História e historiografia das ciências | Revista de Teoria da História | 2022

Helene Metzger Imagem JWA
Hélène Metzger  Imagem: JWA

A história da História das Ciências pode ser contada através dos diferentes compromissos intelectuais e políticos que reafirmaram ou denunciaram as marcas de seu lugar de nascimento histórico na modernidade. Como narrativa dos progressos teóricos e técnicos, a história das ciências foi integrada à pedagogia do “espírito” e chamada, nos séculos XVIII e XIX, a testemunhar a perfectibilidade progressiva da razão. Na primeira metade do século passado, filósofos e cientistas como Gaston Bachelard e Paul Langevin viram na institucionalização do ensino de História das Ciências nas escolas e universidades um elemento da mais viva importância para a construção de uma verdadeira “cultura científica”. A ideia pode parecer um tanto empoeirada, justamente por seus ecos iluministas, mas, nos últimos dois anos, o encontro de duas crises, a crise sanitária, provocada pela pandemia, e a chamada crise de confiança na ciência (ou de autoridade da ciência), nos fez pensar no que ainda haveria de atual naquelas reflexões feitas há quase um século sobre o ensino de história das ciências, e, de modo mais amplo, sobre seu papel na cultura.

Uma situação inquietante se colocou para a história e para os historiadores. De certa forma, ela já havia sido imaginada por aquele que radicalizou, pela história, a aposta filosófica da modernidade. Pois enquanto Kant perguntava sobre as condições de possibilidade do conhecimento verdadeiro, reconhecendo de partida o valor superior da verdade científica sobre outros valores, Nietzsche questionava: “Por que a verdade?”. Por que nossas sociedades fizeram a opção pela verdade, e não pela ilusão? Por que escolhemos abandonar nossas convicções íntimas, aquilo que percebemos de modo mais imediato e que desde cedo determina nossa experiência em nome de uma forma de apreensão do mundo cujos mecanismos são conhecidos apenas por poucos iniciados e que frequentemente contradiz tudo aquilo que sempre achamos saber? Por que, em vez de destruirmos as nossas ilusões sobre o mundo, não fazemos a escolha por aquilo que nos conforta e reafirma, a experiência imediata, a autoridade ou a tradição? Enfim, por que não a mentira? Talvez esteja justamente aí, mas pelo avesso, a pergunta que nós, historiadores, podemos fazer agora: como foi possível o mundo atual, quer dizer, o que há ao mesmo tempo de específico e de histórico na ascensão contemporânea desses negacionismos científicos e do que parece ser uma nova forma de relação positiva com a mentira? E qual papel a história das ciências pode assumir no enfrentamento dessa situação?

É verdade que muitos daqueles que falaram contra as recomendações científicas por vacinas, máscaras ou isolamento social não o fizeram explicitamente em nome da mentira. Muitos apontavam para as incertezas e desacordos entre cientistas, fazendo parecer que eles, os mentirosos, tinham apenas uma postura de cautela, a prudência de não aceitar imediatamente a palavra dos cientistas quando o passado das ciências é repleto de erros e correções de rumo. No começo da pandemia, a rede internacional de Institutos de Estudos Avançados Baseados em Universidades (Ubias, na sigla em inglês), lançou uma chamada pública de textos sobre a crise do coronavírus como um desafio interdisciplinar, tendo como mote a pergunta “Como o mundo vai/deve mudar?”. O texto inaugural dessa série foi publicado pela historiadora das ciências Lorraine Daston, intitulado “A ciência e seu público após a pandemia”. Nele, Daston reflete sobre a questão da autoridade e a mediação entre políticos, cientistas e público diante da urgência da pandemia, que expôs aos olhos de todos a dinâmica de divergências, erros, desvios e recuos que é própria ao pensamento científico, mas que, até então, se desenrolava de modo mais discreto, nos espaços da ciência, nos congressos, nos periódicos especializados etc.

A incerteza e os erros têm pleno estatuto de cidadania nos espaços de produção do conhecimento científico. Nos últimos anos, no entanto, os desacordos científicos provocados pelas novidades etiológica, epidemiológica e sintomatológica da COVID-19 foram explorados pelos mais diversos elementos, da grande mídia aos gabinetes semi-institucionais de produção e disseminação de fake news. Os cientistas se viram cada vez mais instados a falar no espaço público sobre aquilo que estavam fazendo praticamente em tempo real, algo sempre muito delicado e perigoso. Além disso, viram-se confrontados com colegas de profissão que, detentores dos mesmos títulos profissionais, que são também formas de reivindicação de autoridade junto ao público (“médico”, “biólogo”, “virologista” etc.), haviam claramente assumido um compromisso ideológico ou oportunista com a mentira.

Nesse ambiente de incertezas sobre o futuro, nasceu no espaço público um interesse pelos efeitos das epidemias e pandemias do passado e pelos modos como as sociedades lidaram com elas, tanto do ponto de vista médico quanto político. Assim, os historiadores também passaram a ser acionados, e com tal frequência que, na abertura de um dossiê recente sobre história e pandemia, publicado pela revista Topoi, seus editores, Gilberto Hochman e AnneEmanuelle Birn, falaram de uma “historiodemia” 1. Eles se referiam ao fato de que, “a partir de março de 2020, com a pandemia de COVID-19, historiadores têm sido, mais do que nunca, convocados a se pronunciar sobre a emergência sanitária global. E não apenas historiadores”, eles emendam: “os jornalistas têm reiteradamente utilizado exemplos históricos ao escreverem e comentarem a pandemia.”

Nesse contexto de buscas por soluções ou previsões a partir de exemplos históricos, parece-nos que a analogia se tornou, nos últimos dois anos, um dos principais usos públicos e políticos do passado. Essa forma de comparação, que tem um importante valor pedagógico e cultural quando feita sob certas condições, prevaleceu, no espaço público ampliado pelas redes sociais, sobre os alertas feitos pelos historiadores das ciências, da medicina e da tecnologia contra os riscos da relativização do valor específico das verdades científicas, sobre a sua preocupação em mostrar a relação com o dizer e o fazer verdadeiros que marcaram as práticas de produção dos conhecimentos atuais sobre as doenças e as vacinas, enfim, sobre aquilo que de fato faz das ciências e da medicina fatores constitutivos da história. Essa situação permite estender aos historiadores a pergunta feita por Daston naquele texto: “Quais lições os cientistas e o público tirarão de seu encontro supercarregado quando a pandemia terminar?”

É muito possível que eles simplesmente voltem ao esquecimento mútuo. Os leigos perderão o interesse em podcasts de virologia; os cientistas voltarão com alívio para seus laboratórios. Mas esta seria uma oportunidade perdida em ambos os lados. (…) O conhecimento científico é o melhor conhecimento que temos, mas não é e não pode ser conhecimento livre de incertezas. O público, por sua vez, precisa muito de uma educação, tanto intelectual quanto moral, na incerteza. Intelectualmente, isso significaria uma melhor compreensão de como a ciência domestica, mas não elimina a incerteza (…). Nem todos temos que nos tornar cientistas, mas temos que nos tornar cidadãos cientificamente letrados.2

Acreditamos que a história das ciências tem um grande papel a desempenhar nessa tarefa de letramento científico, mas isso passa necessariamente pela discussão sobre a nossa (dos historiadores) imagem de ciência e sobre as ferramentas que elaboramos para o estudo dessa forma de conhecimento que é não apenas ubíqua, mas produtora do mundo em que vivemos. Foi uma contribuição a essa discussão que pretendemos fazer quando propusemos um dossiê sobre “História e Historiografia das Ciências” à Revista de Teoria da História da Universidade Federal de Goiás. A ideia nasceu no movimento de construção e consolidação do Grupo de Trabalho “História da Ciência e Tecnologia” da ANPUH-GO, do qual fomos os coordenadores no biênio 2020-2022.

Lembramos, na chamada de artigos, que Enrico Castelli Gattinara, em seu já clássico Les inquiètudes de la raison, falava sobre as “crises” (e não “crise”) da razão do final do século XIX e início do século XX, afirmando a impossibilidade de reduzi-las a um ou outro reduto da vida social, subjetiva e intelectual do período. Acreditávamos, àquela altura da pandemia, viver mais uma vez uma crise envolvendo as ciências que deveria ser colocada no plural. Daí a nossa proposta: “Este dossiê busca reunir contribuições dedicadas a um domínio que, de diversas maneiras, se contrapõe ao negacionismo científico em seus pilares mais centrais: a história e a historiografia das ciências.” Somos muito gratos aos colegas que submeteram seus textos para avaliação pela RTH, bem como àqueles que atenderam ao nosso convite para compor o dossiê.

Helena Miranda Mollo, professora da Universidade Federal de Ouro Preto, enviou uma instigante reflexão sobre a relação entre a historiografia das ciências e a história da historiografia geral, por assim dizer. Essa é uma discussão que tem mobilizado alguns de nossos colegas na área e que, no Brasil, já tem produzido iniciativas muito importantes, como a revista Transversal – International Journal for the Historiography of Science, publicada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Thiago Costa e Ariadne Marinho, em mais uma produção conjunta, assinam um texto sobre as reflexões de Thomas Kuhn acerca das representações visuais na história e filosofia das ciências, um aspecto pouco explorado da obra de um dos principais nomes da historiografia das ciências. Sergio Campos Gonçalves enviou um texto sobre a concepção de ciência de Carl Gustav Hempel, bastante conhecido por sua teoria da covering law, que motivou debates entre historiadores narrativistas e está no centro de algumas reflexões associadas à linguistic turn. Elaine Calça encaminha os trabalhos em direção à história das ciências humanas, analisando a relação entre a institucionalização da antropologia na Alemanha e o processo colonial, a partir da obra Adolf Bastian.

A discussão sobre o pensamento antropológico reaparece no artigo de Frédéric Fruteau de Laclos, um dos autores convidados do dossiê. A partir de antigos e pouco conhecidos debates da epistemologia francesa do século passado, ele apresenta uma reflexão original sobre as idas e vindas dos conceitos ao longo da história das ciências. Embora a chamada de artigos para o dossiê tenha sido lançada apenas no ano passado, o texto foi escrito meses antes, sendo, tecnicamente, a primeira atividade que desenvolvemos no âmbito no novo GT de História da Ciência e Tecnologia da seção goiana da ANPUH. Com o texto pronto e a aprovação da RTH, convidamos Gildo Magalhães, um dos coordenadores do GT junto à ANPUH nacional, para contribuir com o dossiê. Como resposta, ele nos enviou uma reflexão sobre o surgimento e a evolução da ideia de “leis naturais” nas ciências.

Como dissemos, somos muito gratos a todos os pesquisadores que nos enviaram contribuições para o dossiê e nos ajudaram a encerrar de modo bastante especial esse ciclo de trabalhos junto à ANPUH-GO. Mas estamos particularmente orgulhos pela publicação, de forma inédita no Brasil, do texto “O historiador das ciências deve fazer-se contemporâneo dos cientistas dos quais ele fala?”, de Hélène Metzger. Além de uma discussão metodológica fundamental para a historicização da história das ciências, isto é, para sua transformação em disciplina histórica de fato e de direito, o texto de Metzger, publicado em 1933, é uma das primeiras afirmações da identidade acadêmica do historiador das ciências na França, reivindicando sua autonomia em relação à filosofia das ciências. Um documento importantíssimo para a historiografia das ciências e que, por diferentes circunstâncias históricas, manteve-se até agora – como, aliás, toda a obra de Metzger – inédita entre nós.

Não conseguimos pensar em melhor maneira de encerrar essa apresentação do que através da reafirmação do nosso desejo de intensificação dos esforços de institucionalização da história das ciências nas universidades, especialmente nos cursos de licenciatura em ciências e para os futuros professores e pesquisadores de história, para que eles assumam plenamente seu papel na formação de uma cultura científica capaz de barrar a reativação dos irracionalismos do passado.

Notas

1 HOCHMAN, Gilberto e BIRN, Anne-Emanuelle. Pandemias e epidemias em perspectiva histórica: uma introdução. Topoi (Rio de Janeiro) 22, n. 48, pp. 577-587, 2021.

2 DASTON, Lorraine. Science and its Public after the Pandemic. Disponível em: https://zif.hypotheses.org/634.


Organizadores

Hallhane Machado – Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: [email protected]    https://orcid.org/0000-0001-7120-8384

Tiago Santos Almeida – Universidade de Brasília. E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0002-3678-3161


Referências desta apresentação

MACHADO, Hallhane; ALMEIDA, Tiago Santos. Apresentação. Revista de Teoria da História. Goiânia, v.25, n.1, p. 5-8, 2022. Acessar publicação original [DR]

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