Vozes em fragmentos na poesia de Chico: uma arquitetura polifônica? – KOGAWA (B-RED)

KOGAWA, João. Vozes em fragmentos na poesia de Chico: uma arquitetura polifônica? Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2018, 170p. Resenha de: MAGALHÃES, Anderson Salvaterra. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, v.14 n.2, São Paulo Apr./June, 2019.

Fragmentação e reconceituação nuclear são duas características distintivas dos tempos atuais se estes tempos são considerados emoldurados pela condição (ou condições) pós-moderna(s). Seja essa moldura pós-moderna desenhada pelo fim das metanarrativas, como discutido pelo filósofo francês Jean-François Lyotard (2000) 1, ou entendida como uma liberação de símbolos culturais, de acordo com o também filósofo francês Danny-Robert Dufour (2005)2, ou como tempos líquidos, de acordo com o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (2007) 3, entre outras formas de tentar capturar o que tem acontecido com as organizações sociais especialmente na cultura ocidental, parece consenso que valores nucleares têm sido revistos. E essa revisão de valores leva à reconceituação de relações e instituições em geral. Não apenas relações e identidades sociais têm sido repensadas, como também modos de teorizar, o que geralmente leva a um relativismo de valores uma vez aceitos como absolutos ou, pelo menos, sólidos e estáveis. Então, um leitor contemporâneo pode pegar um par de óculos pós-modernos para simplesmente dar uma olhada ou para escrutinizar cuidadosamente o livro de Kogawa e se perguntar o que efetivamente está em jogo ali.

Bem, em Vozes em fragmentos na poesia de Chico, como indicado na pergunta posta no subtítulo do livro – uma arquitetura polifônica? -, o leitor encontra um contundente exercício teórico em torno do conceito bakhtiniano de polifonia que contribui para o entendimento de uma luta política flagrante no e pelo trabalho ético e estético com a linguagem num período da história brasileira que tem sido objeto de disputa conceitual: a ditadura militar. Porém, a fim de se engajar na discussão de Kogawa e tirar proveito de sua riqueza, o relativismo que pode derivar de uma posição pós-moderna deve dar lugar a um questionamento fundamentado em valores modernos. De outro modo, corre-se o risco de perder a questão. Como assim? Uma breve análise da estrutura do livro deve responder a esta pergunta.

Professor de Análise do Discurso na Universidade Federal de São Paulo, autor também de Linguística & Marxismo: condições de emergência para uma teoria do discurso francesa no Brasil (KOGAWA, 2015), Kogawa tem se ocupado há algum tempo do modo como se teoriza o discurso no âmbito acadêmico brasileiro, e esta nova obra só corrobora sua trajetória de reflexão. Logo após os agradecimentos usuais, há um prefácio bem informativo escrito por Renata Coelho Marchezan, que destaca a relevância do livro no conjunto de trabalhos em torno do Círculo de Bakhtin que enfrentam o desafio de lidar com um produtivo e difundido pensamento – o pensamento dialógico – sem cair na banalização. Dentre os conceitos vulgarizados, polifonia é sem dúvida um dos conceitos de mais difícil abordagem, e Marchezan antecipa que Kogawa identifica e problematiza a homogeneização dos conceitos de polifonia, dialogismo e heterodiscursividade. Esta é a primeira pista de que em Vozes em fragmentos na poesia de Chico: uma arquitetura polifônica? não há relativismo conceitual, e sim refinamento.

Na introdução, Kogawa afirma claramente o objetivo do livro: propor “uma leitura do conceito de polifonia em Bakhtin” (p.17) e anuncia que faz tal leitura perseguindo as bases filosóficas do conceito e analisando a relação autor-herói em letras de algumas canções compostas por Chico Buarque de Holanda durante a ditadura militar no Brasil. Ele antecipa que mobiliza polifonia pela negativa, isto é, identificando um modo não-polifônico de (se) enunciar. Letras de canções em que as vozes de grupos socioeconomicamente marginalizados são personificadas num sambista, numa prostituta, num pedreiro, dentre outros, são selecionadas para compor uma cadeia discursiva em que não se encontram múltiplas vozes sociais equipolentes, mas diferentes modos de sustentar uma postura. Ele deixa para o terceiro capítulo os detalhes que corroboram essa afirmação.

É no primeiro capítulo que Kogawa efetivamente lança os fundamentos modernos de sua discussão. Isso não quer dizer que a discussão seja ultrapassada. Pelo contrário, mostra-se altamente relevante em tempos em que conceitos básicos e nucleares, como o de ditadura, têm sido relativizados e consequentemente esvaziados. No livro, o autor dá especial atenção ao conceito de polifonia e, através da análise de uma cadeia discursiva particular da poesia de Chico, procede a um refinamento conceitual indicando que se trata de um fenômeno discursivo bastante raro. Por causa disso, não deve haver depreciação de modos não-polifônicos de (se) enunciar. Debaixo do guarda-chuva do dialogismo, é a responsabilidade ética que garante a relevância histórica e cultural do engajamento na cadeia discursiva.

Esse trabalho conceitual é desenvolvido no primeiro capítulo em quatro etapas. Primeiro, a natureza dialógica da linguagem é definida a partir da visitação de importantes obras do Círculo, como Marxismo e filosofia da linguagem, de Volóchinov (1986) 4. Dessa grande obra, Kogawa recupera a ideia de que a linguagem não é um sistema abstrato, nem uma produção solipsista individual, mas uma realidade viva resultante das relações estabelecidas nos e pelos grupos sociais. Por isso, argumenta, a linguagem tem uma natureza dialógica, social e histórica, e as instâncias singulares de sua atualização apresentam manifestação material que faz sentido num enquadre sociocultural. Isso é crucial para entender, por um lado, a discussão conceitual sobre polifonia e, por outro, para entender o processamento semântico da cadeia discursiva selecionada da poesia de Chico. A natureza dialógica, social e histórica da linguagem atualiza e dá visibilidade àquilo que é posto em questão na relação autor-herói nas letras de canções analisadas.

Em segundo lugar, a relação autor-herói propriamente dita é escrutinizada não apenas, mas principalmente, pelo exame do ensaio O autor e a personagem na atividade estética (BAKHTIN 1990)5. Kogawa é cauteloso em fazer referência a traduções recentes para o português dos ensaios e livros do mestre russo. Isso lhe permite discutir questões da recente história brasileira em sintonia com a agenda dos estudos bakhtinianos no Brasil. Então, encontra-se no livro uma proveitosa discussão sobre como as posições estéticas de autor e herói revelam a responsabilidade ética implicada na cadeia discursiva das letras de Chico.

Em terceiro lugar, a ideia de cadeia discursiva propriamente dita é discutida. Kogawa demonstra que, no pensamento dialógico a realidade da linguagem é necessariamente interacional, e que se pode distinguir monologismo de dialogismo no modo como o autor se relaciona com o herói. Se a linguagem é preponderantemente dialógica, o modo como as relações estéticas são construídas pode variar, e essa variação pode mostrar uma tendência monológica ou dialógica. Embora não mencione explicitamente os recentemente divulgados ensaios intitulados Diálogo I: a questão do discurso dialógico (BAKHTIN 2016a) e Diálogo II (BAKHTIN 2016b), Kogawa faz referência à edição em que esses ensaios são publicados em português, e sua composição retórica da leitura do trabalho de Bakhtin indica a coerência que se encontra no conjunto de ensaios do pensador russo, a despeito do modo não-linear que seus pensamentos foram distribuídos na Rússia e alhures.

Em quarto lugar, Kogawa coloca a questão: quando um discurso é polifônico? Então, fecha a discussão conceitual insistindo que a condição polifônica, isto é, a equipolência de diferentes vozes sociais na relação que o autor estabelece com o herói, é um arranjo estético bem peculiar e bastante pitoresco. Por isso, não é eticamente apropriado para toda e qualquer condição histórica de (se) enunciar.

No segundo capítulo, são identificados e descritos os elementos que disparam a cadeia poética a ser analisada. O cenário político é retratado em suas consonâncias e dissonâncias. A ditadura militar não é negada nem mitificada. É descrita como um tempo de coerções com múltiplas tendências, mas também como um tempo de respostas criativas. Baseado especialmente no trabalho do jornalista Elio Gaspari, Kogawa descreve a posição política militar como segmentada em duas tendências em tensão interna: as chamadas linha dura e não-dura. Nesse sentido, o governo ditatorial é apresentado não como um bloco político coerente, mas como uma instância histórica dinâmica e controversa. É este dinamismo que constitui terreno fértil para a produção de respostas criativas e responsáveis.

No terceiro e último capítulo, Kogawa analisa os tipos heroicos que Chico desenha, especialmente nas letras de quatro canções: Geni e o Zepelim, O malandro nº 2, Construção e Pedro, pedreiro. O autor mostra que as canções constituem modos responsáveis de (se) enunciar naquele momento histórico específico e, dessa perspectiva, consistem respostas críticas cujo objetivo envolve o apagamento das vozes dos heróis tornando-os construções imagéticas. Desse modo, a relação autor-herói instanciada é não-polifônica. Em suas próprias palavras, “O autor-criador constrói um ambiente hostil para as personagens e isso implica um mundo permeado por disparidades […] Sob essa ótica, neste capítulo, esses mundos artísticos servem como concretização desse discurso crítico que se configura como anti-conservador” (p.118). Kogawa demonstra, então, que essa posição crítica se realiza pela mobilização de três dimensões axiológicas: (i) religiosa, (ii) política e (iii) econômica. E continua: “A voz autoral, ao mobilizar sua crítica, coloca-se, direta ou indiretamente, ao lado dos despossuídos como forma de denunciar certas insensibilidades cotidianas que têm as parcelas menos prestigiadas da sociedade burguesa como alvo” (p.118).

A dimensão axiológica religiosa, por exemplo, é decisiva para processar a crítica flagrante em Geni e o Zepelim. Na canção, a redenção da cidade é efetuada pela prostituta que, a despeito de qualquer orgulho ou autopreservação, sacrifica-se para salvar os cidadãos que, no final, esquecem seu feito e a apedrejam cruel e covardemente. Enunciativamente, isso é construído pelo contraste entre os valores projetados sobre Geni, a prostituta que é apresentada em terceira pessoa do discurso, e os valores sustentados pelo coro, cuja voz mostrada em citação direta dá sentido a um tom moralista hipócrita.

Assim, a canção é um embate de vozes em que, de um lado, situa-se a voz do coro representante da moral e dos ‘bons costumes;’ de outro lado, há o posicionamento autoral – excedente da visão estética – como configurador de um universo que questiona os valores dogmáticos da cidade (p.145).

Emoldurando as canções por tais dimensões axiológicas, Kogawa mostra dialogicamente a estratificação sociolinguística flagrante na poética da cadeia selecionada. Demonstra que o modo como Chico Buarque, na condição de autor-criador, se relaciona com os tipos heroicos nas letras das canções constitui uma resposta válida ao contexto ditatorial em que a cadeia foi disparada. Embora essa resposta tenha se realizado por uma arquitetura não-polifônica, seu comprometimento ético justifica e valoriza a poesia. Então, as vozes em fragmentos que se escutam no livro não correspondem aos estilhaços de sentidos líquidos com os quais se pode deparar no funcionamento pós-moderno. Pelo contrário, esses fragmentos revelam a contundência de uma posição firme e brava em tempos ferozes.

1LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. 6.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

2DUFOUR, D-R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.

3BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007.

4VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na Ciência da Linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Volkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

5BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: ______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.3-194.Traduzido pelo autor.

Referências

BAKHTIN, M. Author and Hero in Aesthetic Activity. In: BAKHTIN, M. Art and Answerability: Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. Edited by Michael Holquist and Vadim Liapunov. Translated by Vadim Liapunov. Austin, TX: University of Texas Press, 1990, p.4-256. [ Links ]

BAKHTIN, M. Diálogo I. A questão do discurso dialógico. In: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a, p.113-124. [ Links ]

BAKHTIN, M. Diálogo II. In: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016b, p.125-150. [ Links ]

BAUMAN, Z. Liquid Times: Living in an Age of Uncertainty. Cambridge, UK: Polity Press, 2007. [ Links ]

DUFOUR, D-R. The Art of Shrinking Heads. Cambridge, UK: Polity Press, 2008. [ Links ]

KOGAWA, J. Linguística e Marxismo: condições de emergência para uma teoria do discurso francesa no Brasil. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2015. [ Links ]

LYOTARD, J-F. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge. Translated by Geoff Bennington and Brian Massumi. Minneapolis: University of Minnesota, 1984. [ Links ]

VOLOŠINOV, V. Marxism and the Philosophy of Language. Translated by Ladislav Matejka and I. R. Titunik. Cambridge, London: Harvard University Press, 1986. [ Links ]

Anderson Salvaterra Magalhães – Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Linguísticos, Guarulhos, SP, Brasil; https://orcid.org/0000-0003-3183-1192; asmagalhaes@unifesp.br

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