar esforços.

Organizada por Silvia Rodrigues Vieira e Monique Débora Lima, a obra se compõe de 4 (quatro) seções chamadas de “Capítulos”, às quais se acrescem uma Introdução e uma Conclusão, ambas equivalentes a capítulos. Não seria exagero, então, afirmar que a obra se compõe de 6 (seis) capítulos, que são antecedidos por uma Apresentação.

Nessa Apresentação, o(a) leitor(a) encontra a explicitação do principal objetivo da obra: contribuir para “a sistematização das diversas regras variáveis em uso no Português do Brasil, considerando sobretudo o chamado continuum oralidade-letramento (BORTONI-RICARDO, 2005) ou fala-escrita (MARCUSCHI, 2008).” (p. 6). A análise dos fenômenos selecionados visa prover o(a) professor(a) da Educação Básica de conhecimentos sobre os usos linguísticos cultos, encontrados em gêneros textuais distribuídos em um contínuo fala-escrita, para que o profissional de Língua Portuguesa tenha subsídios que fundamentem suas decisões acerca do tratamento das variantes de cada fenômeno analisado.

Encontra-se, ainda, na Apresentação, a explicação de que cada capítulo representa a sistematização do trabalho de pesquisa de um grupo de pós-graduandos que, no curso da disciplina Tópicos Especiais, ministrada no primeiro semestre de 2018 no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ, assumiu a responsabilidade de investigar algum fenômeno variável do português brasileiro.

Para alcançar o objetivo proposto, o grupo primeiramente construiu um corpus formado por 10 (dez) gêneros de textos, prevalentemente dos domínios jornalístico e acadêmico, que representavam os usos cultos. Na sequência, elegeram como objeto de investigação alguns fenômenos variáveis do português brasileiro, quais sejam: (1) o preenchimento do objeto direto/acusativo de 3ª pessoa; (2) o preenchimento do objeto indireto/dativo de 3ª pessoa; (3) as construções existenciais; (4) as orações relativas; (5) a colocação pronominal; (6) as estratégias de indeterminação do sujeito; (7) a expressão de futuro. Por fim, analisaram o material à luz do contínuo fala-escrita e sistematizaram os resultados. Na obra em foco, apresentam-se as análises de 4 (quatro) dos fenômenos investigados, que são apresentadas aos leitores acompanhadas de sugestões para o tratamento dos fenômenos, na escola.

Há, declaradamente, na obra, a assunção do pressuposto de que o ensino escolar de português, no Brasil, deve refletir a realidade brasileira, apresentando e discutindo com os estudantes a norma que efetivamente se pratica no país. Acreditam as Organizadoras

que ter conhecimento dos usos linguísticos cultos, efetivamente detectados em gêneros textuais distribuídos em um continuum fala-escrita, poderá fundamentar o profissional no sentido de fazê-lo evitar a propagação de uma equivocada cultura do erro, que é altamente prejudicial ao desenvolvimento autônomo e auto-confiante dos alunos brasileiros. (p. 11)

Na Introdução, que recebeu o título de “Para uma abordagem da norma no continuum fala-escrita”, repetem-se alguns esclarecimentos que já tinham sido dados na Apresentação e justifica-se a opção de embasar as análises nos continua oralidade-letramento (BORTONI-RICARDO, 2005) e fala-escrita (MARCUSCHI, 2008). Na perspectiva desses continua, que orientam tanto a definição do corpus quanto a interpretação dos resultados, a análise dos fenômenos variáveis se faz com mais fidelidade aos usos cultos do português brasileiro, e é o conhecimento desses usos que deve guiar a prática pedagógica no contexto escolar, para que nesse contexto se trate de uma norma que não seja “desatualizada e improdutiva”. Nas palavras das Organizadoras,

espera-se que as orientações normativas não sejam concebidas como mera divulgação da norma preconizada nas gramáticas tradicionais – cujo perfil assumidamente remete à escrita literária supostamente praticada no século XIX –, mas que se alinhem minimamente às práticas cultas contemporâneas. (p. 9)

Os continua propostos por Bortoni-Ricardo (2005) e por Marcuschi (2008) são amplamente conhecidos e aceitos entre os sociolinguistas. A proposta de BortoniRicardo (2005) concebe as formas variantes do português brasileiro a partir de três linhas imaginárias (ou contínuos), nas quais elas seriam distribuídas: (1) o contínuo rural-urbano; (2) o contínuo oralidade-letramento; (3) o contínuo do monitoramento estilístico. No primeiro contínuo, as variantes seriam distribuídas levando-se em conta aspectos marcadamente rurais (típicos de regiões mais isoladas) ou urbanos (de regiões supostamente mais abertas a influências externas). No segundo contínuo, seriam alocadas as variantes utilizadas nas práticas sociais de fala e de escrita. E no terceiro contínuo, estariam distribuídas as variantes que expressam maior ou menor grau de monitoração do falante, ficando em um polo as expressões de maior espontaneidade e no outro polo as mais monitoradas e, por isso, mais planejadas.

A proposta de Marcuschi (2001; 2008), feita a partir da assunção de que fala e escrita não devem ser consideradas como polos opostos, distribui os diversos gêneros de textos em um contínuo que faz um entrecruzamento considerando os planos oralidade-letramento e formalidade-informalidade.

No Capítulo 1, intitulado “Variação estilística das estratégias de preenchimento do acusativo anafórico de terceira pessoa” e elaborado por Juliana Magalhães Catta Preta de Santana, Karen Cristina da Silva Pissurno e Monique Débora Alves de Oliveira Lima, analisam-se as estratégias empregadas pelo falante/escritor brasileiro para retomar o objeto direto de 3ª pessoa.

As autoras do Capítulo apresentam primeiramente uma síntese da descrição tradicional, que considera como padrão a retomada do objeto direto por meio dos pronomes oblíquos (o, a, os, as e suas variantes lo, la, los, las, no, na, nos, nas). As demais estratégias empregadas pelos falantes do português brasileiro não são sequer mencionadas pelos manuais tradicionais. Não obstante esse silenciamento da tradição gramatical, as pesquisas linguísticas apontam que o falante de português brasileiro seleciona raramente a variante de prestígio (o clítico acusativo), mesmo os falantes mais escolarizados. De fato, atualmente, os falantes brasileiros optam por retomar o objeto direto pela chamada “categoria zero”, ou seja, por não preencher a posição do objeto, quando ele pode ser facilmente recuperado no contexto. Um exemplo dessa estratégia, encontrado em um anúncio publicitário e apresentado na obra em foco, é:

“O novo aplicativo do Frango no Pote está de lamber os beiços. Todo mundo ama [Ø]”.

Observam as autoras que, na modalidade escrita da língua, a retomada do objeto direto por meio dos pronomes oblíquos, segundo recomenda a norma-padrão, é mais frequente do que na língua oral, especialmente nos gêneros textuais que representam maior grau de monitoração, o que, na análise empreendida, revela a influência do processo de escolarização nos textos escritos.

Os resultados encontrados na análise respaldam as orientações para o tratamento do fenômeno em foco – a retomada do objeto direto de 3ª pessoa –, na escola. As autoras defendem que, no espaço escolar, é importante o contato dos estudantes com todas as formas variantes, já que todas são legítimas. Sugerem, entretanto, que as atividades de produção textual enfatizem o uso da retomada via pronome oblíquo, uma vez que essa forma variante é mais “estranha” aos alunos brasileiros e, por isso, exige uma sistematização mais acurada por parte da escola. As autoras recomendam, ainda, que seria interessante se o(a) professor(a) trabalhasse com gêneros diversificados e mais distanciados da oralidade, como os editoriais, artigos científicos, as teses e dissertações acadêmicas.

No Capítulo 2, de autoria de Bruna Brasil Albuquerque de Carvalho, Pedro Henrique dos Santos Regis e Thaissa Frota Teixeira de Araujo Silva, o fenômeno investigado é a retomada do objeto indireto de 3ª pessoa. Como no capítulo anterior, os autores apresentam, primeiramente, uma síntese da visão tradicional para o fenômeno. Nessa visão, a forma considerada padrão para a retomada do objeto indireto de 3ª pessoa é por meio do pronome “lhe(s)”. No entanto, no português brasileiro, outras estratégias vêm sendo empregadas e descritas pelas pesquisas linguísticas.

A análise feita pelos pesquisadores aponta para o fato de que a retomada do objeto indireto por meio do clítico (lhe-s) ainda é a forma que aparece com maior frequência nos gêneros textuais que representam um maior grau de letramento. Curiosamente, mesmo nesses gêneros, o uso de outras estratégias para retomar o objeto indireto é bastante evidenciado, o que corrobora a evidência de que a chamada “norma culta” é, de fato, um aglomerado heterogêneo de formas variantes.

Com base nos resultados da pesquisa, os autores defendem que a escola não deveria investir tempo na recuperação do clítico „lhe‟ na língua oral, já que as pesquisas mostram que nessa modalidade essa retomada não ocorre. Por outro lado, na língua escrita, a retomada pelo clítico é frequente, sobretudo em textos mais formais. Então, seria importante que o(a) professor(a) trabalhasse o fenômeno de retomada do objeto indireto levando em conta as diferenças entre oralidade e letramento e o nível de (in)formalidade presente nos diferentes gêneros. Concluem os autores que

a leitura de textos de diferentes gêneros e atividades que permitam que os alunos reconheçam as formas mais utilizadas e mais adequadas a cada gênero podem ser muito produtivas, não só em relação à expansão do seu repertório linguístico e cultural como também acerca de discussões sobre preconceito linguístico, o que, consequentemente, pode tornar os alunos mais confiantes e autônomos em relação aos seus usos linguísticos. (p. 60)

O Capítulo 3, intitulado “Variação em estratégias de relativização no Português Brasileiro” e elaborado por Adriana Cristina Lopes Gonçalves Mallmann, Juliana Cristina Vasconcellos Garcia e Rachel de Carvalho Pinto Silvestre Escobar, aborda o fenômeno do encaixamento com pronomes relativos.

Enquanto as gramáticas tradicionais reconhecem apenas a variante padrão como estratégia de relativização, diversos estudos linguísticos, alguns com mais de 30 anos, identificam pelo menos mais duas estratégias de relativização no português brasileiro: a estratégia copiadora e a estratégia cortadora. Na primeira, o antecedente do pronome relativo é repetido na oração subordinada, por meio de um pronome anafórico; na segunda, a preposição que antecede o pronome relativo é apagada. Exemplos dessas estratégias são:

(1) Esse é o livro de que gosto muito. [padrão]

(2) Esse é o livro que gosto muito. [cortadora]

(3) Esse é o livro que gosto muito dele. [copiadora]

As autoras chamam a atenção para o fato de que, das três, a estratégia copiadora é a mais estigmatizada, sendo a cortadora aceita socialmente e bastante utilizada pelos falantes cultos. Na língua escrita, sem dúvida, a estratégia prestigiada ainda é a padrão. Assim, nos dados pesquisados, confirma-se a hipótese de que as estratégias não padrão são mais frequentes nos gêneros mais próximos da oralidade e menos formais, como as entrevistas. Com base nos resultados encontrados, as pesquisadoras recomendam que as três estratégias sejam apresentadas aos estudantes, nas escolas, para que eles tenham contato com as formas legítimas da expressão linguística culta brasileira.

No Capítulo 4, elaborado por Deyse Edberg Ribeiro Silva Gama, Eneile Santos Saraiva e Maitê Lopes de Almeida, o fenômeno estudado é a alternância de usos entre as formas verbais “ter” e “haver”.

Várias pesquisas atestam que o uso de “ter” no lugar de “haver” é fenômeno observável desde o português arcaico. Ainda assim, essa alternância não é discutida nas gramáticas tradicionais, que recomendam não usar a forma “ter” com valor impessoal. Assim, como fruto da inflexibilidade dos manuais tradicionais, na escrita acadêmica quase não ocorre a substituição de “haver” por “ter”, refletindo a forte influência da escolarização. A pesquisa realizada corrobora o fato de que a ocorrência de “ter” impessoal é muito mais frequente na oralidade.

Quando fala, todo falante de português brasileiro alterna “ter” e “haver” com muita naturalidade. É interessante perceber, então, que essa alternância é bastante sensível à modalidade de uso da língua (oralidade x letramento), mas pouco sensível ao nível de escolaridade do falante: falantes cultos, assim como falantes de baixa escolaridade, optam pelo uso de “ter”, a depender do nível de formalidade do texto e da modalidade em que ele se expressa, se fala ou escrita. São esses os aspectos que precisam ser trabalhados na escola, quando se pretende lidar com os usos de “ter” e “haver” sem preconceitos.

A Conclusão da obra, escrita por Sílvia Rodrigues Vieira, recebeu o título de “Contribuições dos estudos de fenômenos variáveis em continuum de gêneros textuais: para uma pedagogia da variação linguística”. Nessa seção, a autora faz a sistematização dos resultados que foram apresentados e discutidos nos capítulos da obra. Além disso, acrescenta algumas reflexões sobre os fenômenos tratados ao longo da obra e traz novas orientações para o tratamento pedagógico desses fenômenos.

Os resultados obtidos nos estudos feitos na obra, sem dúvida, colaboram para que o(a) leitor(a) tenha uma clara noção do quão variável é a chamada “norma culta”, ou seja, aquele conjunto de variedades usadas por falantes escolarizados. Após a leitura dessa obra, as perguntas que permanecem sem resposta são: Se a norma culta brasileira é tão heterogênea, por que o ensino e aprendizagem da língua, na escola, continuam sendo realizados como se houvesse uma norma-padrão única? Por que a escola não trabalha com a norma realmente praticada pelos falantes do português brasileiro, sem que essa norma seja interpretada como empobrecimento linguístico ou erro?

Referências

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Um modelo para análise sociolinguística do português brasileiro. In: Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística e educação. São Paulo: Parábola, 2005, p. 39-52.

FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: construção e ensino. In: ZILLES, Ana Maria S.; FARACO, Carlos Alberto (Orgs.). Pedagogia da variação linguística: língua, diversidade e ensino. São Paulo: Parábola, 2015, p. 19-30.

FARACO, Carlos Alberto. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.


Resenhista

Ana Maria Lima – Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

VIEIRA, Silvia Rodrigues; LIMA, Monique Débora (Orgs.). Variação, gêneros textuais e ensino de Português: da norma culta à norma-padrão. Rio de Janeiro: Letras UFRJ, 2019. Resenha de: LIMA, Ana Maria. Por um ensino de língua que reflita a realidade linguística brasileira. Leia Escola. Campina Grande, v. 21, n.2, p. 189- 194, ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

 

 

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