Arquitertúlia: Prosa em construção – Contos de humor não edificantes | Manoel Vaz Gomes Corrêa

Arte sobre a capa de Arquiteertulia de Manoel Vaz 2 Arquitertúlia
Arte sobre a capa de Arquiteertulia, de Manoel Vaz

Há pouco tempo, 25/08/2021, recebi um e.mail de um antigo colega de ginásio no Colégio dos Maristas no Rio de Janeiro. Manoel Vaz Gomes Corrêa, o Nel Vaz, carioca, 75 anos, arquiteto, cartunista e ilustrador. Casado, dois filhos, três netos. Em função das quarentenas e isolamentos provocados pela pandemia são vários os ex-alunos que nos procuram via remota São palavras do autor Manoel Vaz:

“Um livro (já sinto suas contrações), era o que faltava, pois na prancheta, fiz muitas plantas, que estão aí até hoje, regando ou não regando. Quanto a plantar na terra, lembro-me de que na instituição onde trabalhei, em cada projeto inaugurado, plantávamos mudas de pau-brasil, pra compensar o que levaram na marra. Desse modo, posso dizer também que já fui uma espécie de pau pra toda obra”. Leia Mais

Eu vou piorar | Fernanda Bastos

Eu vou piorar é o segundo livro da poeta Fernanda Bastos. O primeiro foi Dessa cor (2018), ambos publicados pela Editora Figura de Linguagem. Escritora jovem, nascida em 1985, Bastos inscreve-se na escrita contemporânea de mulheres negras que acionam a criação literária a partir do diálogo interdisciplinar entre a história e a literatura. E que tem como principais temas o racismo, o machismo e questões de classe. Eu vou piorar é um livro de poemas objetivos no uso da linguagem e diretos nas referências histórico-sociais. É uma publicação exigente com a pessoa leitora, pois pressupõe uma abertura para entender a literatura nesse encontro com outras formas do saber e disposta à dinâmica de uma leitura como experiência de vida. A objetividade temática e a assertividade da linguagem direta são resultados de uma criação literária complexa, que se relaciona com um desejo da autora, mulher negra contemporânea, de escapar das opressões. Como disse Glória Anzaldúa, o conjunto de relações significativas que marcam o escrever de uma mulher negra são: experiências pessoais, visão de mundo segundo a realidade vivida, vida interior, “nossa história, nossa economia”.1 E esse conjunto de relações marcam o desejo que é, ainda seguindo Anzaldúa, a ânsia de não repetir a performance da opressão, movimento de criação literária utilizados pela poeta Fernanda Bastos. Leia Mais

Intimações do desumano | Edson Lopes Cardoso

Edson Lopes Cardoso é uma das pessoas-bússolas quando pensamos em ativismo político, intelectualidade e movimento negro brasileiro contemporâneo. E digo isso não como mero protocolo, digo com o sentimento de quem nasceu exatos quarenta anos depois dele e encontrou caminhos em comum alicerçados com ideias e reflexões sobre as armadilhas da violência estrutural sofisticada que é o racismo. Como mulher negra, também nascida na Bahia (em Berimbau – Conceição do Jacuípe), formada em jornalismo (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), que enveredou por espaços acadêmicos e por Brasília, é inspirador acessar obras literárias e também trajetórias de pessoas negras que contribuíram com estratégias a favor de uma coletividade que teve historicamente os direitos negados. Com sua percepção apurada, Edson Cardoso continua sinalizando às máscaras que ainda seguem ativadas na sociedade brasileira. E com sua experiência de vida e combate, trança pensamentos com as gerações que o antecedeu e com as posteriores, com o compromisso de amplificar a dignidade das vidas negras. Leia Mais

Poesia completa | Maya Angelou

A produção poética de Maya Angelou, recém-lançada pela editora Alto astral, constitui-se por mais de cem poemas onde a poetisa nos contempla com uma forma elevada da voz de uma das mulheres mais influentes da cultura e da literatura afro-americana. O que se designa como a voz e a vida de Maya Angelou alcança rapidamente o elo que torna algumas das vivências das mulheres negras estadunidenses um coro em uníssono. Tratarei aqui, nesta resenha, de alguns dos pontos em comum que podemos visualizar através da leitura de teóricas feministas negras como, por exemplo, Bell Hooks e Patricia Hill Collins.

É necessário ressaltar que muitos dos poemas que utilizarei aqui serão recortados visto que a poetisa apresenta uma característica preponderante relacionada ao desenvolvimento de poemas longos. Entretanto, essa característica não denota que a autora faça uso de uma linguagem tida como hermética, pelo contrário, sua poesia de versos livres almeja ser compreendida em sua própria naturalidade, a qual está intrinsecamente relacionada ao perceber-se e sentir-se negra em um país como os Estados Unidos. Nesse sentido, o poema Estados Unidos da América apresenta trechos como: “O ouro de sua promessa nunca foi extraído/O limite de sua justiça não está bem definido/Suas colheitas abundantes a fruta e o grão/Não alimentaram os famintos nem aliviaram sua dor profunda/Suas promessas orgulhosas são folhas ao vento/Sua orientação segregacionista é amiga da morte de negros/Descubra este país os séculos mortos choram (ANGELOU, 2020, p. 99)”. Leia Mais

Fugas | Sonia Marques e Eliane Lordello

Caros leitores,

Ouso tomar emprestado aqui o título de um filme de Jean Luc-Godard, de 1967, ano em que nasci, para falar um pouco sobre como vim a ser a ilustradora destes dois livros de poemas de Sonia Marques: Fugas e Viagens.

A exitosa carreira da arquiteta pernambucana Sonia Marques na pesquisa e na docência, já é bastante conhecida, e reconhecida. Aqui no Espírito Santo, nos anos 1980, quando cursava Arquitetura na Ufes, eu já conhecia a produção acadêmica de Sonia, inclusive através de seus colegas na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco, o casal Fernando e Ione Marroquim. Nesse tempo, eu era aluna de Ione e estagiária do escritório Marroquim Arquitetos. Leia Mais

O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna | Jacques Rancière

No início dos anos 1970, Hayden White causara grande agitação entre os historiadores ao demonstrar o recurso destes aos procedimentos e elementos poéticos na construção da narrativa e da interpretação histórica (WHITE, 1992). Trinta anos depois, François Hartog evidenciava, a partir de seus regimes de historicidade, não somente outra faceta da historiografia oitocentista, como também, de modo mais geral, da relação da sociedade ocidental com o tempo histórico. De acordo com Hartog (2013), o regime historicista moderno, marcado por uma concepção de tempo futurista, não se limitava às narrativas historiográficas – ia além, perpassando diversas formas de relação social com a temporalidade, inclusive a literatura.

Contemporâneo de White e Hartog, Jacques Rancière, filósofo francês, foi gradativamente afastando-se do marxismo althusseriano [2] – que marcou o início de seu trabalho – até se aproximar, sobretudo nos anos 1990, das discussões em torno da relação entre estética e política, e mesmo entre a ficção e a historiografia. No âmago dessas reflexões, Rancière (2005) identificou a existência, no Ocidente, de três regimes na produção das artes: um regime ético, cuja base é a filosofia platônica; um regime representativo, orientado pela poética aristotélica; e, finalmente, um terceiro regime, o estético, que é propriamente moderno, e cuja origem encontra-se no questionamento e na subversão da poética representativa. Esses regimes implicam não somente concepções e relações poéticas, mas igualmente políticas, uma vez que o filósofo identifica certa indissociabilidade entre essas esferas. Desse modo, esses regimes são fundamentais na compreensão, tanto da composição poética quanto dos seus desdobramentos críticos em sua recepção. As implicações de sua reflexão, no entanto, não se limitam à ficção e à política, permitindo recolocar em questão a relação entre estas e a história, compreendendo sua articulação, especialmente, no momento da constituição da disciplina ou ciência histórica no século XIX.

Em O fio perdido, um conjunto de ensaios sobre a ficção moderna, Rancière percorre, ao longo de três capítulos, diversos nomes consagrados do romance, da poesia e do drama com o intuito de identificar mecanismos e indícios específicos que demarcam em cada obra e em cada segmento a decadência do regime representativo, centrado no modelo orgânico e na lógica da ação, e a emergência do regime estético que caracteriza propriamente essas ficções como modernas.

O primeiro capítulo da obra, O fio perdido do romance, é aberto por um texto sobre Gustave Flaubert, O barômetro da Sra. Aubain. Nele, Rancière tenta dar conta da novidade contida na obra flaubertiana, identificando-a, primeiramente, a partir das críticas tecidas ao romancista. Logo no início do prólogo do livro, o filósofo recorre à sentença de Barbey d’Aurevilly sobre a Educação sentimental: “não há livro ali dentro; não há essa coisa, essa criação, essa obra de arte de um livro, organizado e desenvolvido, que vai em direção a um desfecho” (1869 apud RANCIÈRE, 2017, p.7). A crítica é sintomática, ela evidencia a cisão que o filósofo identifica na obra do romancista. Conforme afirmava Michel de Certeau (1998, p.91-106; p. 266-268), a crítica pertence ao terreno das táticas, consiste em um instrumento de controle, no caso, não somente das leituras, mas também das práticas de escrita literária. Ela demarca, segundo a própria reflexão rancieriana, uma concepção de ficção literária vigente. Nesse caso, trata-se do regime representativo, presente na poética aristotélica, que define a ficção, positivamente, como uma “intriga de saber” que implica na construção poética o estabelecimento de uma ordem temporal (começo, meio e fim), de uma ordem causal regida pela verossimilhança, pela necessidade, pela subordinação dos detalhes e das partes ao conjunto da obra e também por certa proporcionalidade e correspondência entre a descrição, o pensamento e a ação.

Desse modo, para o crítico de Flaubert, sua obra transgredia esses princípios, logo ela era carente de elementos necessários para qualificá-la enquanto ficção. No entanto, para Rancière, não se trata de uma carência, mas sim do efeito da emergência de um novo “paradigma estético”, que não deixa de ser um “novo paradigma da vida”. Nesse sentido, o excesso descritivo presente no romancista – encarnado na presença do barômetro da sra. Aubain, em Um coração simples –, demarcaria não a deficiência de um elemento destoante e desnecessário, muito menos um efeito de real pelo qual Roland Barthes e a crítica estruturalista estipulavam o lugar da descrição inútil e demarcavam a tentativa burguesa de petrificação e naturalização da ordem social, mas um aspecto próprio ao regime estético.

Essa descrição inútil é, para Rancière, primeiramente a recusa à progressão do relato, e consequentemente uma recusa à ação, à submissão das partes – inclusive do detalhe – ao todo, ou seja, ao desfecho, que marca a poética representativa e seu modelo orgânico. A multiplicidade desses detalhes que antecedem ao ato, à ação, também são sintomas da ampliação e da complexificação das relações causais.

No entanto, segundo o autor, a poética aristotélica não é somente uma estrutura de racionalidade, mas “uma categoria organizadora de uma divisão hierárquica do sensível” (RANCIÈRE, 2017, p.21). Em outras palavras, a ordem representativa, na qual a ficção constrói-se como um corpo no qual os membros se submetem a um centro e as ações se ordenam pela necessidade ou pela verossimilhança, é também a metáfora de uma concepção do ordenamento social, segundo a qual os homens dividem-se hierarquicamente entre ativos e passivos. Nessa ordem, os aristocratas são ativos, pois podem conceber grandes fins ou outros fins e buscar sua realização, enquanto os demais – a grande maioria, o povo – são considerados passivos, não por sua inação, mas porque sua ação não pode conceber outro fim senão a mera reprodução da vida cotidiana (RANCIÈRE, 2017. p. 21). Essa distinção limitava, portanto, o acesso dos passivos à ficção, da qual não eram dignos devido às suas supostas capacidades sensíveis inferiores. É como contraponto a essa “política representativa” que o filósofo propõe sua leitura da obra flaubertiana. Desse modo, não somente o barômetro da sra. Aubain, mas principalmente Emma Bovary, são anunciadores de uma democracia ficcional própria ao regime estético. A presença do barômetro produz um “efeito de igualdade” entre os elementos da ficção, ele não está a serviço do real, nem da ação e muito menos do todo, enquanto Emma marca a igualdade sensível de todos: “a descoberta de uma capacidade inédita dos homens e das mulheres do povo de obter formas de experiência que lhes eram, até então, recusadas” (RANCIÈRE, 2017, p.19). Essa afirmação da capacidade sensível dos anônimos proporciona, de acordo com Rancière, um poder de desidentificação em relação à velha ordem representativa que articulava posições sociais, identidades e capacidades sensíveis. No entanto, esse poder dos anônimos é deles afastado para forjar o “poder impessoal da escrita” (RANCIÈRE, 2017, p.33). Dessa forma, segundo o autor, Flaubert incorpora em sua escrita o poder da “igualdade sensível dos anônimos” e dos “estados sensíveis coexistentes”, mas acaba por submetê-los à “velha lógica da ação” (RANCIÈRE, 2017, p.37).

No texto seguinte, A mentira de Marlow, dedicado à obra de Joseph Conrad, Rancière observa a radicalização desse novo regime da ficção. Se a obra flaubertiana evidenciava a debilidade dos encadeamentos causais orientados pelo necessário e pelo verossímil, próprios a uma concepção orgânica de totalidade (ta katholou), mas também subordinava a ordem das sucessões (kath’hekaston) e das coexistências ao curso de uma intriga ainda causal, os romances de Conrad recusam totalmente qualquer controle que tente se impor à verdade da ficção – que é também a verdade da vida –, ou seja, à ausência de qualquer ordem ou qualquer sentido.

Consequentemente, na obra de Conrad, a ordem que orienta a composição das ficções advém do kath’hekaston, não tomado como mera sucessão de fatos da vida cotidiana, mas como uma ordem das coexistências que não pode ser reduzida a qualquer ordenamento. Uma temporalidade das coexistências substitui, portanto, os encadeamentos possíveis. Mas não somente isso, para Rancière, o ceticismo do romancista inglês conduz a uma indistinção entre a ficção e o real, de modo que este real passa a englobar tudo, inclusive a ficção e o sonho. Dessa concepção ampliada do real decorre a destruição da verossimilhança, e toda a lógica da ação tradicional torna-se o indício de uma mentira. Mentira não somente sobre a ficção, mas principalmente sobre a própria vida.

Por conseguinte, de acordo com o filósofo francês, a narrativa de Conrad compõe-se, contrariamente à escrita de Flaubert, de modo a ampliar os círculos das coexistências, revelando-as e evidenciando a tirania mentirosa das intrigas bem construídas. Portanto, a ficção não deve mostrar a progressão rumo a um desfecho, mas tão somente esse “meio sensível” que é a própria vida, cuja única temporalidade é o presente, um presente que engloba tanto resquícios do passado quanto antecipações do futuro. Ela torna-se, desse modo, palco “de um encontro aleatório e inevitável entre um ser de desejo e de quimera, e uma realidade cuja síntese escapa a qualquer cálculo das causas e dos efeitos” (RANCIÈRE, 2017, p.54).

Contudo, Rancière indica que essa temporalidade das coexistências que recusa qualquer sentido, controle ou finalidade encontra certos limites impostos pela ficção. Um deles é o “fim”. Desse modo, se a mentira dos inícios é contornada por Conrad ao iniciar suas ficções com algum equívoco ou acaso desdobrando-o, a necessidade do ponto final, sempre mentiroso, não faz o romancista recuar em sua convicção. Pelo contrário, para o filósofo, os fins das ficções do capitão Conrad sempre reafirmam sua concepção mesmo quando mentirosos. Esses artifícios para encerrar o livro são basicamente dois: o recurso a um deus ex machina ou à mentira necessária (como no caso de O coração das trevas) que deixam transparecer, no entanto, a verdade da ficção.

O último texto do primeiro capítulo do livro aqui resenhado, A morte de Prue Ramsay, analisa a obra de Virginia Woolf. A romancista partiria, segundo a leitura rancieriana, dos mesmos pressupostos de Conrad. Dessa forma, a imagem que lhe traduz a verdade da vida e, conseguintemente da própria ficção, é a da “chuva sempre cambiante de acontecimentos sensíveis” e impessoais (RANCIÈRE, 2017, p.39). A verossimilhança e a necessidade não podem, portanto, regular a ficção, pois tanto a vida quanto a ficção pertencem à ordem do kath’hekaston (entendido como coexistência). Consequentemente, a intriga torna-se, para Woolf, uma tirania, que pode ser: paterna, em sua forma clássica; ou materna, em sua forma contemporânea, aquela que “ordena a grande rede das coexistências” e reduz a “chuva anárquica dos átomos às pequenas coisas e aos pequenos milagres da vida cotidiana” (RANCIÈRE, 2017, p.60).

Entretanto, o autor observa que a forma desta “chuva anárquica de átomos” é incompatível com a forma narrativa da ficção que precisa de uma mínima organização de ações. Nesse caso, a saída encontrada nos romances de Woolf consiste na prática de instaurar no próprio romance a “tensão entre várias maneiras de inscrever a chuva de átomos” (RANCIÈRE, 2017, p.64). Nessa prática, o filósofo distingue dois procedimentos complementares: por um lado, a multiplicação, pela qual se ampliam as redes das coexistências que conservam sua autonomia escapando a tirania de uma intriga que busca apropriar-se dessa multiplicidade; por outro lado, opera-se uma divisão, pela qual se separa a multiplicidade que evidencia o amor e a vida universais dos “prazeres conhecidos e das virtudes familiares” (RANCIÈRE, 2017, p.69) que compõem a tirania materna da intriga, mas também do equívoco dos que confundem toda multiplicidade da vida impessoal com mensagem individual, apropriando-se dela e submetendo-a a qualquer pessoalidade. Septimus Warren Smith, personagem de Mrs. Dalloway, vítima dessa segunda indistinção que se torna loucura, é também, aos olhos do filósofo, uma figura essencial da nova ficção, pois seu sacrifício resolve a “relação entre a verdade da chuva de átomos e a lógica mentirosa das intrigas” (RANCIÈRE, 2017, p.72), e impede igualmente que “o halo luminoso da vida universal” seja confundido com as “aspirações pessoais dos filhos do povo semieducados” (RANCIÈRE, 2017, p.74).

O segundo capítulo do livro, A República dos poetas, é composto por dois textos. O primeiro deles, O trabalho da aranha, é dedicado à obra de John Keats. Keats encarna, aos olhos de Rancière, uma das novidades do regime estético, pois ele é antes de tudo, como Emma e Septimus, um “filho do povo” que, no entanto, recusa a posição e a identidade que, de acordo com a ordem clássica, o nascimento lhe impunha. Contudo, a política de sua poesia, conforme assinala o filósofo, não se encontra na articulação do poema com as agitações sociais, os posicionamentos políticos, ou em seu sentido, mas em uma “identidade dos contrários” (RANCIÈRE, 2017, p.81).

Essa identidade dos contrários não os relaciona como “antípodas”, mas como “equivalentes”. Ela subverte a lógica da ação tradicional ao equiparar a atividade com a passividade, mais precisamente, ao fazer perceber na ação o seu contrário, a passividade, e nesta última um caráter ativo, liberto, no entanto, da necessidade dos fins ou da função utilitária que caracteriza a ação na ordem clássica. Essa subversão é observada por Rancière na “negative capability” forjada por Keats, a qual consiste em uma “‘capacidade de não’: não buscar uma razão […], não concluir, não decidir, não impor” (RANCIÈRE, 2017, p.85). Tal recusa à determinação é uma marca da própria estética e sua disponibilidade a todos destrói a “diferença sensível entre duas humanidades”, aquelas que orientavam o regime representativo e a “distribuição dos corpos em comunidade” (RANCIÈRE, 2017, p.86).

Na leitura rancieriana, essa identidade é produzida pelo estabelecimento de três formas de comunidade: a primeira é aquela estabelecida “entre os elementos tecidos pelos poemas: as palavras e a presenças que elas suscitam”; a segunda comunidade se constitui “entre os poemas e outros poemas: os que o poeta escreve e os que ele não escreveu”; a terceira forma de comunidade é “aquela que o modo de comunicação sensível próprio do poema projeta como possível comunicação entre os humanos”. A política do poema consiste, portanto, na “configuração de um sensorium específico que mantém juntas essas três comunidades” (RANCIÈRE, 2017, p.81-82).

Desse modo, a imagem que define, em grande medida, a interpretação que Rancière faz de Keats é da teia de aranha, pois ela pressupõe uma igualdade horizontal, a qual desconhecia qualquer superioridade, e que se opunha, a seu tempo, à igualdade vertical ou cristã, proclamada por Willian Wordsworth, que a reconhecia como concessão ou presença divina comum, o que evidenciaria, segundo Rancière, uma superioridade do poeta que a proclama. A igualdade da teia liberta, dessa forma, as sensações de qualquer identificação pessoal e faz da obra poética uma disponibilidade acessível a cada um, pela igualdade sensível, para integrar suas teias.

O outro texto desse segundo capítulo, O gosto infinito pela República, é dedicado a Baudelaire. A expressão que dá título ao ensaio, tomada do próprio poeta que a utiliza para caracterizar a obra de Pierre Dupont, serve igualmente a Rancière para caracterizar uma categoria estética ou uma política estética presente na obra baudelairiana, que marca a participação de todos na Vida Universal, esta compreendida como um poder que perpassa e iguala a todos.

Entretanto, para compreender esse “republicanismo estético” é preciso, afirma o filósofo, distanciar-se da “interpretação benjaminiana”, demasiadamente centrada no “dado antropológico constitutivo da modernidade: o da perda da experiência, produzida pela reificação mercantil e pelo encontro da cidade grande e da multidão” (RANCIÈRE, 2017, p.103). Desse modo, essa interpretação que percebia nos escritos do poeta a substituição do modelo orgânico por um modelo inorgânico é incapaz de perceber a novidade contida em sua obra ou, mais precisamente, o “tecido estético” dentro do qual esse republicanismo ganha sentido.

Para apresentar esse “paradigma poético” da época, Rancière analisa os temas do heroísmo e da beleza modernos. O que ambos evidenciam e que permeia toda a época romântica é a falência da ação, da ação como modo de pensamento e racionalidade que normatiza os “comportamentos sociais legítimos” e a “composição das ficções” (RANCIÈRE, 2017, p.108). Essa falência é, para o filósofo, fruto do excesso, da ampliação e complexificação do mundo e do conhecimento, pois a ação demandaria “um mundo finito”, “um saber circunscrito”, “causalidades calculáveis” e “atores selecionados” (RANCIÈRE, 2017, p.108). A leitura rancieriana de Baudelaire é, consequentemente, tributária de Balzac, pois seria dele que o poeta teria tomado não somente a característica da beleza moderna, ou seja, o “flutuante”, a fugacidade, mas, sobretudo, a percepção do divórcio entre o saber e a ação. Em outras palavras, desde Balzac o mundo social perdera-se gradativamente em “infinitas ramificações”, e o tema perdera-se, igualmente, em uma “rede infinita de sensações” (RANCIÈRE, 2017, p.111-112), tornando o tecido sensível incompatível com a ação clássica. Essa ampliação também produziria um efeito de desidentificação, positivado pelo filósofo. A multidão, portanto, não igualaria a todos, mas, pelo contrário, o olhar sobre ela abrir-se-ia para a sua multiplicidade.

No último capítulo de O fio perdido, O teatro dos pensamentos, Rancière analisa a relação entre “o pensamento, a palavra e a ação no teatro moderno” (RANCIÈRE, 2017, p.123) ou, mais precisamente, no chamado teatro popular. Sua análise parte do diagnóstico, dado por Barthes, de “aburguesamento” do Théâtre National Populaire (TNP), de Jean Villar, sobretudo pela atuação de Gérard Philippe, seu maior astro nos anos 1950, para retomar a longa história do teatro moderno.

O primeiro protótipo do teatro popular é encontrado por Rancière no princípio do “palco aberto”, formulado por Victor Hugo. Este consistiria não somente na destruição das convenções ligadas aos gêneros, mas na “mistura de tudo” como na vida, “um igualitarismo radical” (RANCIÈRE, 2017, p.126). Esse palco aberto ao povo celebrava, no entanto, algo maior que ele. Celebrava, segundo tal leitura, a vida universal que ultrapassa todas as individualidades, constituindo uma dramaturgia da coexistência.

Porém, a reflexão de Hugo detém-se aí. O teatro representa, contudo, não apenas uma metáfora do ordenamento social, mas é também uma metáfora do pensamento, afirma o filósofo. Nesse sentido, duas imagens governaram historicamente a relação entre pensamento e teatro: uma negativa ou platônica opõe um ao outro, fazendo do teatro o reino da imagem, da mentira do poeta e do ator, da ilusão e da passividade, do excesso e da paixão, o contrário do pensamento; e há uma imagem positiva, a aristotélica, que faz do teatro uma “intriga de saber”, um “modelo de racionalidade”, ou do “pensamento em ato”, no qual “o espaço visível da representação é dado como o lugar de efetuação de um esquema” e a palavra adere e expressa o pensamento, controlado por uma vontade, anunciando o ato (RANCIÈRE, 2017, p.128-29). A subversão da segunda imagem dessa relação é encontrada por Rancière nos trabalhos de George Büchner. Em sua obra o modelo orgânico é substituído por um modelo vivo, resultado de uma nova concepção do meio da ficção, não mais entendido como intervalo entre um início e um fim, mas como uma rede infinita que ultrapassa qualquer forma de unidade, seja a do organismo seja a da ação.

O pensamento torna-se desse modo, sinônimo do excesso, afirma o filósofo. Suas operações infinitas excedem o corpo, a palavra, o gesto e o ato, e a sua origem e fim imprecisos impedem que qualquer vontade possa controlá-lo. Isso não significa que ele não age, mas que o modelo de sua ação verdadeira, aquele que desconhece suas origens e fins, opõe-se à forma da ação racional controlada do modelo aristotélico, e a sua nova forma será, pelo contrário, a do sonho ou do sonambulismo. Essa nova imagem do pensamento faz da imagem aristotélica do teatro como “intriga de saber” uma mentira, um equívoco sobre a natureza, a forma e a origem do pensamento, bem como sobre o modo como ele ganha corpo e age.

Como consequência dessa nova concepção do pensamento no palco, Rancière observa o surgimento de uma “arte da direção” que compreende duas modalidades: a primeira, presente nas reflexões de Maurice Maeterlinck, faz da direção a “arte da disposição das palavras no espaço” (RANCIÈRE, 2017, p.142), atribuindo à palavra não uma função de anunciar o pensamento ou o ato, mas de evidenciar o meio sensível, o “fora-do-espaço”, que é o lugar desse pensamento tomado como excesso. Ela demarca, dessa forma, a distância entre o verdadeiro pensamento e as pretensões da intriga clássica. Asegunda modalidade é proveniente, entre outros trabalhos, das atuações de Jean-Gaspard Deburau no Théâtre dês Funambules, e “consiste em bordar na trama ficcional das causas e efeitos um cenário de pura atuação”, uma atuação que consiste não na representação, mas na pura ação dos corpos (RANCIÈRE, 2017, p.144-45).

O teatro moderno que culmina no TNP é, portanto, marcado por essa disjunção entre o pensamento, caracterizado pelo excesso, a palavra, cuja função é evidenciar a distância que marca o meio seio sensível do palco, e o ato, tomado como pura atuação dos corpos. Para Rancière, essa longa história é ignorada no juízo de Barthes, que toma por base a oposição brechtiana entre um teatro da identificação e um teatro do distanciamento, pela qual Brecht buscava restabelecer o vínculo entre o prazer estético e o saber necessário para a ação revolucionária. Essa oposição omite essa história, pois, como concepção “revolucionária”, ela busca restabelecer a velha lógica da ação em crise desde o século XVIII. Desse modo, a “questão pela qual a política está ligada ao teatro não é saber como sair do sonho para agir na vida real; é a de decidir o que é o sonho e o que é a vida real” (RANCIÈRE, 2017, p.149).

Embora O fio perdido de Rancière consista em um livro dedicado à ficção, sua leitura inquietante não se limita aos interesses do crítico literário ou do ficcionista, indo além desses limites. Ao reconhecer, como White, que a constituição da História, e mesmo, das Ciências Sociais, enquanto saberes e disciplinas modernas ou ciências é tributária do modelo da poética tradicional, centrado na lógica da ação e da intriga causal, e que a própria poética representativa é igualmente uma concepção de comunidade ou de um ordenamento social, Rancière fornece novos elementos para a compreensão de aspectos que permeiam a constituição do campo de trabalho e das práticas dos historiadores. Desse modo, cabe também questionar, a partir desses indícios da falência da ação e desses deslocamentos nas práticas da escrita ficcional, suas possíveis consequências no campo da historiografia e das ciências da sociedade.

É intrigante, igualmente, refletirmos acerca dos contrastes entre, de um lado, essa emergência de um regime estético na ficção desde o final do século XVIII, identificada nesse conjunto de ensaios de Rancière, cuja marca fundamental consiste em uma crescente abertura, pluralização ou multiplicação heterogênea do social, da noção de acontecimento e de pensamento, e do próprio vínculo entre pensamento, palavra e ação. Por outro lado, no que tange à historiografia, mas também à ampla parcela do pensamento filosófico, sociológico e antropológico, observamos, nesse mesmo período, um crescente processo de unificação, homogeneização e hierarquização da temporalidade histórica e do conjunto dos recursos conceituais de análise histórica, sociológica e antropológica. Portanto, trata-se de uma leitura fundamental, pois implica um conjunto de problemas cruciais às ciências humanas tanto em sua origem quanto na contemporaneidade.

Nota

2 Rancière participou inclusive do primeiro volume da obra Ler O capital, coordenada por Louis Althusser (1979).

Referências

ALTHUSSER, Louis; RANCIÈRE, Jacques; MACHEREY, Pierre. Ler O Capital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 1v.

CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 91-106

. ______. Ler uma operação de caça. In: ______. A invenção do cotidiano: Artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 259-276.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

______. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2005.

______. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon (Org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-49.

WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica no século XIX. São Paulo: Editora da USP, 1992.

Cássio Guilherme Barbieri – Mestrando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humana da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim. Graduado em História pela UFFS – Campus Chapecó. É membro do Laboratório Escrita, Memória e Arte (LEMA) e do Grupo de Estudos Teoria da História, ambos vinculados ao Curso de História da UFFS. E-mail: [email protected]


RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2017. Resenha de: BARBIERI, Cássio Guilherme. Estética, política e historiografia: indícios da emergência do regime estético na ficção moderna. Aedos. Porto Alegre, v.11, n.25, p.627-636, dez., 2019. Acessar publicação original [DR]

Vozes em fragmentos na poesia de Chico: uma arquitetura polifônica? – KOGAWA (B-RED)

KOGAWA, João. Vozes em fragmentos na poesia de Chico: uma arquitetura polifônica? Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2018, 170p. Resenha de: MAGALHÃES, Anderson Salvaterra. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, v.14 n.2, São Paulo Apr./June, 2019.

Fragmentação e reconceituação nuclear são duas características distintivas dos tempos atuais se estes tempos são considerados emoldurados pela condição (ou condições) pós-moderna(s). Seja essa moldura pós-moderna desenhada pelo fim das metanarrativas, como discutido pelo filósofo francês Jean-François Lyotard (2000) 1, ou entendida como uma liberação de símbolos culturais, de acordo com o também filósofo francês Danny-Robert Dufour (2005)2, ou como tempos líquidos, de acordo com o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (2007) 3, entre outras formas de tentar capturar o que tem acontecido com as organizações sociais especialmente na cultura ocidental, parece consenso que valores nucleares têm sido revistos. E essa revisão de valores leva à reconceituação de relações e instituições em geral. Não apenas relações e identidades sociais têm sido repensadas, como também modos de teorizar, o que geralmente leva a um relativismo de valores uma vez aceitos como absolutos ou, pelo menos, sólidos e estáveis. Então, um leitor contemporâneo pode pegar um par de óculos pós-modernos para simplesmente dar uma olhada ou para escrutinizar cuidadosamente o livro de Kogawa e se perguntar o que efetivamente está em jogo ali.

Bem, em Vozes em fragmentos na poesia de Chico, como indicado na pergunta posta no subtítulo do livro – uma arquitetura polifônica? -, o leitor encontra um contundente exercício teórico em torno do conceito bakhtiniano de polifonia que contribui para o entendimento de uma luta política flagrante no e pelo trabalho ético e estético com a linguagem num período da história brasileira que tem sido objeto de disputa conceitual: a ditadura militar. Porém, a fim de se engajar na discussão de Kogawa e tirar proveito de sua riqueza, o relativismo que pode derivar de uma posição pós-moderna deve dar lugar a um questionamento fundamentado em valores modernos. De outro modo, corre-se o risco de perder a questão. Como assim? Uma breve análise da estrutura do livro deve responder a esta pergunta.

Professor de Análise do Discurso na Universidade Federal de São Paulo, autor também de Linguística & Marxismo: condições de emergência para uma teoria do discurso francesa no Brasil (KOGAWA, 2015), Kogawa tem se ocupado há algum tempo do modo como se teoriza o discurso no âmbito acadêmico brasileiro, e esta nova obra só corrobora sua trajetória de reflexão. Logo após os agradecimentos usuais, há um prefácio bem informativo escrito por Renata Coelho Marchezan, que destaca a relevância do livro no conjunto de trabalhos em torno do Círculo de Bakhtin que enfrentam o desafio de lidar com um produtivo e difundido pensamento – o pensamento dialógico – sem cair na banalização. Dentre os conceitos vulgarizados, polifonia é sem dúvida um dos conceitos de mais difícil abordagem, e Marchezan antecipa que Kogawa identifica e problematiza a homogeneização dos conceitos de polifonia, dialogismo e heterodiscursividade. Esta é a primeira pista de que em Vozes em fragmentos na poesia de Chico: uma arquitetura polifônica? não há relativismo conceitual, e sim refinamento.

Na introdução, Kogawa afirma claramente o objetivo do livro: propor “uma leitura do conceito de polifonia em Bakhtin” (p.17) e anuncia que faz tal leitura perseguindo as bases filosóficas do conceito e analisando a relação autor-herói em letras de algumas canções compostas por Chico Buarque de Holanda durante a ditadura militar no Brasil. Ele antecipa que mobiliza polifonia pela negativa, isto é, identificando um modo não-polifônico de (se) enunciar. Letras de canções em que as vozes de grupos socioeconomicamente marginalizados são personificadas num sambista, numa prostituta, num pedreiro, dentre outros, são selecionadas para compor uma cadeia discursiva em que não se encontram múltiplas vozes sociais equipolentes, mas diferentes modos de sustentar uma postura. Ele deixa para o terceiro capítulo os detalhes que corroboram essa afirmação.

É no primeiro capítulo que Kogawa efetivamente lança os fundamentos modernos de sua discussão. Isso não quer dizer que a discussão seja ultrapassada. Pelo contrário, mostra-se altamente relevante em tempos em que conceitos básicos e nucleares, como o de ditadura, têm sido relativizados e consequentemente esvaziados. No livro, o autor dá especial atenção ao conceito de polifonia e, através da análise de uma cadeia discursiva particular da poesia de Chico, procede a um refinamento conceitual indicando que se trata de um fenômeno discursivo bastante raro. Por causa disso, não deve haver depreciação de modos não-polifônicos de (se) enunciar. Debaixo do guarda-chuva do dialogismo, é a responsabilidade ética que garante a relevância histórica e cultural do engajamento na cadeia discursiva.

Esse trabalho conceitual é desenvolvido no primeiro capítulo em quatro etapas. Primeiro, a natureza dialógica da linguagem é definida a partir da visitação de importantes obras do Círculo, como Marxismo e filosofia da linguagem, de Volóchinov (1986) 4. Dessa grande obra, Kogawa recupera a ideia de que a linguagem não é um sistema abstrato, nem uma produção solipsista individual, mas uma realidade viva resultante das relações estabelecidas nos e pelos grupos sociais. Por isso, argumenta, a linguagem tem uma natureza dialógica, social e histórica, e as instâncias singulares de sua atualização apresentam manifestação material que faz sentido num enquadre sociocultural. Isso é crucial para entender, por um lado, a discussão conceitual sobre polifonia e, por outro, para entender o processamento semântico da cadeia discursiva selecionada da poesia de Chico. A natureza dialógica, social e histórica da linguagem atualiza e dá visibilidade àquilo que é posto em questão na relação autor-herói nas letras de canções analisadas.

Em segundo lugar, a relação autor-herói propriamente dita é escrutinizada não apenas, mas principalmente, pelo exame do ensaio O autor e a personagem na atividade estética (BAKHTIN 1990)5. Kogawa é cauteloso em fazer referência a traduções recentes para o português dos ensaios e livros do mestre russo. Isso lhe permite discutir questões da recente história brasileira em sintonia com a agenda dos estudos bakhtinianos no Brasil. Então, encontra-se no livro uma proveitosa discussão sobre como as posições estéticas de autor e herói revelam a responsabilidade ética implicada na cadeia discursiva das letras de Chico.

Em terceiro lugar, a ideia de cadeia discursiva propriamente dita é discutida. Kogawa demonstra que, no pensamento dialógico a realidade da linguagem é necessariamente interacional, e que se pode distinguir monologismo de dialogismo no modo como o autor se relaciona com o herói. Se a linguagem é preponderantemente dialógica, o modo como as relações estéticas são construídas pode variar, e essa variação pode mostrar uma tendência monológica ou dialógica. Embora não mencione explicitamente os recentemente divulgados ensaios intitulados Diálogo I: a questão do discurso dialógico (BAKHTIN 2016a) e Diálogo II (BAKHTIN 2016b), Kogawa faz referência à edição em que esses ensaios são publicados em português, e sua composição retórica da leitura do trabalho de Bakhtin indica a coerência que se encontra no conjunto de ensaios do pensador russo, a despeito do modo não-linear que seus pensamentos foram distribuídos na Rússia e alhures.

Em quarto lugar, Kogawa coloca a questão: quando um discurso é polifônico? Então, fecha a discussão conceitual insistindo que a condição polifônica, isto é, a equipolência de diferentes vozes sociais na relação que o autor estabelece com o herói, é um arranjo estético bem peculiar e bastante pitoresco. Por isso, não é eticamente apropriado para toda e qualquer condição histórica de (se) enunciar.

No segundo capítulo, são identificados e descritos os elementos que disparam a cadeia poética a ser analisada. O cenário político é retratado em suas consonâncias e dissonâncias. A ditadura militar não é negada nem mitificada. É descrita como um tempo de coerções com múltiplas tendências, mas também como um tempo de respostas criativas. Baseado especialmente no trabalho do jornalista Elio Gaspari, Kogawa descreve a posição política militar como segmentada em duas tendências em tensão interna: as chamadas linha dura e não-dura. Nesse sentido, o governo ditatorial é apresentado não como um bloco político coerente, mas como uma instância histórica dinâmica e controversa. É este dinamismo que constitui terreno fértil para a produção de respostas criativas e responsáveis.

No terceiro e último capítulo, Kogawa analisa os tipos heroicos que Chico desenha, especialmente nas letras de quatro canções: Geni e o Zepelim, O malandro nº 2, Construção e Pedro, pedreiro. O autor mostra que as canções constituem modos responsáveis de (se) enunciar naquele momento histórico específico e, dessa perspectiva, consistem respostas críticas cujo objetivo envolve o apagamento das vozes dos heróis tornando-os construções imagéticas. Desse modo, a relação autor-herói instanciada é não-polifônica. Em suas próprias palavras, “O autor-criador constrói um ambiente hostil para as personagens e isso implica um mundo permeado por disparidades […] Sob essa ótica, neste capítulo, esses mundos artísticos servem como concretização desse discurso crítico que se configura como anti-conservador” (p.118). Kogawa demonstra, então, que essa posição crítica se realiza pela mobilização de três dimensões axiológicas: (i) religiosa, (ii) política e (iii) econômica. E continua: “A voz autoral, ao mobilizar sua crítica, coloca-se, direta ou indiretamente, ao lado dos despossuídos como forma de denunciar certas insensibilidades cotidianas que têm as parcelas menos prestigiadas da sociedade burguesa como alvo” (p.118).

A dimensão axiológica religiosa, por exemplo, é decisiva para processar a crítica flagrante em Geni e o Zepelim. Na canção, a redenção da cidade é efetuada pela prostituta que, a despeito de qualquer orgulho ou autopreservação, sacrifica-se para salvar os cidadãos que, no final, esquecem seu feito e a apedrejam cruel e covardemente. Enunciativamente, isso é construído pelo contraste entre os valores projetados sobre Geni, a prostituta que é apresentada em terceira pessoa do discurso, e os valores sustentados pelo coro, cuja voz mostrada em citação direta dá sentido a um tom moralista hipócrita.

Assim, a canção é um embate de vozes em que, de um lado, situa-se a voz do coro representante da moral e dos ‘bons costumes;’ de outro lado, há o posicionamento autoral – excedente da visão estética – como configurador de um universo que questiona os valores dogmáticos da cidade (p.145).

Emoldurando as canções por tais dimensões axiológicas, Kogawa mostra dialogicamente a estratificação sociolinguística flagrante na poética da cadeia selecionada. Demonstra que o modo como Chico Buarque, na condição de autor-criador, se relaciona com os tipos heroicos nas letras das canções constitui uma resposta válida ao contexto ditatorial em que a cadeia foi disparada. Embora essa resposta tenha se realizado por uma arquitetura não-polifônica, seu comprometimento ético justifica e valoriza a poesia. Então, as vozes em fragmentos que se escutam no livro não correspondem aos estilhaços de sentidos líquidos com os quais se pode deparar no funcionamento pós-moderno. Pelo contrário, esses fragmentos revelam a contundência de uma posição firme e brava em tempos ferozes.

1LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. 6.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

2DUFOUR, D-R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.

3BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007.

4VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na Ciência da Linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Volkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

5BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: ______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.3-194.Traduzido pelo autor.

Referências

BAKHTIN, M. Author and Hero in Aesthetic Activity. In: BAKHTIN, M. Art and Answerability: Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. Edited by Michael Holquist and Vadim Liapunov. Translated by Vadim Liapunov. Austin, TX: University of Texas Press, 1990, p.4-256. [ Links ]

BAKHTIN, M. Diálogo I. A questão do discurso dialógico. In: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a, p.113-124. [ Links ]

BAKHTIN, M. Diálogo II. In: Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016b, p.125-150. [ Links ]

BAUMAN, Z. Liquid Times: Living in an Age of Uncertainty. Cambridge, UK: Polity Press, 2007. [ Links ]

DUFOUR, D-R. The Art of Shrinking Heads. Cambridge, UK: Polity Press, 2008. [ Links ]

KOGAWA, J. Linguística e Marxismo: condições de emergência para uma teoria do discurso francesa no Brasil. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2015. [ Links ]

LYOTARD, J-F. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge. Translated by Geoff Bennington and Brian Massumi. Minneapolis: University of Minnesota, 1984. [ Links ]

VOLOŠINOV, V. Marxism and the Philosophy of Language. Translated by Ladislav Matejka and I. R. Titunik. Cambridge, London: Harvard University Press, 1986. [ Links ]

Anderson Salvaterra Magalhães – Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Linguísticos, Guarulhos, SP, Brasil; https://orcid.org/0000-0003-3183-1192; [email protected]

Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo – TENNINA (A-EN)

TENNINA, L. Cuidado com os poetas ! Literatura e periferia na cidade de São Paulo. Tradução de Ary Pimentel. Porto Alegre: Zouk, 2018. 315p. ¡Cuidado con los poetas! Literatura y periferia en la ciudad de São Paulo. Rosario: Beatriz Viterbo, 2017, 363 p.. Resenha de: PIMENTEL, Ary. Por uma ressignificação da poesia e do lugar do poeta. Alea, Rio de Janeiro, v.21 n.1, jan./apr. 2019.

Certa vez um rapper de São Paulo reescreveu um clássico da MPB, deslocando o lugar de enunciação do discurso para as periferias de São Paulo. E, então, a letra de “Cálice” ganhou uns versos assim:

Os saraus tiveram que invadir os botecos

Pois biblioteca não era lugar de poesia

Biblioteca tinha que ter silêncio,

E uma gente que se acha assim muito sabida

Na letra do rap “Subirusdoistiozin” (segunda faixa do CD Nó na orelha), Criolo, o mesmo autor que antropofagizou e atualizou a poesia de protesto do cantautor Chico Buarque, voltaria a falar de uma cena cultural que, quase imperceptivelmente para os diferentes âmbitos do mundo letrado, começava a tomar conta de certos territórios da cidade:

As criança daqui ‘tão de HK

Leva no sarau, salva essa alma aí

Poucos, muito poucos, na verdade, umas poucas pesquisadoras atentaram para essa produção “fora do retrato” que despontava nas margens do cânone e nas margens da cidade. A um pequeno grupo no qual se destacam Érica Peçanha, Regina Dalcastagnè, Ingrid Hopke e Rafaella Fernandez – as quais por diferentes motivos haviam se aproximado da cena que gestava uma nova literatura nas periferias de São Paulo nos primeiros anos do século XXI -, veio a se somar o nome da argentina Lucía Tennina. Em Cuidado com os poetas! Literatura e periferia na cidade de São Paulo, a professora de Literatura Brasileira na Universidade de Buenos Aires traz para o leitor a possibilidade de um mergulho profundo na produção literária brasileira do presente e o faz com um olhar no qual se reúnem o perto e o longe, no intenso processo de construção de uma terceira dimensão que poderíamos chamar de “entre-lugar” da crítica. E dizer isso não é dizer pouco, se lembramos de Pierre Bourdieu que, em Homo academicus, já assinalava que os dois grandes problemas do discurso científico são o excesso de distância e o excesso de proximidade. Conforme Bourdieu, existe um certo repertório que não se pode acessar (ou saber) a menos que o sujeito consiga fazer parte do universo abordado. Mas é justamente a condição de “fazer parte de…” que implica uma inescapável proximidade onde reside tudo aquilo que não se pode ou não se quer saber. É isso. A escrita exige proximidade. Mas também distância. De fato, um lugar que reúna as duas condições anteriores.

Resultado de uma longa experiência de imersão na periferia e de profundas reflexões teóricas que se desenvolveram ao longo de anos e de várias publicações sobre o tema, este livro de Lucía Tennina traz os rigorosos estudos comparatistas de quem começou a estruturar seu discurso de dentro do próprio circuito de saraus que se organizam nos botecos das quebradas paulistanas depois de 2001.

Entremos aos poucos nesse mundo-tecido-tessitura tão rico, para desfrutar mais da caminhada. A melhor abordagem do objeto encontrada por Lucía Tennina é aquela construída a partir do dispositivo da distância e da proximidade: o olhar estrangeiro, o olhar de quem se aproxima aos poucos, rondando poetas e poemas, para provar, a partir do contato cotidiano com o ambiente dos saraus, diferentes tentativas de intervenção no debate crítico da literatura marginal da periferia. Inevitável é lembrar de um poema que aparece em 21 gramas, terceiro livro de Marcio Vidal Marinho (2016), um dos frequentadores assíduos do Sarau da Cooperifa. O poema “Álvaro de Campos foi à Cooperifa” bem poderia vertebrar o primeiro capítulo de Cuidado com os poetas! Nesse momento do livro, a pesquisadora argentina aprecia o cenário e nos conduz pela cena poética da periferia, destacando os aspectos que marcaram a formação do circuito de saraus nas quebradas paulistanas. E o faz com os mesmos olhos dessa figuração poética de Álvaro de Campos, olhos (aparentemente) desarmados e (profundamente) apaixonados de quem vem de longe, de quem não está, mas que, ao mesmo tempo, é claro que está em seu ambiente quando penetra nesse Sarau da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), um movimento cultural que em outubro de 2018 completou 17 anos de atividades poéticas no bar do Zé Batidão, situado no bairro de Piraporinha, Zona Sul de São Paulo:

Chegou cedo e viu o bar vazio […]

Relutara em vir

Quando soube que era na periferia. […]

19h30

Algumas pessoas começam a chegar […]

O local é um bar típico de favela

Pela fama achou que seria mais bonito,

Pinturas desgastadas, mesas grudadas.

As paredes que vão de encontro à rua

Não existem, são grades, como se fosse uma jaula.

Próximo ao balcão, uma estante de livros

Que se amontoam sem nenhuma ordem. […]

Quando dá por si, não há mais lugares vazios,

O bar está inteiramente ocupado.

Pessoas de todos os tipos […]

Uma pessoa vai ao microfone

Agradece a presença de todos

E relata que todos são bem vindos. […]

Chama um grito de ordem

Todos o acompanham:

Povo lindo, povo inteligente, é tudo nosso,

Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! Uh, Cooperifa! (MARINHO, 2016, p. 70-72)

No cenário dominante de uma literatura que tem cor, gênero, CEP e um capital cultural longamente acumulado nos âmbitos da cidade letrada, Lucía Tennina lança seu olhar para sujeitos que, oriundos do mundo do trabalho e moradores da periferia, passam semanalmente por esse e por inúmeros outros microfones dos novos saraus organizados nos bares das periferias: Akins Kintê, Alisson da Paz, Binho Padial, Dugueto Shabazz, Fernando Ferrari, Fuzzil, Luan Luando, Marco Pezão, Michel Yakini, Jairo Periafricania, Renan Inquérito, Rodrigo Ciríaco, Serginho Poeta, Sérgio Vaz, Seu Lourival, Zinho Trindade e tantos outros. Trata-se de uma verdadeira tribo que, dispersa pela cidade, povoa o circuito literário marginal da periferia, trazendo novos posicionamentos de sujeitos através da literatura e propiciando um olhar rico sobre os deslocamentos e negociações desse objeto radicalmente plural estudado nos dois primeiros capítulos do livro: os saraus de poesia da periferia de São Paulo.

A crítica acertou na descrição do fenômeno periférico, destacando uma produção que traduz a potência dos novos atores do campo cultural, mas não exime a cena de conflitos e contradições. Apesar da grande quantidade de trabalhos sobre a cultura das periferias, poucos foram os textos que apontaram os problemas derivados do machismo e da misoginia nesse cenário das quebradas, e menos ainda os que se interessaram em reconstruir a presença e o lugar das mulheres nessa nova dimensão do campo literário. Diante disso, cabe enfatizar a importância do terceiro capítulo do livro intitulado “As poetas da periferia: imaginários, coletivos, produções e encenações”. Nessas páginas, Lucía Tennina focaliza o fenômeno da chegada das mulheres aos bares da periferia e, discutindo as estratégias e os modos de produção das “minas”, proporciona uma nova compreensão do lugar diferenciado da mulher no processo de empoderamento dos sujeitos nesse grande quilombo cultural das quebradas paulistanas.

Podemos mesmo dizer que outro mérito de Lucía Tennina é produzir um segundo deslocamento dentro de um tema que já é inovador, trazendo para o centro dos estudos da literatura marginal da periferia a experiência do subalterno dos subalternos. A proposta lança luz sobre a situação específica das poetas num mundo literário que emergia nas periferias e já prenunciava, nesse mal-estar identificado por Tennina, o surgimento de um novo circuito poético que se distanciaria dos saraus de poesia, assumindo características próprias e potencializando as performances e dicções das poetas. O protagonismo feminino foi construído, portanto, em uma outra cena, diferente da anterior, porque, no espaço dos saraus, seu papel era o de “musas” e não o de poetas, ficando o silenciamento oculto sob o disfarce da admiração de sua beleza, o que era também uma forma de apagamento da diferença.

Essa questão transcendia a cena na medida em que implicava valores e imaginários há muito reproduzidos pelos que tentaram, por séculos, disciplinar e se apropriar do corpo feminino. Nesse sentido, o livro amplia seu alcance descritivo-histórico, o que torna mais complexa a mirada para o mundo dos saraus da periferia, tendo em vista que esse olhar permite repensar as lutas das mulheres em diferentes contextos sociais ou culturais nos quais elas foram o Outro do Outro, conforme assinala Lucía Tennina, antecipando-se a um dos subtítulos de O que é lugar de fala?, de Djamila Ribeiro. Nessa medida, a leitura nos envolve no debate sobre a história da representação e da autorrepresentação das mulheres em geral e das mulheres negras e de origem nordestina em particular. Não restam dúvidas quanto ao papel que nessas disputas tiveram nomes como Elizandra Souza e Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota), com publicações marcantes como Águas da cabaça (Edição do Autor, 2012) e De passagem mas não a passeio (Global, 2008). Se o surgimento dos três números especiais da revista Caros Amigos e a organização do Sarau da Cooperifa foram determinantes para que pudesse emergir um novo sujeito nas margens da literatura, as vozes de Elizandra e Dinha seriam precursoras de uma nova geração que se expressaria a partir do seu lugar de fala, elemento central para a emergência de outra cena ainda muito incipiente no final da primeira década do século XXI, a dos campeonatos de poesia falada ou Poetry Slam.

No quarto e último capítulo, o livro aborda uma série de questões não trabalhadas anteriormente, passando, quase que em um livro à parte, a abordar os casos específicos de Ferréz e Alessandro Buzo, narradores que conseguiram ser lidos e reconhecidos fora das fronteiras do território. Uma das questões centrais que Cuidado com os poetas! enfrenta nesse capítulo é a de quais seriam as negociações necessárias aos subalternizados para construir um lugar no campo literário e como, a partir de uma nova rede de relações, se dá o ativamento de certas estratégias a fim de dominar uma posição de autor. Esse capítulo procura respostas para estas perguntas. Para além das diferenças entre os dois nomes, sobressaem as operações agenciadas por cada um deles para construir o que Tennina chama de “lugar de autor”. Para isso, a autora guia o leitor através de um percurso pela vida de Ferréz e Buzo no qual ficam aparentes as respectivas estratégias de construção da figura do escritor. Transcendendo aquilo que Feréz sinaliza na introdução da edição Tusquets de Capão pecado, onde propõe as páginas de seu primeiro romance como uma vestimenta de palavras que lhe dá um lugar de autor, os dois mobilizam diferentes recursos, operações e procedimentos para conquistar um lugar no campo cultural, indo da criação de um nome artístico (Ferréz) à manutenção de um blog no qual se registram as leituras que vão gradativamente formando a imagem pública do escritor (Buzo).

Narradores como Ferréz ou Buzo, poetas como os da Cooperifa ou os que integram os demais saraus de poesia das quebradas paulistanas transformam de dentro as instituições que definem a consagração e o pertencimento ao campo literário, lutando para trazer o protagonismo para a periferia. Esses escritores já não estão falando só entre eles. Trata-se da formação de redes complexas, às quais são incorporados os grupos mais jovens formados por sujeitos oriundos de outros lugares da cultura. O que está em jogo é o que a gente entende como arte, como literatura ou como poesia.

Assim, os conceitos estéticos são reestruturados sob nova forma e a partir de novas regras, constituindo uma esfera formada para além das normas e capitais convencionais. O livro de Tennina aporta um novo lugar de mirada para a poesia. E, a partir desse olhar que conduz o nosso, conseguimos nos dar conta do brotar de uma nova produção e de uma cena cultural centrada no papel da “poesia” e na figura do “poeta”, as quais contribuem de modo muito particular para a ressignificação desses vocábulos.

Sergio Vaz, criador da Cooperifa, insiste em que “a periferia é um país”. O que faz Lucía Tennina é uma bela, profunda e necessária cartografia da literatura desse novo país.

Assim, essa jovem professora argentina oferece uma contribuição fundamental para a crítica literária brasileira. Ler a obra de Lucía Tennina é poder viver intensamente a cena pulsante da literatura marginal da periferia. Nesse sentido, não seria excessivo afirmar que ela consegue escrever o livro que pretendia, uma obra potente que nos impacta e transforma o olhar que nós brasileiros lançamos para as culturas das nossas periferias.

Esperamos a publicação de mais textos como esse, que lança uma nova luz sobre o desenvolvimento de nossa primavera periférica.

Referências

MARINHO, M.V. 21 gramas. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2016. [ Links ]

Ary Pimentel. Professor de Literaturas Hispano-Americanas no Departamento de Letras Neolatinas da Faculdade de Letras (UFRJ). Mestre (1995) e Doutor (2001) em Literatura Comparada pela UFRJ e realizou estágios de Pós-doutorado no PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) – UFRJ, em 2016, e na Universidad de Buenos Aires, em 2017. E-mail: [email protected]

Acessar publicação original

[IF]

 

Espanca | Luz Ribeiro

Um novo fenômeno de poesia oral e performática cresce no mundo contemporâneo: são os chamados slams — competições ou batalhas de poesias que dão vez e voz a poetas da periferia, os quais versam sobre as adversidades do seu cotidiano, abordando temas como racismo, violência, drogas, machismo, sexismo, sempre de teor crítico e engajado, que requerem a escuta, a reflexão e a politização do seu público-ouvinte.1 Leia Mais

Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII – DARNTON (FH)

DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Tradução de Rubens Figueiredo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, 228p. Resenha de: PAIVA, Thayenne Roberta Nascimento. Música e oralidade na queda do Antigo Regime. Faces da História, Assis, v.4, n.2, p.249-255, jun./dez., 2017.

Em 2014, a Companhia das Letras publicou o mais recente livro do historiador norte-americano Robert Darnton, intitulado Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII, que teve publicação original em inglês, pela Cambridge, nos EUA, em 2010. Em linhas gerais, o livro destina-se a percorrer circuitos difusos de comunicação e intrigas políticas, que culminaram em uma série de poemas e canções populares sediciosas, e, portanto, de protesto e de cunho difamatório, na Paris de meados do século XVIII.

Robert Darnton é formado pela Universidade de Harvard e com Doutorado pela Universidade de Oxford. Assumiu a chefia da Biblioteca de Harvard em 2007, sendo responsável pela autorização e disponibilização na Internet de considerável produção intelectual da Universidade. Especialista em História do Livro e sobre a França do século XVIII, produziu obras renomadas, tais como O Iluminismo como negócio (1996), Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária (1998), A questão dos livros: passado, presente e futuro (2010), O beijo de Lamourette – Mídia, cultura e revolução (1990) e O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa (1984) ̶ sendo sua obra mais difundida ̶ , Os dentes falsos de George Washington (2003) e O diabo na água benta, ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão (2012), dentre outras.

O livro é estruturado em introdução, quinze capítulos curtos, conclusão. Além disso, possui um apêndice, aonde estão presentes as letras, em francês, dos seis poemas sediciosos que foram produzidos, contendo, inclusive, as referências bibliográficas de sua localização (anexo intitulado As canções e os poemas distribuídos pelos Catorze); a respeito do poema “Qu’une bâtarde de catin” (que inclusive intitula o capítulo desta seção), expõe-se como o texto sofreu modificações ao longo de sua difusão; relatos sobre a circulação do poema sedicioso, que gerou a queda do ministro francês Maurepas e de que modo o poema foi apresentado em algumas referências bibliográficas; no capítulo seguinte, intitulado O rastro dos Catorze, adquirimos conhecimento de um resumo geral da investigação; acerca de A popularidade das melodias, tem-se uma noção estatística sobre as chansonniers mais populares na década de 1740; e, o último capítulo deste apêndice, sob o título Um cabaré eletrônico: canções de rua de Paris, 1748-50. Cantadas por Hélène Delavault, apresenta um site de Harvard2 disponibilizando as melodias mais comuns na Paris do século XVIII e sobre as quais foram usadas para introduzir os versos sediciosos produzidos. Neste capítulo, ainda temos as letras em francês, e sua tradução, dos poemas musicados e outras, sobre a queda de Maurepas, Luis XV, dentre outras.

A respeito do conteúdo propriamente dito da obra, Poesia e polícia parte da observação e investigação de uma complexa rede de comunicação, a partir do estudo de caso sobre o episódio conhecido como “O caso dos Catorze” (L’Affaire des Quatorze), iniciado com a prisão do estudante de medicina, François Bonis, em 1749. O motivo foi ter recitado um poema não autorizado contra Luís XV, já que “Difamar o rei num poema que circulava abertamente era uma questão de Estado, um crime de lèse-majesté” (DARNTON, 2014, p. 13). À sua prisão seguiram-se outras, relacionadas ao poema, contabilizando, ao final, catorze prisões de homens pertencentes “às camadas médias da provinciana sociedade parisiense” (Idem, 2014, p. 22).

O historiador igualmente averigua a criação de cinco outros poemas populares seguidos a este e, especialmente, a introdução destes em chansonnieres, canções populares que disseminavam a opinião pública sobre a corte de Luís XV. Esses dois mecanismos de disseminação do descontentamento popular expõem sob quais modos circulavam a informação na sociedade francesa setentecista. Assim, a meta de Darnton é descobrir porque tais poemas se revelaram do interesse das autoridades de Paris e de Versailles, além do interesse pela rede de comunicação existente sobre os poemas.

Para tanto, Robert Darnton recria, por meio de uma metodologia de policial investigativo, algo da cultura oral que geralmente é difícil de ser apreendida pelo historiador, dada a ausência de suportes textuais que garantam sua preservação. Em outras palavras, debruça-se sobre as trocas de informação por meio da oralidade. Este é o ponto central deste livro, resgatando-o em investigações policiais, nos dossiês da época. O objetivo é “(…) seguir a trilha de seis poemas por Paris em 1749, à medida que eram declamados, memorizados, retrabalhados, cantados e rabiscados em papel (…) durante um período de crise política” (Idem, 2014, p. 8). Dada a empreitada, discute a ilusão de se supor que as sociedades pretéritas não se preocupavam ou não possuíam uma rede de comunicação. É anacrônico pensar em uma “sociedade da informação” somente pelo avanço tecnológico − o que Darnton critica, chamando de espécie de “falsa consciência acerca do passado” (Idem, 2014, p. 7).

Embora a composição do grupo dos Catorze fosse principalmente de escrivães e abades, grupo social letrado, muitas vezes a transmissão dos poemas acontecia pela memorização. Como aponta o historiador, o Caso dos Catorze pode ser visto como manifestação da opinião pública, mas de uma maneira mais prática, no recurso mnemônico e na circulação dos poemas, tomando-a como força motora da história.

Destes poemas, dois foram transmitidos pela música, na forma de melodias populares, as chansonniers – que funcionavam como uma espécie de troca oral. A composição destas melodias se exprimia com letras novas em melodias antigas.

Outro aspecto salientado foi a gama de informações produzidas pelo inspetor geral de polícia, Joseph d’Hémery3, que era profícuo e meticuloso em seus detalhamentos sobre as prisões. Destarte, Darnton destaca que todas as prisões efetuadas produziam dossiês com informações abundantes sobre os comentários políticos que apareciam nestes circuitos de comunicação.

Não obstante, tais informações jamais apontaram o autor dos poemas. Para o historiador dificilmente possa ter existido um autor principal, dado os acréscimos e modificações que as estrofes sofriam, sustentando a ideia de uma autoria coletiva, a partir da memorização daqueles que faziam, considerando-os igualmente autores dos poemas. Além disso, ainda que os poemas pudessem ser percorridos, pois muitos deles foram encontrados rabiscados em pedaços de papel no bolso daqueles que foram presos, a transmissão deles era incerta. Estes poemas desapareciam de modo aleatório e ressurgiam já modificados.

Não apenas as linhas de transmissão, mas também os próprios versos das canções eram substituídos por outros – criando uma espécie de “interferência subjetiva” (Idem, 2014, p. 73). Isto expunha um fácil sistema de improvisação com fins de entretenimento, dada sua ocorrência em “tavernas, bulevares e desembarcadores”, o que implica em uma circulação muito maior do que se imaginaria, pois, qualquer pessoa, nobre ou plebeu, poderia modifica-los dada uma “versificação que era tão simples”. Percebe-se, assim, que as melodias funcionavam como recurso mnemônico e os poemas eram multivocais.

Portanto, se não possui autoria precisa, também não existia uma direção ideológica específica, afirma Robert Darnton. Nos dossiês analisados não se encontra movimentos iniciais de revolução, no máximo “Um sopro de Iluminismo, sim; uma suspeita de hostilidade ideológica, seguramente; mas nada parecido com uma ameaça ao Estado” (Idem, 2014, p. 31). Tanto que, na exposição do interrogatório de um dos presos, Alexis Düjast, o interesse residia pelos aspectos poéticos e políticos dos poemas, isto é, “(…) nada semelhante a uma conjuração política” (Idem, 2014, p. 25). Então, Darnton, em boa parte dos capítulos iniciais, levanta a questão: “(…) Por que a polícia reagiu de forma tão enérgica?” (Idem, 2014, p. 28).

O historiador Robert Darnton admite, momentaneamente, a impossibilidade de resposta ao interesse tão forte da polícia sobre este caso, mais ainda por dois pontos por ele sublinhados: esta rede não teceu comunicação nem com a alta burguesia e nem com o povo. Mas o que Darnton ressalta e, que talvez ajude a clarear sobre a autoria dos poemas é que eles circulavam também na Corte, ou mesmo que tenham sido criados, inicialmente, em Versailles. Qual fato justificaria isso, então? Quando ocorreu a mudança no equilíbrio de poder, com a destituição de Jean-Frédéric Phélypeaux, o conde de Maurepas4 do cargo de ministro de Luís XV, sendo exilado em 24 de abril de 1749.

A causa principal foi a coleção de poemas sediciosos, além de canções de mesma natureza, que ele colecionava. Continham os mexericos e intrigas acerca da vida na corte. O próprio Maurepas encomendava os poemas para difamar as amantes do rei (além do próprio rei), como foi com Jeanne-Antoinette Poisson, a Madame Pompadour5.

O intuito do ministro era enfraquecer a influência dela sobre o rei. Não obteve sorte, pois Mme Pompadour influenciou Luís XV para demitir Maurepas, assim sendo feito.

A quantidade de canções e poemas circulantes pós esse exílio revelam possivelmente uma tentativa desesperada de Maurepas e seus seguidores de retornar ao poder.

A influência de Pompadour era emblemática, ascendendo ao mesmo cargo o seu “braço direito” Marc-Pierre de Voyer de Paulmy, conde d’Argenson6. Este, em sua busca frenética pela autoria dos poemas desejava “consolidar sua posição na corte durante um período em que os ministros estavam sendo redistribuídos e o poder, repentinamente parecia instável”, podendo, desta forma, “controlar o novo governo” (Idem, 2014, p. 41).

Desse modo, Darnton expõe o coração pulsante no caso dos Catorze: por trás de meras declamações de poemas, representava, em seu interior, “uma luta pelo poder situada no coração de um sistema político” (Idem, 2014, p. 41). Em relação aos catorze envolvidos no caso tiveram suas vidas arruinadas, corroborado pelo exílio que sofreram. Significa afirmar, segundo o próprio historiador, que os catorze envolvidos não possuíam consciência de seus atos, ainda mais na qualidade de crime, como foram classificados.

Em termos metodológicos, Darnton se propõe a uma longa exposição descritiva do Caso dos Catorze, sob interpretação cultural, não direcionando uma linha teórica clara, apenas adotando a postura de um historiador investigativo, procurando pistas e fios condutores. A ausência de um condutor teórico em sua obra, embora com uma linguagem acessível e para um público tanto acadêmico quanto não-acadêmico, seja um dos aspectos negativos. Outro ponto negativo é que não há delimitações conceituais sobre o que ele considera opinião pública. Além disso, o historiador torna o texto confuso quando em alguns momentos afirma não poder dar respostas ao interesse tão forte da polícia sobre O Caso dos Catorze, o que é sempre desmontado no capítulo seguinte, o que talvez exponha a fraca habilidade de Darnton de tentar fazer deste livro um encadeamento paulatino de mistérios e possíveis soluções.

Entretanto, outrossim, possui aspectos positivos, tais como a circulação destes poemas, que embora tenham começado com um grupo de letrados, expandiu-se para as camadas mais populares da França do século XVIII, que se entretinham com a mudança de versos, para zombar ou difamar o rei Luís XV, suas amantes e a Corte. Para o historiador Robert Darnton, os poemas são apenas uma das formas de “literatura de protesto” (Idem, 2014, p. 125) contra o Antigo Regime e que mesmo descoberto alguns de seus atuantes, revela a participação crítica e de insatisfação de quase todas as camadas da sociedade parisiense.

Também válido foi a apresentação do projeto eletrônico da Universidade de Harvard, possibilitando as pessoas a se transporem para aquela época, com a musicalização destes poemas – como fontes de época −, no sítio eletrônico <www.

hup.harvard.edu/features/dapoe>, sob interpretação de Hélène Delavault. Igualmente acertado a mobilização de imagens que ilustram cantores itinerantes, os manuscritos dos poemas, as partituras de algumas das músicas originais que serviam como base para a troca dos versos e uma lista rabiscada em um papel com os nomes daqueles que foram presos.

Notas

2 O site www.hup.harvard.edu/features/darpoe é indicado pelo autor, como forma de os leitores tomarem conhecimento de como as letras e melodias foram produzidas durante o período de colapso do Antigo Regime. O endereço eletrônico é fornecido por Darnton e se encontra na p.177.

Para maiores informações a respeito dos procedimentos e estruturação dos dossiês gerados por d’Hémery em outros casos investigativos, ver, especialmente, DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

4 Para maiores informações sobre o conde de Maurepas, consultar: RULE, John C. Jean-Frederic Phelypeaux, comte de Pontchartrain et Maurepas: Reflections on His Life and His Papers. The Journal of the Louisiana Historical Association, vol. 6, 1965, p. 365-377 e RULE, John C. The Maurepas Papers: Portrait of a Minister. French Historical Studies, vol. 4, Duke University Press, 1965, p. 103-107.

5 Sobre Madame Pompadour, ver, por exemplo: ABBOTT, Elizabeth. Mistresses: A History of the Other Woman. London: Penguin Books, 2011 e MITFORD, Nancy. Madame De Pompadour. London: Hamish Hamilton, 1st edition, 1954.

6 Esclarecimentos sobre esta figura histórica podem ser obtidos em: COMBEAU, Yves. Le comte d’Argenson (1696-1764): Ministre de Louis XV. Paris: École des Chartes, 1999.

Referências

ABBOTT, Elizabeth. Mistresses: A History of the Other Woman. London: Penguin Books, 2011.

COMBEAU, Yves. Le comte d’Argenson (1696-1764): Ministre de Louis XV. Paris: École des Chartes, 1999.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

________________. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Tradução de Rubens Figueiredo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

MITFORD, Nancy. Madame De Pompadour. London: Hamish Hamilton, 1st edition, 1954.

RULE, John C. Jean-Frederic Phelypeaux, comte de Pontchartrain et Maurepas: Reflections on His Life and His Papers. The Journal of the Louisiana Historical Association, vol. 6, 1965.

___________. The Maurepas Papers: Portrait of a Minister. French Historical Studies, vol. 4, Duke University Press, 1965.

Sítio eletrônico citado na obra www.hup.harvard.edu/features/darpoe. Acesso em: 21 de março de 2017.

Thayenne Roberta Nascimento Paiva – Graduada em Bacharelado e Licenciatura, respectivamente, pelo Instituto de História e a Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, é mestranda em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Email: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

Encontros com Moçambique / Regiane A. Mattos, Matheus S. Pereira e Carolina G. Morais

“Encontros com Moçambique” é um livro fruto de apresentações e debates realizados durante a II Semana da África: Encontros com Moçambique, na PUC do Rio de Janeiro, entre os dias 21 e 23 de março de 2016. Se há uma década os colóquios e seminários reuniam pouco mais de uma dezena de pesquisadores interessados na grande área de História da África, abrangendo assim um amplo recorte temático e temporal de estudos, este livro é o retrato de como, hoje, encontramo-nos em um novo momento. Regiane Augusto de Mattos, Carolina Maíra Gomes Morais e Matheus Serva Pereira apostaram que seria possível organizar uma obra que reunisse pesquisas cujo tema principal fosse Moçambique. A investida não apenas se concretizou como é prova, como afirma Valdemir Zamparoni em seu prefácio à obra, de “um amadurecimento ímpar da área de estudos africanos”2 no Brasil.

Com a maioria dos trabalhos delimitados pelo período colonial ou que perpassam o período em sua análise, o livro conta com 10 artigos divididos em 3 unidades: Deslocamentos, conexões históricas e conflitos; Narrativas; e Agendas de um Moçambique contemporâneo. Na primeira parte, um ponto de união entre os textos são os fatores condicionantes e as consequências de deslocamentos, forçados ou não, em diferentes períodos históricos, além do uso de fontes oficiais, trabalho etnográfico ou registros de imprensa para as análises, com acurado rigor metodológico no uso da documentação.

O artigo de Regiane Mattos, “Aspectos translocais das relações políticas em Angoche no século XIX”, contempla as relações entre sociedades litorâneas e interioranas do norte de Moçambique, destacando os contatos não hierárquicos entre o sultanato de Angoche e as elites muçulmanas de outras localidades, em especial no Zanzibar. Mattos parte de um evento principal para orientar sua pesquisa e desafiar a interpretação tradicional da historiografia: a viagem do comandante militar de Angoche, Mussa Quanto, e seu parente sharif, em 1849. A autora, a partir desse deslocamento, avalia a formação de uma rede comercial e cultural no oceano Índico em consonância com o aumento da presença da religião muçulmana nesses territórios. Mais do que realizar a análise histórica de uma questão localmente específica, interessa a Mattos averiguar as conexões a partir da perspectiva da translocalidade, conceito desenvolvido pela historiadora Ulrike Freitag e central na abordagem proposta no artigo. Muito bem explicado no texto, o conceito ampara a pesquisa em seu objetivo de destacar as interconexões entre lugares e atores, abrindo espaços para ressignificações de aspectos globais em âmbito local.3

No artigo seguinte, “Algazarras ensurdecedoras: conflitos em torno da construção de um espaço urbano colonial (Lourenço Marques – 1900-1920)”, Matheus Serva Pereira aborda, a partir de notícias na imprensa local, a difícil relação entre o projeto urbano colonial português para Lourenço Marques, cuja área central de Maxaquene foi delimitada para a ocupação de famílias brancas europeias, e a insistência – e resistência – dos “batuques” da população local. O argumento de Serva Pereira é que, a despeito do projeto colonial urbano, do uso da violência física e simbólica no deslocamento forçado das comunidades para a periferia, as notícias veiculadas na imprensa da época põem em xeque o sucesso de tal empreitada. Pereira atesta que os batuques, como práticas culturais, revelam uma atuação “longe de passiva em relação as instituições criadas para regular e fiscalizar o perímetro urbano de Lourenço Marques”4, estabelecendo assim um diálogo estreito com as premissas teóricas de Frederick Cooper sobre a noção de resistência em espaços coloniais5. Do mesmo modo, o autor esforça-se em defender uma organização social não totalmente polarizada na cidade, ao recompor o espectro social dos batuques nas cantinas de Lourenço Marques, onde não era incomum a convivência, num mesmo espaço de diversão, de figuras oficialmente opostas na lógica colonial e urbana.6

Ainda sob a premissa dos deslocamentos e seus conflitos, o capítulo que encerra o primeiro conjunto de textos, “Saúde além das fronteiras: doenças, assistências e trabalho migratório ao sul de Moçambique (1930-1975)”, de Carolina Maíra Gomes Morais, analisa de que maneira a imigração de trabalhadores para a África do Sul, no período colonial, além de atender a uma demanda econômica, trouxe consequências sensíveis no âmbito da saúde e das relações pessoais em Moçambique. Para acessar as condições desse movimento migratório, Morais faz uso, sobretudo, de fontes oficiais de relatórios de inspetores administrativos e se questiona de que maneira se davam as relações entre medicina “oficial” e “tradicional”. Pela disponibilidade das fontes, há uma comprovação mais substancial em relação à atuação dos Serviços de Saúde do que ao recurso à medicina tradicional. Interessante é notar a fluidez de fronteiras entre Moçambique e África do Sul sugerida pela autora para os saberes e medicinas tradicionais, proporcionada pelo trabalho migratório, além da ampla modificação nas relações pessoais em Moçambique, quando do retorno dos trabalhadores.

Na segunda unidade do livro, composta por trabalhos de pesquisadores provindos de diferentes áreas do conhecimento, os artigos têm em comum o estudo de uma obra ou do conjunto da obra de moçambicanos. Nesta unidade, que traz fontes interessantes e pouco convencionais nas pesquisas sobre Moçambique, como a fotografia e o cinema, cumpre enfatizar como nota comum o superdimensionamento do contexto histórico nas abordagens. Nos trabalhos, o contexto é instrumentalizado de modo a legitimar as narrativas ficcional ou visual presentes na documentação, utilizada muitas vezes como mero exemplo comprobatório da realidade colonial. Não resta dúvida quanto ao esforço teórico de todos os textos da unidade, mas, de um modo geral, a metodologia utilizada para a análise da relação entre ficção e História, literatura e História e visualidade e História nesses trabalhos limitou o uso mais abrangente das fontes, negligenciando, em certa medida, as narrativas criativas das próprias obras como propositivas e autoras de discursos formadores do social.

Em “O cinema em Moçambique – história, memória e ideologia: análise dos filmes Chaimite, a queda do Império Vátua (1953) e Catembe: sete dias em Lourenço Marques (1965)”, Alex Santana França realiza uma interpretação sócio-histórica e comparativa entre os filmes Chamite… e Catembe…, ancorando-se na perspectiva teórica de Francis Vanoye. Com a análise sobre Chaimite, o autor demarca as principais características do cinema de propaganda portuguesa, que se dispunha a responder, na época, à crítica internacional sobre o colonialismo luso. Catembe…, ao mesmo tempo em que demonstra o empenho português em conformar uma imagem oficial das colônias, comprovado pelos diversos cortes impostos ao filme, é considerado pelo autor como um exemplo de crítica à colonização.

Em “Não Vamos Esquecer! A propósito da fotografia ‘Marca de gado em jovem pastor’ de Ricardo Rangel”, Isa Márcia Bandeira de Brito busca analisar uma imagem feita pelo fotógrafo moçambicano em 1973, na qual um menino havia sido ferido a ferro na testa por seu patrão, por ter deixado fugir um animal. O prisma da autora na interpretação da imagem, no entanto, não favorece uma análise aprofundada e complexa do objeto, já que toma a imagem como exemplo das relações de violência colonial de maneira generalizada e dicotomiza as relações colonizador/colonizado, enfoque do qual vem se distanciando a historiografia mais recente, amparada nos estudos pós-coloniais, como são exemplos trabalhos consagrados, como os de Frederick Cooper, Homi Bhabha e Mary Louise Pratt7. A autora, vale frisar, mobiliza uma bibliografia interessante para a teorização do objeto no campo das visualidades e o trabalho dimensiona possíveis significados simbólicos da fotografia.

Em “A poesia contestatória de Noémia de Sousa e a situação colonial em Moçambique (1948-1951)”, Gabriele de Novaes Santos se propõe a compreender como a imprensa se ofereceu como veículo para a poesia de contestação colonial da escritora moçambicana Noémia de Sousa. O trabalho de Gabriele Santos é ainda inicial e, portanto, muito promissor, uma vez que a autora abre, no próprio texto, possibilidades de pesquisa interessantes sobre a obra da moçambicana. Por fim, o texto que encerra Narrativas é de autoria de Fatime Samb, com o título “A mulher moçambicana e as práticas culturais”. Ainda no primeiro parágrafo, a autora atesta sua proposta de fazer uma análise sobre o livro Niketche: uma história de poligamia e sobre o papel da mulher na obra de Paulina Chiziane. Samb faz uma importante recapitulação sobre as relações de gênero em Moçambique e a posição social da mulher na “sociedade tradicional” moçambicana, além dos impactos da independência nas relações de gênero e atuação política feminina a partir do comando da Frelimo, um tema ainda pouco conhecido e abordado em pesquisas sobre Moçambique.

A terceira e última unidade do livro, Agendas de um Moçambique contemporâneo, é formada por três artigos, sendo que dois estão em profundo diálogo a respeito da inserção internacional moçambicana, e provêm de duas áreas de formação distintas: Administração e Antropologia. Elga Lessa de Almeida e Elsa Sousa Krayachete, em “Moçambique e a cooperação internacional para o desenvolvimento”, fazem um retrospecto sobre as relações bilaterais estabelecidas por Moçambique com seus parceiros internacionais, demarcando a diferença entre cooperações verticais e horizontais, estas firmadas por países em desenvolvimento, como África do Sul, China e Brasil. O estudo de Elsa de Almeida e Elga Krayachete e o de Fernanda Gallo, “(Des)encontros do Brasil com Moçambique: o caso da Vale em Moatize” complementam-se diante do leitor atento às investidas e consequências da presença brasileira no país. Com um interessantíssimo trabalho antropológico, Gallo busca a vivência da população diante das transformações provocadas pela chegada das empresas multinacionais, em especial a mineradora Vale, e pergunta-se se há alguma relação entre esses megaprojetos para o país e a retomada crescente dos conflitos com a Renamo e ataques a trens. A antropóloga, munindo-se das comprovações de seu trabalho de campo, torna evidente ao leitor o desrespeito das empresas sobre as relações das pessoas com seus locais de origem, ao decidirem, unilateralmente, os locais para reassentamento, por exemplo, e deixa às claras o descompasso entre o discurso oficial da solidariedade e a prática de maximização dos lucros das empresas estrangeiras no país.

O livro se encerra com o capítulo desafiador de Vera Fátima Gasparetto, no qual a autora se dispõe a discutir as possibilidades de uma pesquisa interdisciplinar feminista a partir de uma análise sobre a questão da veiculação da imagem feminina na mídia, comparando a atuação feminina sobre essa questão no Brasil e em Moçambique. A autora traz um panorama sobre a composição e atuação das mulheres em seus espaços de organização nos dois países, como o Fórum Mulher e a Rede Mulher e Mídia. De um ponto de vista feminista e das novas epistemologias no Sul, em diálogo com Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, Gasparetto faz ainda uma crítica interna a algumas teorias feministas que essencializam africanas, fazendo do trabalho acadêmico também um trabalho militante na investida de produzir “[…] uma investigação interessada em conhecer a partir das mulheres, conceituadas como sujeitas conhecedoras e conhecíveis.”8

O livro sem dúvida é uma referência importante e necessária para quem deseja se aprofundar em alguns temas moçambicanos e os trabalhos são, em conjunto, uma contribuição valiosa que demonstra um país repleto de possibilidades de pesquisa e com múltiplas fontes possíveis para análise. Mostra-se especialmente interessante nessa obra organizada o diálogo bibliográfico entre os trabalhos e, sobretudo, os diferentes exercícios teóricos e metodológicos que ultrapassam as barreiras temáticas e configuram-se como inspiração aos pesquisadores leitores. Assuntos e referências atravessam alguns capítulos do livro, como o conceito de colonialidade de Aníbal Quijano9, mais profundamente abordado no artigo de Vera Gasparetto, a discussão de gênero, de trabalho e a noção de resistências, no plural, ao longo da história moçambicana. Esse é um livro que, sem dúvida, deve ser consultado para se conhecer mais e melhor sobre Moçambique.

Taciana Almeida Garrido de Resende – Doutoranda em História Social – USP. São Paulo, SP-Brasil. E-mail: [email protected].


MATTOS, Regiane A. de; PEREIRA, Matheus Serva; MORAIS, Carolina Gomes (Org.). Encontros com Moçambique. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016. 286p. Resenha de: RESENTE, Taciana Almeida Garrido. Desafios metodológicos, interdisciplinaridade, História: Encontros com Moçambique. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.22, p.238-243, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris – DARNTON (RBH)

DARNTON, Robert. Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 2010. 209p. Resenha de: SOBRAL, Luís Felipe. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.34, n.68, jul./dez. 2014.

No momento em que o mundo encanta-se com os novos prodígios da comunicação, capazes de fazer crer que participamos de uma “sociedade da informação” absolutamente sem precedentes, o historiador cultural norte-americano Robert Darnton, especializado na chamada história dos livros e autor de um importante estudo sobre a publicação da Encyclopédie (Darnton, 1987), apresenta um caso desafiador que sublinha a importância da oralidade para a história da comunicação.

Em meados do século XVIII, a polícia parisiense prendeu o estudante de medicina François Bonis, acusado de redigir um poema contra Luís XV; no total, 14 pessoas foram encarceradas na Bastilha, conforme os investigadores seguiam o rastro de transmissão do poema. Ao longo desse percurso, o caso tornou-se complicado, pois surgiram outros cinco poemas sediciosos aos olhos policiais, cada um com seu próprio parâmetro de difusão: “eles eram copiados em pedaços de papel, trocados por pedaços similares, ditados a outros copistas, memorizados, declamados, impressos em folhetos clandestinos, adaptados em alguns casos a melodias populares e cantados” (p.11).1 A investigação não encontrou o autor do verso original provavelmente porque ele não existia: uma vez que os versos eram adicionados, subtraídos e transformados à medida que percorriam o circuito de comunicação, os poemas constituíam um caso de “criação coletiva” (p.11).

Registrada no dossiê policial como “L’Affaire des Quatorze”, a investigação produziu uma série de documentos (registros de interrogatórios, relatos de espiões, notas diversas) acessível na Bibliothèque de l’Arsenal, em Paris. Segundo Darnton, tal série “pode ser tomada como uma coleção de pistas para um mistério que chamamos ‘opinião pública'” (p.12);2 seu valor analítico repousa na capacidade de lançar luz sobre a importância da oralidade na história da comunicação, visto que o episódio indica a interpenetração entre oralidade e escrita em uma sociedade semiletrada.

Ao rejeitar definições apriorísticas de opinião pública (Michel Foucault e Jürgen Habermas), o autor envereda por 15 capítulos curtos que conferem a espessura histórica necessária para cada pista. O passo fundamental do livro é dado no momento em que se contrasta o teor político dos poemas à reação policial. Os 14 incluíam clérigos, burocratas e estudantes, isto é, pessoas oriundas dos estratos médios parisienses e provinciais, que “apreciavam trocar fofoca política em forma de rima” (p.22),3 uma atividade perigosa, porém distante de representar uma ameaça ideológica séria ao Antigo Regime; além disso, cantar músicas desrespeitosas e compor versos sarcásticos eram práticas comuns na Paris setecentista. A iniciativa da operação policial coube ao conde d’Argenson, “o homem mais poderoso do governo francês” (p.26),4 e foi realizada com muita competência: os suspeitos desapareciam das ruas da capital sem deixar rastros para não alertar o presumido autor do poema. Por que o Caso dos Quatorze provocou tamanha reação do aparato repressivo estatal? Tal questão não pode ser respondida pelos documentos produzidos pela Bastilha, pois o circuito de comunicação dos acusados carece de um vínculo tanto com a elite localizada acima da burguesia profissional como com os estratos populares alojados abaixo. Indícios presentes nos diários do marquês d’Argenson, irmão do conde, e de Charles Collé, poeta e dramaturgo da Opéra Comique, apontam a corte de Versalhes como fonte de alguns versos. Duas questões se apresentam: por que o conde tratou a investigação como um assunto da mais alta importância, e por que interessava a certos cortesãos que os versos fossem recitados pela população parisiense?

No final do livro, o leitor encontra seis apêndices: quatro fornecem detalhes sobre os poemas (letras, variações, popularidade), um transcreve um relatório policial, e o último, intitulado “Um cabaré eletrônico”, procura reconstruir, com a colaboração de músicos profissionais, 12 das inúmeras canções parisienses ouvidas em meados do Setecentos.5 Caracterizada pela transitoriedade, a prática musical impõe uma grande dificuldade ao historiador: o problema consiste na existência ou na ausência de uma ou mais fontes que ofereçam o repertório verbal e escrito do qual faziam parte as canções estudadas. Para reconstruir as canções, Darnton conta com cancioneiros, que fornecem as letras, e com outras fontes contemporâneas, que indicam a melodia, identificada pelas primeiras linhas ou títulos das canções. Se por um lado o esforço de reconstrução das canções implica levar a sério o desafio da história oral, por outro não se ilude com a falsa ideia de uma “réplica exata” (p.174).

Entre as canções do cabaré eletrônico distribuídas pelos 14, encontra-se “Qu’une bâtarde de catin”. Em uma de suas versões, ouve-se:

Qu’une bâtarde de catin
À la cour se voit avancée,
Que dans l’amour ou dans le vin
Louis cherche une gloire aisée,
Ah! le voilà, ah! le voici
Celui qui n’en a nul souci

Que uma puta bastarda
À corte se veja avançada,
Que no amor ou no vinho
Luís procure uma glória fácil,
Ah! lá está ele, ah! aqui está ele
Aquele que não tem nenhuma preocupação.6

Trata-se do poema mais simples e o que atingiu o público mais amplo entre os seis apreendidos pela polícia durante a investigação. Redigido para ser cantado ao som de uma melodia popular, identificada em algumas versões pelo refrão (“Ah! lá está ele, ah! aqui está ele”), esse poema apresenta a versificação mais comum das baladas francesas (ABABCC) e admitia inúmeras extensões, pois novos versos podiam ser facilmente incorporados. Cada um de seus versos atacava uma figura pública (a rainha, o delfim, o chanceler, os ministros), ao passo que o refrão denunciava os abusos do monarca, patético alvo do escárnio que se entregava aos prazeres mundanos enquanto o reino era ameaçado por vários problemas. Ao circular por Paris, a canção “tornou-se cada vez mais popular e cobriu um espectro cada vez mais amplo de questões contemporâneas conforme reunia versos” (p.68):7 as negociações de paz da Guerra da Sucessão Austríaca, a resistência ineficaz ao novo imposto denominado vingtième, as últimas disputas intelectuais de Voltaire. Em suma, observa-se a circulação de uma forma específica (as melodias) através das ruas e quais parisienses, processo pelo qual seu conteúdo (os poemas) é transformado pela população segundo os temas lançados em pauta pela conjuntura histórica: “Qu’une bâtarde de catin” tornou-se “um jornal cantado, cheio de comentários sobre os eventos contemporâneos e suficientemente cativante para um público amplo” (p.78).8

No exemplo transcrito, o alvo também era Madame de Pompadour, amante de Luís xv desde 1745. Compreende-se o ataque à Pompadour por sua origem plebeia; não apenas: na série de amantes reais, ela sucedeu às três filhas do marquês de Nesle, “o que era visto como adultério composto de incesto” (p.65).9 Do ponto de vista popular, tais escândalos ameaçavam o monarca e sua linhagem à ira divina; da perspectiva real, o ódio popular era uma manifestação da mão de Deus. Não se deve vislumbrar aí, explica o autor, uma possibilidade concreta de participação popular no mundo político, pois a França ainda está longe de 1789 assim como da Fronda, a revolta contra o governo do Cardeal Mazarino em meados do Seiscentos; no entanto, “uma população maior e mais alfabetizada exigia ser ouvida, e seus governantes a ouvia” (p.41).10 Luís xv era particularmente sensível ao que o povo dizia sobre ele, suas amantes e seus ministros, e monitorava a capital por meio da polícia e do ministro do Departamento de Paris, que detinha assim um imenso poder de manipular o rei. Há indícios de que o conde de Maurepas, hábil cortesão que ocupava tal cargo em 1749, distribuiu, encomendou ou escreveu versos satirizando Pompadour, aliada de seu rival, o conde d’Argenson; o objetivo era persuadir o rei da impopularidade de sua amante entre os súditos parisienses, porém seu plano não deu certo: Pompadour convenceu Luís xv a demitir Maurepas e d’Argenson tomou seu lugar.

A importância da circulação dos poemas, tendo eles origem na corte ou não, residia assim em sua capacidade de estabelecer uma rede de comunicação entre Versalhes e Paris: “um poema podia portanto funcionar simultaneamente como um elemento do jogo político cortesão e como uma expressão de outro tipo de poder: a autoridade indefinida mas inegavelmente influente conhecida como a ‘opinião pública'” (p.44).11 Tal argumento não apenas dispõe o autor contra o nominalismo que só permite falar em opinião pública após o primeiro uso documentado do termo, na segunda metade do século xix, como aponta uma conclusão mais abrangente. Ao argumentar, mediante o exame de um circuito de comunicação setecentista, que “a sociedade da informação existia muito antes da internet” (p.130),12 Darnton descreve, seja na corte de Versalhes seja nas ruas de Paris, as relações de força particulares que constrangiam tal circuito; esse procedimento serve assim para pensar todas as redes de comunicação, inclusive a internet, que não seria a materialização virtual de uma democracia sem limites, mas um instrumento submetido aos interesses específicos de cada um de seus usuários, cujo acesso e emprego de tal ferramenta ainda é mediado pela posição social.13

Após esse percurso tortuoso, lê-se na conclusão:

A pesquisa histórica assemelha-se ao trabalho de detetive em muitos aspectos. De R. G. Collingwood a Carlo Ginzburg, os teóricos não consideram a comparação convincente porque ela apresenta-os em um papel atraente como detetives, mas porque ela está relacionada ao problema de estabelecer a verdade – verdade com v minúsculo. Longe de tentar ler a mente de um suspeito ou resolver crimes exercendo a intuição, os detetives procedem de forma empírica e hermenêutica. Eles interpretam pistas, seguem informações e constroem um caso até chegarem a uma condenação – sua própria e frequentemente a de um júri. A história, como eu a entendo, envolve um processo similar ao de construir um argumento a partir da evidência; e no Caso dos Quatorze o historiador pode seguir os passos da polícia. (p.142)14

Não se deve ver nessas linhas o fantasma do positivismo, pois os arquivos policiais, considerados como fonte privilegiada da rede de comunicação estudada por Darnton, não são autônomos: os indícios que eles apontam devem ser necessariamente relacionados a outras fontes. Ao contrário dos detetives, o historiador precisa ultrapassar a dimensão circunscrita de um caso para entender seu significado mais amplo: o Caso dos Quatorze não é senão o meio de acesso à rede de comunicação que operava na Paris setecentista. Apartado da vivência social que lhe interessa compreender, o historiador encontra-se sempre diante de fragmentos por meio dos quais aquela vivência será reconstruída. Quais os limites dessa tarefa? Se a verdade deve ser estabelecida – pois os eventos históricos ocorrem de uma maneira específica e não de outra –, a interpretação está sujeita à coleção de pistas reunidas, que impõem um jogo complicado entre conjecturas e refutações: nenhuma interpretação é definitiva, nem toda interpretação é válida.

Referências

DARNTON, Robert. A Police Inspector Sorts His Files: The Anatomy of the Republic of Letters. In: _______. The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History. New York: Vintage Books, 1985. p.145-189.         [ Links ]

_______. The Business of Enlightenment: A Publishing History of the Encylopédie, 1775-1800. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of Harvard University Press, 1987.         [ Links ]

_______. A World Digital Library Is Coming True! The New York Review of Books, v.LXI, n.9, p.8, 10-11, 2014.         [ Links ]

Notas

1 “They were copied on scraps of paper, traded for similar scraps, dictated to more copyists, memorized, declaimed, printed in underground tracts, adapted in some cases to popular tunes, and sung”. Todas as traduções são minhas.

2 “The box in the archives … can be taken as a collection of clues to a mystery that we call ‘public opinion'”.

3 “The dossiers evoke a milieu of worldly abbés, law clerks, and students, who played at being beaux-esprits and enjoyed exchanging political gossip set to rhyme”.

4 “The initiative came from the most powerful man in the French government, the comte d’Argenson, and the police executed their assignment with great care and secrecy”.

5 Elas podem ser ouvidas e baixadas livremente em www.hup.harvard.edu/features/darpoe.

6 Bibliothèque historique de la ville de Paris, ms. 580, fólio 248-249, out. 1747 (p.153). Darnton modernizou o francês nas transcrições dos poemas (p.148).

7 “it [a canção] became increasingly popular and covered an ever-broader spectrum of contemporary issues as it gathered verses”.

8 “It had become a sung newspaper, full of commentary on current events and catchy enough to appeal to a broad public”.

9 “the king’s love affairs with the three daughters of the marquis de Nesle, which were viewed as adultery compounded by incest”.

10 “A larger, more literate population clamored to be heard, and its rulers listened”.

11 “A poem could therefore function simultaneously as an element in a power play by courtiers and as an expression of another kind of power: the undefined but undeniably influential authority known as the ‘public voice'”.

12 “The information society existed long before the Internet”.

13 Como se sabe, o próprio Darnton tem sido bastante ativo na defesa do livre acesso digital ao patrimônio intelectual constituído pela cultura escrita, ocupando atualmente uma posição na diretoria da Digital Public Library of America (www.dp.la); sobre essa questão, ver especialmente DARNTON, 2014, p.8, 10-11.

14 “Historical research resembles detective work in many respects. Theorists from R. G. Collingwood to Carlo Ginzburg find the comparison convincing not because it casts them in an attractive role as sleuths, but because it bears on the problem of establishing truth – truth with a lowercase t. Far from attempting to read a suspect’s mind or to solve crimes by exercising intuition, detectives operate empirically and hermeneutically. They interpret clues, follow leads, and build up a case until they arrive at a conviction – their own and frequently that of a jury. History, as I understand it, involves a similar process of constructing an argument from evidence; and in the Affair of the Fourteen, the historian can follow the lead of the police”. Darnton já discutiu as fontes policiais em outras ocasiões: cf., em particular, DARNTON, 1985.

Luís Felipe Sobral – Doutorando em Antropologia Social, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista Fapesp. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[IF]

Les Troubadours. Une histoire poétique – ZINK (A-EN)

ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. Resenha de: GUIMARÃES, Marcella Lopes. Alea, Rio de Janeiro, v.16 n.2, july/dec. 2014.

Les Troubadours. Une histoire poétique é o último lançamento de Michel Zink, Professor de Literatura Francesa do Collège de France, secretário perpétuo da Académie des inscriptions et Belles-Lettres, dentre outras inúmeras distinções e atividades docentes, literárias e de pesquisa. No Brasil, o seu artigo “Literatura” do Dicionário Temático do Ocidente Medieval, organizado por Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt talvez seja o seu trabalho mais lido, mas é possível também conhecê-lo em outra tradução, O Jogral de Nossa Senhora, publicado pela Editora Quadrante. Na verdade, diante de uma carreira notável, o leitor brasileiro não francófono tem acesso a ainda muito pouco do seu trabalho… Esperamos que isso possa mudar!

Qual é o sentido de voltar ao tema dos trovadores, a partir de suas vidasrazos 112 em sintonia com a poesia? O Professor Zink não esconde suas motivações. Para ele, ainda que a investigação possa reconstituir o universo da poesia medieval e o sentido que ela teve para seus contemporâneos, ela descortina a nossa distância desse mundo…, mas uma distância que não impede a comunicação – lembremo-nos de Georges Duby, é com as diferenças que aprendemos mais* e convida mesmo a uma compreensão continuamente renovada de seus temas e de sua complexidade. Um dos mais eficazes vieses pelos quais essa comunicação é possível na contemporaneidade, segundo Zink, é o da autorreflexão, pois a poesia medieval é uma poesia que “não cessa de voltar a ela mesma e à ideia que ela faz de si mesma”.* 113

Espera-se de uma obra intitulada Les Troubadours que ela resgate a poesia dos mais importantes trovadores occitanos, ou seja, dos criadores de um lirismo novo no Ocidente Medieval. Mas a obra tem um subtítulo e ele entrega a sua singularidade. Uma história poética dos trovadores é, segundo o seu autor, “feita de sua vida, de suas viagens e de seus amores, de seus encontros, de sua carreira e de sua obra. A história poética dos trovadores é também a história de sua arte e de sua influência, em particular a história dos manuscritos que, acabada a sua grande época, aplicaram-se a preservá-la. A história poética dos trovadores é ainda essa grande história fragmentada, feita de várias histórias que são escritas em torno de seus poemas, que se inspiram neles, que os comentam e que alguns manuscritos conservaram. Ao mesmo tempo em que são biografias largamente imaginárias, espécies de vidas sonhadas em poesia, esses textos oferecem da poesia dos trovadores uma interpretação em forma de história”.*

Logo depois da abertura da obra, o Professor Zink se entrega a uma discussão importante sobre as escolhas realizadas pelas boas edições dedicadas à literatura medieval, ou seja, justifica o fato de começarem com a descrição dos manuscritos conservados. Por quê? Porque tudo o que sabemos dessa poesia provém dos cancioneiros, ou seja, das recolhas posteriores dessa poesia, realizadas em regiões diferentes daquelas onde viveram os trovadores. O Professor Zink não só justifica a escolha das edições como emula o método ao discorrer também sobre os cancioneiros logo no início da obra, mas essa “defesa” se funda no fato de essas recolhas oferecerem ao autor o insumo fundamental para a sua histoire poétique, ou seja, “as canções de cada trovador, escritas a tinta preta, são aí precedidas de sua vida, escrita à tinta vermelha”.* O momento em que essas vidas são compostas e recolhidas está em consonância com uma nova concepção de poesia do século XIII, “recitada, edificante na origem, moral ou satírica”.* O autor vai buscar nelas inspiração, mas não só, ao longo de todo o texto, busca compreender as relações entre os poemas e esses textos alicerçados em outras fontes e nos versos dos trovadores.

Depois das motivações, do ensaio sobre os cancioneiros, Les Troubadoursdescortina a sua primeira vida. Como não poderia deixar de ser, trata-se do Duque da Aquitânia e Conde de Poitiers Guilherme IX (1071-1126), o primeiro trovador conhecido. Sua breve vida destaca a sua mobilidade (afinal participou da 1a cruzada, entre outras aventuras); sua habilidade na sedução, “un des plus grands trompeurs de dames”;* destreza em armas e sua arte. Na verdade, a vida ironiza a associação entre a poesia e a sedução das damas, uma primeira pista sobre a relação entre essas narrativas e a obra dos trovadores. Zink lamenta, é pouco sobre esse trovador extraordinário de cuja obra restam 10 cantigas autênticas, então a ele dedica-se mais, 114 começando pelo célebre “Farai un vers de dreit nien”.

Ao observar que “a associação do amor, da alegria e da juventude marcam a celebração do fin’amor“,* Michel Zink reconhece que ela aparece na poesia de Guilherme da Aquitânia antes mesmo que esse poeta tenha “inventado” o conceito e que, entre a sua faceta considerada obscena e a cortês, não há contradição. Um dos aspectos mais interessantes da obra já se revela nesse primeiro capítulo dedicado ao Conde de Poitiers, ou seja, na maneira como o vastíssimo repertório de Michel Zink entra em cena para demonstrar a convergência 115 de poéticas. Em nenhum momento o autor é seduzido pelo “ídolo das origens”,* está mais interessado em interseções e redes, como quando mais de uma vez evoca as Kharjas moçárabes, essas composições que cantam, com voz feminina, a paixão e o sofrimento, antes que o Conde de Poitiers interseccione nessa rede a sua poesia; ou quando compara os modelos estróficos adotados por Guilherme da Aquitância a outros, como o da poesia litúrgica de Saint-Martial;* ou ainda quando evoca as cantigas de amigo galego-portuguesas. Ora, das Kharjas para a poesia de Guilherme da Aquitânia – sem que seja possível medir ou averiguar influências -, passando para o jogo e para a arte de conversação, que teria na segunda das Siete Partidas de Afonso X de Castela, dois séculos depois, um postulado poético, 116 é possível ler em Les Troubadours uma aventura dinâmica, protagonizada pela poesia medieval, cheia de vozes e vidas que se alimentam mutuamente.

Nas páginas dessa história poética, a poesia de Cercamon é revisitada, bem como a hipótese de que ele seria o visconde Eble II de Ventadour (esse trovador sem canção) e a sua constância amorosa, que se manifesta na convicção poética de que o amor não depende da estação. Marcabru também é personagem da história, ainda que nada saibamos de sua vida fora os 44 poemas que dele sobreviveram, ou seja, seus versos, como os trovadores concebiam a materialidade da sua poesia. Michel Zink debate com a bibliografia sobre as “contradições” da poesia de Marcabru e desafia nosso ceticismo anacrônico com uma pertinente questão: “Porque recusar sistematicamente escutar os autores medievais quando eles dizem sua fé e invocam a Sagrada Escritura?”.* Mas a história poética não segue o fio cronológico, salta um século, traz Guiraut Riquier que não desprezaria mais ser trovador, antes ao contrário, reivindicaria a denominação,* para depois voltar ao século XII e a Jaufré Rudel, protagonista de uma das mais conhecidas vidas. Conhecemos dele 6 cantigas, todavia talvez o evoquemos mais pelos seus amores pela Condessa de Trípoli, que ele nunca viu até a hora derradeira… A vida de Rudel é exemplar para a postura de Michel Zink em relação a essas notas biográficas fundadas em tamanha imaginação. Longe de exigir delas a verdade sucedida, que, no caso do Prince de Blaye, logo descobrimos o equívoco (afinal, o poeta não morreu nos braços da Condessa de Trípoli, cuja identidade desconhecemos…), o professor vai buscar na vida do poeta o conflito que nutre toda a poesia dos trovadores, ou seja, estou aqui, enquanto ela, a amada, está lá, longe, “tel est l’mor de lonh”.* Assim, as vidas e razos dos trovadores “não rompem com as cantigas, nem as interpretam mal”,* elas evidenciam o essencial da poesia.*

Michel Zink também contempla a poesia satírica, não só quando evoca Marcabru, mas quando traz a conhecida canção de Peire d’Auvergne, “Chantarai d’aquestz trobadors”, em que satiriza vários trovadores. Mas, novamente, não está interessado em demarcar a distância entre os gêneros, nem em investir em uma literatura profana apartada de uma literatura religiosa.

história poética não estaria completa, essa também não é a aspiração do autor…, sem o célebre Bernard de Ventadour, trazido ao texto em mais de um capítulo em perspectiva dialógica com outros trovadores. Em um dos momentos a que se dedica a Ventadour, Zink traz ao texto a famosa canção da cotovia, que plena da alegria se entrega a um gesto suicida que não é outro que o da evocação da pequena morte no amor… Nesse poema, o autor ainda surpreende a inveja sexual do eu lírico em relação ao gozo dos outros, interdito ao eu. Frustração análoga também se afigura na poesia de outros trovadores, como na de Raimon de Miraval, assim como a inveja, esse sentimento onipresente.

Em meio a um universo que não é exaustivo, mas rico, o Conde de Poitiers é uma presença fundamental, mesmo quando outras vidas compõem novos capítulos da história poética de Michel Zink. A poesia de Guilherme da Aquitânia é chamada a dialogar com a obra de quase todos os poetas, trazidos da mesma forma por suas vidas e por fragmentos da sua poesia. Com eles, Zink desenha uma geografia da poesia occitana. Porém, nesse caminho, é possível ler uma outra história poética, a de um grande investigador e sua biblioteca. Essa “narrativa” foi escrita de forma concomitante, cerzida na observação rigorosa das cantigas; no reconhecimento de referências de uma vida, a sua; na alusão a teses audaciosas; na mudança de perspectiva; na polida discordância que desenha um irresistível debate e no reconhecimento do caráter provisório das próprias conclusões. Na “Tornada”, o Professor Michel Zink encerra sua histoire poétique com a afirmação de que ela afinal não fora mais que “um passeio entre as cantigas”.* Aceitamos a sua elegante modéstia, para revelar o segredo da perpétua juventude intelectual de um homem a quem não falta reconhecimento, a paixão pela poesia medieval.

Referências

* (DUBY, Georges. Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999. p. 13) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. p. 15.) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. p. 16) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours. Une histoire poétique. Paris: Editions Perrin, 2013. p. 25) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.29) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.33) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.50) [ Links ]

* (BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p.56.) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 91) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.128) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 137) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 154) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 240) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p.258) [ Links ]

* (ZINK, Michel. Les Troubadours…., p. 303) [ Links ]

112” Ensemble de 225 courts textes occitans en prose qui, dans les chansonniers lyriques, servent de notules biographiques (‘vidas‘) préfaçant ou glosant (‘razos‘) les pièces de 101 troubadours des XIIe au XIVe s. Conservés par 23 manuscrits, ces textes – revendiqués uniquement par deux auteurs (Uc de Saint-Circ et Miquel de la Tor) – servaient sans doute initialement aux jongleurs à présenter les auteurs des pièces récitées ou les anecdotes les ayant engendrées.” HUCHET, Jean-Claude. “Vidas et Razos” in GAUVARD, Claude, LIBERA, Alain, ZINK, Michel. Dictionnaire du Moyen Âge (2ª ed. 4ª tir.). Paris: PUF, 2004 (2012). p. 1446.

113 Todas as traduções dessa obra realizadas nesta resenha são de minha autoria.

114 É interessante constatar que, no mesmo ano do lançamento de Les Troubadours. Une histoire poétique, o Conde de Poitiers mereceu outro tributo, ou seja, a edição de Katy Bernard, que não é uma edição crítica, mas uma tradução “rythmée et poétique dont le but est de respecter au mieux la mesure et le rythme des vers du poète, sa musique, de même que l’esprit de ses chansos.” Le Néant et la joie. Chansons de Guillaume d’Aquitaine. Présentation et traduction de Katy Bernard. Éd. Bilingue occitan-français. Gardonne: Éditions Fédérop, 2013. p. 9.

115 Ainda que o Prof. Zink não empregue a palavra convergência, creio ser acertado empregá-la no sentido em que Edson Rosa da Silva o fez em seu ensaio “A metamorfose da arte: do quadro ao poema”. Nele celebra a convergência entre Jorge de Sena e André Malraux, refutando a influência como essência da relação proposta: “Não pretendo dizer que há aí influência, isso não me parece importante, há aí, sim, coincidência, convergência de pensamentos, que veem na arte uma manifestação elevada do espírito humano. E é nisso que eles se encontram”. SILVA, Edson Rosa da. “A metamorfose da arte: do quadro ao poema” in Metamorfoses 10.2. Revista da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros da UFRJ. Lisboa: Caminho, 2010. p. 100.

116 Sobre isso, conferir a imprescindível obra de Paulo Sodré: O Riso no jogo e o jogo no riso na sátira galego-portuguesa (Vitória: EDUFES, 2010), em que o autor contextualiza o fablar en gasaiado como prática cortesã, da qual participa a poesia.

Marcella Lopes Guimarães – Profa. Dra. Adjunta IV de História Medieval da Universidade Federal do Paraná. É vinculada ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos – NEMED (www.nemed.he.com.br). E-mail: <[email protected]>.

Acessar publicação original

[IF]

 

Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII | Robert Darnton

O historiador norte-americano Robert Darnton, amplamente conhecido no ambiente acadêmico brasileiro, é um dos grandes pesquisadores da história intelectual do século XVIII – um tema que geralmente abrigamos sob o guarda-chuva conceitual do Iluminismo.

Sua familiaridade com a antropologia cultural, sobretudo por conta da sua proximidade com os estudos de Clifford Geertz, bem como o cuidado obsessivo que dedica à pesquisa documental nos arquivos franceses fazem dos seus trabalhos verdadeiras incursões em universos desconhecidos, causando, como ocorre com as boas descrições etnográficas, estranhamento em relação às realidades que julgamos conhecer.

Neste Poesia e polícia não é diferente. Darnton, que dirige a biblioteca da Universidade de Harvard, volta aos arquivos parisienses e consegue reconstruir uma intrincada rede que ligava o submundo francês ao ambiente da corte de Luís XV no final da década de 1740. Uma denúncia anônima de um espião em 1749 leva a estrutura policial da monarquia à perseguição e à prisão de catorze indivíduos, entre estudantes universitários, jovens clérigos e pequenos funcionários da estrutura da justiça, envolvidos na produção e na difusão clandestina de poesias e canções que satirizavam medidas do governo e ofendiam o rei e sua amante, Jeanne-Antoinette Poisson, a marquesa de Pompadour.

Com idades que variavam entre dezesseis e trinta e um anos, os envolvidos no “Caso dos Catorze”, como ficou conhecido, eram provenientes das camadas médias parisienses. Pessoas que não faziam parte da elite política francesa mas eram bem educadas e em dia com as decisões da monarquia referentes à política externa e seus desdobramentos internos. Clérigos jansenistas que não se dobravam à vontade do rei, estudantes irreverentes (de Direito, majoritariamente), professores conectados às discussões científicas, funcionários desobedientes – pessoas capazes de versificar sátiras em francês e em latim e ouvir o burburinho das ruas, combinando tudo isso com os mexericos da corte. O personagem mais intrigante desta rede, sobre quem Darnton dedica, infelizmente, pouca atenção, era o professor de filosofia chamado Pierre Sigorne. O professor se negou a falar, não entregou um único nome e a investigação emperrou nele. Entusiasta dos princípios newtonianos, Sigorne era o centro de um grupo do qual faziam parte, entre outros, Anne Robert Jacques Turgot (futuro ministro das Finanças de Luís XVI) e Denis Diderot (futuro editor da Enciclopédia).

Os versos apreendidos naquela ocasião atacavam o centro do poder real e eram recitados, copiados, emendados, recriados, musicados, memorizados e discutidos por pessoas que se preocupavam com seus aspectos políticos e poéticos. Retornando às sátiras cantadas em 1747, Darnton consegue observar uma sutil mudança no corriqueiro hábito de maldizer autoridades através do riso, identificando fatos da vida política que acabaram constituindo interseções entre a velha política da corte e uma crescente conexão entre indivíduos do mundo da rua interessados em falar sobre uma esfera de decisões da qual estavam alijados. Como isto ocorreu?

Darnton, a partir de documentos de arquivo e de memórias produzidas ao longo do século XVIII, reconstitui os eventos que levaram à demissão do conde de Maurepas, secretário de Estado, em abril de 1749. O astuto nobre foi responsável por um vazamento de informação sobre um jantar oferecido pelo rei e por sua amante, informação esta que chegou às ruas de Paris por meio de uma sátira – Pompadour havia oferecido aos poucos convivas, entre eles o próprio Maurepas, flores brancas (fleurs blanches), o que se tornou, nos cafés e becos parisienses, “fluxos brancos” (flueurs blanches), referência a doença venérea. A polícia foi acionada e passou a fazer as prisões, levando à Bastilha pessoas acusadas de pertencer a uma rede que recitava e distribuía poemas satíricos, em cujos versos também apareciam medidas impopulares de Luís XV, como a ordem de prisão contra um príncipe inglês exilado em Paris, um acordo de paz vexatório e o lançamento de um novo imposto. Nos poemas e nos cantos que circulavam na capital francesa, reproduzidos na íntegra na obra, as fofocas cortesãs sobre a vida íntima dos governantes estavam associadas à carência de virtude nas decisões reais recentes. Mais do que isso: aparentemente, o rei e seus auxiliares mais próximos passaram a se importar de uma maneira até então não vista sobre a forma como estas conexões estavam sendo feitas em lugares públicos, sem o controle das autoridades.

A estrutura repressiva francesa, a partir daí, infiltrou espiões, pagou informantes, prendeu e interrogou suspeitos cujos depoimentos oferecem ao historiador de hoje material para entrar em contato com este universo nem sempre muito distante do nosso: a tentativa, nunca suave, de estabelecer um ambiente público de discussão.

Ficou de fora do trabalho uma discussão mais detida sobre o papel da sátira nas sociedades da Época Moderna. Embora se preocupe em observar aspectos tradicionais da cultura popular no maldizer público de autoridades, Darnton não atenta para aspectos intrínsecos à atitude satírica que poderiam oferecer outra camada de significados para o Caso dos Catorze, bem como para a maledicência social ao longo do Antigo Regime. Gilbert Highet, em estudo clássico sobre o tema, demonstra a ambivalência da atitude satírica, que pode ser cáustica em relação aos indivíduos atacados, mas tende a reforçar uma determinada ordem social. [1] As sátiras que fazem parte do caso estudado por Darnton são paródias, versificações compostas sobre estruturas monológicas previamente conhecidas pela audiência, o que reforça ainda mais o impacto de valores previamente defendidos por um público amplo – por exemplo, a gravidade cristã da vida sexual do rei, que estaria refletida, de algum modo, em suas virtudes políticas. Darnton também deixa de fora questões específicas relativas às estruturas poéticas ou narrativas utilizadas pelos letrados para produzir as sátiras, abrindo mão, portanto, de ferramentas oriundas da análise poética ou da crítica literária, de modo algum desprezíveis para a consideração de poemas como fontes para o historiador. Mais preocupado em reconstruir conexões entre grupos e acontecimentos políticos e culturais, pouco avança no escrutínio de um complexo cultural que também era informado por uma dimensão discursiva habitada e manipulada por indivíduos letrados.

Autor de obra clássica sobre um ícone do Iluminismo [2] – a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert –, Darnton há muito também se dedica à “subliteratura” que roía, nos becos, nos cafés e nos salões menos nobres, as imagens até então impolutas dos velhos poderes. Um exemplo recente é o seu O diabo na água benta, saído no Brasil em 2012 [3], no qual acompanha a corrida de gato e rato entre a polícia francesa e os autores de libelos que se espalhavam dos dois lados do Canal da Mancha no século XVIII.

O historiador se dedica, em Poesia e polícia, às relações entre personagens anônimos que levavam e traziam palavras proibidas, mostrando que, além dos textos, as relações dos indivíduos e dos grupos com o conhecimento e com os escritos acabaram por engendrar um ambiente novo, base de um mundo que nos deveria ser familiar.

De linguagem acessível, a obra estabelece brevemente os problemas conceituais referentes à esfera pública, fazendo alusão aos textos basilares de Foucault e Habermas – o primeiro, mais preocupado com uma abordagem filosófica, segundo a qual uma coisa só existe quando é nomeada (portanto, a “opinião pública” não poderia existir antes de ser assim nomeada, no final do século XVIII), enquanto o segundo está mais interessado em uma abordagem sociológica (isto é, a coisa existe desde que seja percebida como tal pelo estudioso, no presente). Sem se satisfazer completamente com nenhum dos dois teóricos, Darnton lança mão das ferramentas vindas da antropologia – a imersão em uma cultura estranha e a tentativa de compreendê-la a partir dos seus próprios termos – para tentar ouvir as vozes de um mundo distante do século XXI. Assim, observa, por um lado, como Condorcet, um matemático, historiador e filósofo iluminista cooptado pelo Estado francês nos estertores do Antigo Regime, acreditava no projeto ilustrado de estabelecimento gradual da razão a partir da discussão pública, impressa, serena, que levaria a sociedade ao progresso; e, por outro, como Luis-Sébastien Mercier, dramaturgo, jornalista, escritor mediano, descreveu “o público” como um poder que vinha da rua, irresistível e contraditório, mas capaz de destronar a tirania. Condorcet foi decapitado durante o Terror; Mercier, que desprezava o heliocentrismo e a física newtoniana, foi nomeado professor de história pelo governo revolucionário.

Embora curto, o livro de Robert Darnton é uma esclarecedora incursão em um momento-chave no complicado processo de estabelecimento de um lugar de discussão política alheio à vontade do Estado. O resultado é belíssimo, sobretudo para nós que, autocentrados, acreditamos que inventamos, por força da internet, a sociedade da informação. A cultura não oficial, fragmentada e transmitida habilmente entre jovens indivíduos descontentes fez estragos na vida de quem morava em palácios nos século XVIII.

Notas

1. HIGHET, Gilbert. The anatomy of satire. Princeton: Princeton University Press, 1962.

2. DARNTON. Robert. O Iluminismo como negócio: história da publicação da “Enciclopédia”, 1775-1800. Tradução Laura Teixeira Motta e Marcia Lucia Machado (textos franceses). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

3. DARNTON. Robert. O diabo na água benta Ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão. Tradução Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Rodrigo Elias –  Revista de História da Biblioteca Nacional. E-mail: [email protected]


DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Resenha de: ELIAS, Rodrigo. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.10, n.10, p. 152-154, 2014. Acessar publicação original [DR]

 

Giorgio Agamben: Poetry, philosophy, criticism / Alberto Pucheu

Ao se debruçar sobre o conjunto da obra de um dos maiores críticos literários da atualidade, o italiano Giorgio Agamben, Alberto Pucheu Neto, nessa monumental obra, esclarece e perscruta as sendas do processo de criação artística entre a relação que envolve a poética e sua imbricada conjunção com a filosofia, sem olvidar de como a crítica no mundo ocidental construiu seu arcabouço a partir da linguagem, do texto como elemento semântico e sintagmático de explicação do mundo, à medida que a razão instrumental ora recorria à poesia, ora se distanciava dela, enquanto mecanismo compungido de expiação do sentimento de descoberta do cosmos.

Essa é uma das razões pelas quais o pensamento filosófico e teórico do século XIX caracterizou-se pela invenção de uma escrita poético-teórica, ou seja, o processo de designação de uma linguagem responsável até pela própria criação dos sentidos, dando conta de uma explicação causal das coisas. Giorgio Agamben denuncia a separação ocidental entre filosofia e poesia. O que no princípio nasceu imbricado com os gregos, aos poucos se deslindava para uma ruptura da qual a poesia cada vez mais ficava resguardada não como mecanismo de elucidação do não revelado, mas como manifestação isolada de seus criadores, os poetas, como se suas conjunções expostas sob forma poética não contivessem em si um processo de exposição, até mesmo da linguagem. Para tanto, a crítica pode ser poesia e a poesia, crítica, segundo Pucheu, porque a suposta dicotomização entre ambas dificulta a compreensão de como a crítica, nasce a partir da poesia, instrumentalizando sua interpretação, assim como a crítica ao desvendar as filigranas da poesia, é, em sua essência, também poesia, estabelecendo intermediação, paralelismo, imbricação.

Para Alberto Pucheu, Giorgio Agamben aposta numa reconciliação de uma “teoria nela mesma literária”, a fim de encontrar a unidade da palavra despedaçada. A aposta reside em (PUCHEU, 2010, p. 20).

Lidar com a filosofia, a literatura e seus entornos interventivos a partir da busca incansável por uma nova modalidade de escrita, que reconcilie o cindido ocidental em um novo destino, é o projeto perseguido por Giorgio Agamben desde a primeira página de abertura de seu primeiro livro, quando assume a herança nietzschiniana de uma anunciada reversão de Kant.

A estética tornou-se um elemento da própria configuração instrumental da reflexão desgastada da própria arte. Propôs-se a ser maior que o ato da criação, de desapego às forças internas da criação para medir a transmissão e valor da obra. Ora, a obra não se resume ao seu resultado impresso, aquilo de que a crítica e a estética tentam dar conta, já que cada vez que se “retira um livro da estante para ler, outro livro, desse mesmo livro, permanece lá, para sempre invisível, para sempre ilegível”, na asserção do escritor egípcio Edmond Jabés, segundo Pucheu (2010, p. 56); afinal, toda obra escrita é apenas um prelúdio de uma obra ausente.

Outro problema colocado pela teoria literária do século XIX é a difícil desvinculação entre poesia e prosa — uma análise acurada da obra de Euclides da Cunha dá conta disso, afinal, as estruturas poéticas comportam diferenças de uma prosa que se proveu de elementos poéticos ao longo da história como estância criadora de sua narração, posto que a prosa contém em si elementos de sonoridade.

A sonoridade existente no processo de hibridização da prosa está contida em estâncias como a Versura do enjambement, ou como diria o próprio autor (PUCHEU, 2010, p. 76): A versura é o momento exato em que ela própria, enquanto disjunção, dá passagem e nascimento à articulação necessária dos versos. Assim, a versura do enjambement, fazendo a palavra retornar à sua origem criadora, manifesta a ideia do verso e, não menos, a ideia de linguagem: confundindo-se com ela, o poema, como um de seus lugares privilegiados, se fende em duas movimentações vazadas, a mostrar as duas forças intrínsecas a ele e a ela.

Ao evidenciar as diferenças entre poesia e história e poesia e cinema, o autor não se propõe a destacar a importância desta primeira em detrimento de qualquer outra forma de linguagem, expressão ou explicação do mundo; ao contrário, os mecanismos de legibilidade de linguagens como a histórica e a cinemática, ao se colocarem por vezes como não poesia, é que perdem sua força inextrincável não de explicação, mas de expiação dos sentidos, ou seja, aquilo que não pode ser explicado nem tudo pode ser explicado – deve ser intuído pelos sentidos, sorvido, consumido, compungido. Desta feita, Pucheu recorre à alusão feita pelo cineasta Abbas Kiarostami, que, afastando cinema de literatura e aproximando-a da poesia, se nega a aceitar um cinema que conte tudo, que explique didaticamente o sentido das coisas, que conte histórias. Para Abbas, a incompreensão faz parte da essência da poesia. O cinema deveria fazer a mesma coisa.

E quanto à história? Essa, por seu turno, no afã e desiderato de “explicar” tudo, ao ter se abastado da poesia e da literatura no século XIX, perdeu a sua força criadora, sua capacidade de imbricar-se nos mecanismos da existência humana pela dinamicidade da vida, por aquilo que, ainda que não realizado no plano do real vivido, nem por isso deixou de existir, tal como o livro que, tirado da prateleira, continuou a existir como preâmbulo de outro livro ainda não escrito. A história também se faz daquilo que se sentiu, daquele que se desejou, mesmo não efetivado no plano das relações objetivas.

Por essa razão é que Pucheu, no seu último e quarto ensaio, mostra as intrínsecas relações entre poesia e filosofia, mostrando como poetar e filosofar está carregado de sentidos e de uma captura da ou das existências. Para o autor, segundo o italiano Giorgio Agamben, “na busca de acesso a uma autêntica compreensão do problema da significação, o que está em jogo é a reflexão ocidental sobre o significar ou a linguagem. Entender esta questão é entender a necessidade de filosofar” (PUCHEU, 2010, p. 119).

Não à toa o autor culmina sua obra citando Hegel na sua explanação sobre o enigma na arte egípcia os diferentes níveis do simbolismo na arte, a superação das artes por outras artes, e o esforço de Édipo em decifrar o enigma da esfinge, ou seja, libertar a Grécia do que “ainda possuía de egípcio”, ou, “a vitória do humano sobre a naturalidade da animalidade presente na figura da Esfinge”, pletora vontade potente do herói civilizador moderno.

Giorgio Agamben e Alberto Pucheu Neto são interseccionais. O pensamento dos dois se funde nessa obra reveladora de como a trajetória de um pensamento instrumental ocidental pode levar a existência humana a um aprisionamento de um tipo de linguagem. Ser interseccional é romper com a atomização dos sentidos, com o encaixotar das formas de expressão, é perceber o mundo através das suas múltiplas formas sem encerrá-las em seus sentidos estanques, é enxergar o que de filosofia existe na poesia e o que de poesia contém a substância filosófica, é retornar para casa, para quando homens e mulheres se preocupavam em existir desvelando os mistérios, e não meramente afirmar que até os mistérios são criações da linguagem, como se antes da linguagem existisse o nada.

A poesia e a filosofia não são turistas, são viajantes. O turista quer chegar ao seu destino de qualquer forma, ele quer chegar. O viajante está preocupado com o caminhar, com o processo. Ele se descobre no percurso.

José Henrique de Paula Borralho – Universidade Estadual do Maranhão – EMA São Luís, Maranhão – Brasil. E-mail: [email protected].


PUCHEU, Alberto. Giorgio Agamben: Poetry, philosophy, criticism. Rio de Najeiro: Beco do Azougue, 2010. 168, p. Resenha de: BORRALHO, José Henrique de Paula. Outros Tempos, São Luís, v.8, n.11, p.341-344, 2011. Acessar publicação original. [IF].

 

Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina – SOARES (CP)

SOARES, Angélica. Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres, 2009. Resenha de: BRITTO, Clovis Carvalho. Mulheres e memória poética: opressão à flor da letra?. Cadernos Pagu, Campinas, n. 35, Dez. 2010.

A árvore da literatura de autoria feminina lança-nos mais um fruto: o recente livro de Angélica Soares sabiamente intitulado Transparências da memória/estórias de opressão: diálogos com a poesia brasileira contemporânea de autoria feminina. Fruto cujo sabor vem sendo experimentado reiteradas vezes pelo trabalho crítico e sensível da pesquisadora que já apresentou análises inspiradoras a exemplo das inauguradas em A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia brasileira (1999). Nas frestas entre lembranças e esquecimentos, a autora realiza uma ação duplamente significativa: sublinha o valor de punhos líricos femininos na literatura brasileira e, ao mesmo tempo, se destaca como uma legítima representante desse ofício na atividade crítica. Questão relevante quando relembramos que as mulheres por muito tempo (e porque não dizer ainda hoje) tiveram suas vozes embargadas no campo literário, enfrentando trajetórias de opressão ao ousarem modificar o silêncio ou os exíguos espaços que lhes eram destinados.

Vivenciando variadas formas de sujeição e dependência devido ao quadro implacável de assimetria nas relações entre os sexos, as mulheres, aos poucos, têm lutado pelo reconhecimento como protagonistas na cena intelectual brasileira. Uma atualização das dificuldades narradas por Virgínia Woolf quando relatou a luta que instituíram pelo acesso a voz no cenário literário inglês em Um teto todo seu (2004) e/ou um esforço para problematizar as muitas “zonas mudas” relacionadas à partilha desigual dos traços, da memória e da história, conforme os indícios demonstrados por Michelle Perrot em As mulheres ou os silêncios da história (2005). Nesse sentido, para além de relatar a opressão das mulheres poetas no campo literário brasileiro, Angélica desenvolve um esboço teórico-metodológico para identificar como tais estórias de opressão foram ficcionalizadas. Se não bastasse essa instigante co-relação entre mulher e memória, a pesquisadora fortalece a tradição crítica iniciada tardiamente entre nós por Lúcia Miguel Pereira, galgando espaços para que tanto as mulheres poetas quanto as críticas literárias adquiram visibilidade e reconhecimento na vida literária brasileira. Para tanto, destaca, de antemão, a opção epistemológica por não somente apontar a diferença das mulheres, mas atentar para a diferença nas mulheres.

Analisando a memória literária de diferentes mulheres, nos convida a observar indícios da opressão vivenciada historicamente no cotidiano feminino. Em uma espécie de arqueologia da escritura memorialística, a autora revela os modos como as poetas transparecem os efeitos da dominação masculina: do inconsciente reprimido à instituição de uma fala marcadamente provocadora, do agir mimeticamente ao homem à busca de uma atuação singular, entre exílios e máscaras à instituição de um lugar de fala e de uma fala própria. Examinando um caleidoscópio de vozes polifônicas, a partir do processo da reelaboração da memória, demonstra como a poesia contribui para materializar memórias desterritorializadas. A proposta dialoga com a metodologia de Kátia Bezerra, outra analista da lírica de autoria feminina e sua relação com a memória, especialmente quando compreende o ato de revisitar o passado como subversivo:

transmuta-se numa ferramenta crucial para compreender e denunciar os vários componentes que estruturam e oprimem a sociedade. Intenciona-se, assim, considerar a forma como esse projeto de escrita interroga o passado (Bezerra, 2007:13),

para melhor compreender as relações de força que se insinuam no presente.

Nessa linha de força ou relativamente recente tradição de pesquisa, se inserem os trabalhos de Angélica Soares. Na tensão entre lembrar e esquecer, reúnem reflexões sobre memória, memorialismo poético e questões de gênero, ressaltando diferentes instâncias e formas de opressão feminina poematizadas como escritas do eu que ao mimetizarem

estórias (individualizadas), acabam por remeter, metonimicamente, a histórias (coletivas), pela recriação lírico-dramático-narrativa de fatos verificáveis em documentos e trabalhos de pesquisas sociológicas (Soares, 2009:14).

Embora reconheça que a poesia de autoria de mulheres também registra situações e experiências de vida bem sucedidas, optou por destacar aspectos que demonstrem a mulher como objeto de domínio físico ou simbólico, visto que dialogariam com situações recorrentes na vida das mulheres em sua condição histórica de duplamente colonizada: pelo sistema social de sexo-gênero e por sofrer a colonização decorrente de uma visão dualista e oposicional na qual a mulher representa o pólo negativo.

O gênero se torna uma importante categoria analítica para a crítica literária e, nas palavras da autora, as estórias de opressão recriadas na poesia demonstram que, para além das diferenças de classe, etnia e orientação sexual, as mulheres compartilham uma situação opressiva variável. Pelas transparências da memória apresenta-nos as relações entre constituição da identidade e memória, movimentos de desconstrução das oposições binárias, procedimentos coercitivos e figurações relacionadas a resistências e clausuras, culminando na análise das opressões comumente vivenciadas nas trajetórias femininas: da solidão infantil às representações do envelhecer. Acertadamente a pesquisadora dialoga com Pierre Bourdieu (2005) ao examinar como a memória poética entrevê e explicita a dominação masculina, especialmente quando destaca mecanismos com vistas à integração, embora em espaços limitados ou pautados por rígidos controles. Mecanismos muitas vezes “perturbadores”, a exemplo do erotismo na escrita feminina que aciona nuanças políticas ao deslocar as mulheres da condição de meros objetos para uma posição de enunciadoras do desejo.

A primeira estação do itinerário analítico contempla poetas cujas obras emanam aberturas à metamemória, ou em outras palavras, autoras cujos projetos criadores demonstram acentuada preocupação com o conhecimento sobre os processos e monitoramento da memória, além de sentimentos e emoções relacionadas com o lembrar/esquecer. Nesse primeiro bloco, investiga as poéticas de Cecília Meireles, Adélia Prado, Marly de Oliveira, Helena Parente Cunha, Astrid Cabral, Arriete Vilela e Renata Pallottini, autoras de diferentes faixas etárias, regiões e condições sociais. A memória ao conduzir reflexões sobre sua própria dinâmica demarcaria as obras de acordo com especificidades. Cecília e a constituição de uma “encenação do esquecimento”; Adélia e o fugidio modo de experienciação; Marly e a impossibilidade de recuperar o passado exatamente como foi vivenciado; Helena e sua memória circular; Astrid e a mobilidade temporal da recordação; Arriete e os dinamismos míticos; Renata e a indissociabilidade entre tempo e espaço. Ao inventariar alguns versos desse conjunto heterogêneo e ao investigar aspectos da poesia memorialística contemporânea empreendida por mulheres, Angélica Soares se une a essas vozes, e sua obra, assim como as analisadas, se torna, ela própria, metamemória. Mas de que memórias essas mulheres falam, ou melhor, que memórias a pesquisadora selecionou da seleção empreendida pelas poetas? Resposta explicitada inicialmente no título da obra: estórias de opressão.

De posse dessas informações encaminha o leitor para uma segunda vereda relacionada a questões ideológicas de gênero e a consciência poética da exclusão histórica das mulheres. Subsidiada pelas reflexões de Teresa de Lauretis (1994), especialmente na concepção de que o pessoal é político, reafirma a importância de se pensar a diferença de mulheres e não só o diferente de Mulher. Denunciando as tecnologias de gênero e os discursos institucionais como responsáveis pelo campo de significação social, torna a categoria gênero como fundamental para a análise dos textos literários que, a partir de enfoques feministas, possibilitaria compreender as recriações de mulheres, oprimidas de incalculáveis maneiras em virtude da ideologia patriarcal. Essa leitura se aproxima de Michelle Perrot quando concebeu ser a memória, assim como a existência de que é prolongamento, profundamente sexuada. Seguindo essas considerações, Angélica Soares examina como a temática da opressão feminina comparece nos versos de Adélia Prado, Sílvia Jacintho e Astrid Cabral, espécie de cartão de visitas para um posterior aprofundamento na relação gênero, identidade e memória. Nessa ordem de ideias, destaca como emerge constantemente no memorialismo literário de autoria feminina um processo alienante, “falocêntrico”, a partir da identificação de bloqueios e limites ao autoconhecimento. Comprovando esse argumento rastreia exemplos desse processo em algumas imagens tecidas nos versos de Helena Parente Cunha, Myriam Fraga, Lara de Lemos, Marly de Oliveira, Lya Luft e Hilda Hilst. Contradições integrantes da constituição de identidade pelas mulheres, metaforizadas no jogo entre o fluido e o consistente, a fuga e o encontro consigo mesmas.

Se a dominação masculina acompanha historicamente a trajetória das mulheres e se a categoria gênero auxilia a visualização dessa opressão nas memórias líricas femininas, nada mais coerente do que encerrar o livro analisando o modo como as autoras poetizam as duas pontas da vida: a infância e a velhice. Não por acaso, os capítulos finais são dedicados a examinar poemas relativos à reconstrução da solidão infantil e às representações do envelhecer. A memória como testemunho cultural da opressão na infância, a partir das imagens criadas por Marly de Oliveira, Lya Luft e Neide Arcanjo, e como testemunho da opressão na velhice, nas obras de Adélia Prado, Diva Cunha, Alice Ruiz e Renata Pallottini.

O conteúdo das imagens selecionadas como corpus da obra é um convite para o reconhecimento da importância e para a leitura da poesia de autoria feminina contemporânea desenvolvida no Brasil. Do mesmo modo, o arcabouço teórico-metodológico criado por Angélica Soares é um estímulo a todos os pesquisadores que desejem compreender as implicações entre gênero, identidade, memória e opressão, com vistas a “avaliar, pela força do literário, as contradições e os avanços no percurso emancipatório feminino” (Soares, 2009:17). Itinerários de opressão muitas vezes silenciados e que as autoras, sentindo-os à flor da pele, transpareceram à flor da letra.

Referências

Bezerra, Kátia da Costa. Vozes em dissonância: mulheres, memória e nação. Florianópolis, Editora Mulheres, 2007.         [ Links ]

Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. 4ªed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005.         [ Links ]

De Lauretis, Teresa. As tecnologias do gênero. In: Hollanda, Heloísa Buarque de. (org.) Tendências e impasseso feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.         [ Links ]

Perrot, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP, EDUSC, 2005.         [ Links ]

Soares, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da libertação do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro, DIFEL, 1999.         [ Links ]

Woolf, Virgínia. Um teto todo seu. 2ªed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2004.         [ Links ]

Clovis Carvalho Britto – Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília. E-mail: [email protected].

Acessar publicação original

[MLPDB]

 

Cultura Popular na Antiguidade Clássica-grafites, arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura – FUNARI (VH)

FUNARI, Pedro Paulo. Cultura Popular na Antiguidade Clássica-grafites, arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura. São Paulo: Contexto, 1989. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.9, n.12, p. 154-155, dez., 1993.

Os estudiosos da história vêm, há muito tempo, ampliando sensibilidade em relação aos sinais do passado que chegaram até nós, trazendo seu testemunho acerca de outras organizações sociais.

O historiador francês Lucien Febvre alertou, num texto de 1949, para a 1mportancra dessa abertura da noção do documento histórico: os documentos escritos têm grande utilidade na pesquisa. Porém, sua ausência não deve impossibilitar tal trabalho. Também os signos, as palavras, as paisagens e as formas dos campos, ou seja, tudo o que traga inscrita a ação humana serve como documento ao historiador hábil e perspicaz.

É esta criatividade na busca de fontes que faz da obra de Pedro Paulo Funari um texto essencial para os leitores que s interessam pelas várias possibilidades abertas pela construção do passado histórico. No caso, a Antigüidade Clássica é analisada a partir de um aspecto inédito, o que leva o autor a falar em uma outra Antiguidade. A cultura popular, suas manifestações esquecidas e desprezadas durante tantos séculos- quando só uma parte da cultura clássica fascinou e serviu de modelo à cultura ocidental moderna – é o tema de reflexão da obra.

Na ausência de documentos escritos tradicionais, o autor recupera as pichações nos muros e paredes das cidades antigas. A maior parte da documentação foi levantada em Pompéia, cidade onde uma catástrofe vulcânica Preveniu a destruição desses sinais. A forma de lidar com os grafites mostra-se tão original quanto a sua escolha como documentação: Funari não se reduz a desvendar as palavras, frases e poesias inscritas, mas analisa a expressividade iconográfica dos sinais gráficos, mostrando a excelência artística dos autores anônimos e, talvez o mais importante para o olhar do historiador, a forma através da qual esses pichadores relacionavam-se com as palavras.

No seu intento de fugir a uma história parcial, que privilegia apenas uma versão construída pelas elites dominantes da época, o autor utiliza os grafites como monumentos: são sinais de um assado construídos dentro de situações de conflito, ambiguidades, sonhos e esperanças, protestos e indignações. Entretanto, a obra continua apoiando-se num dos pilares da historiografia tradicional: o que move a pesquisa é, segundo as palavras de Funari, reconhecer-se “nos gregos e nos romanos e perceber como eles têm a ver com a gente”. Historiadores dedicados ao período clássico – como Finley, Vidal-Naquet, Vernant, M. Dettienne e Paul Veyne – renovaram a abordagem historiográfica justamente pela vertente oposta. Destacam a diferença de valores, de mentalidade, de organização social. Ressaltam o caráter diverso dessas sociedades, renunciando-se às categorias eternas e continuidades enganadoras. Como afirma o filósofo C. Castoriadis, o que precisamente nos interessa na história é nossa “alteridade autêntica, os outros possíveis do homem em sua singularidade absoluta”.

Outro aspecto passível de discussão pode ser apontado na visão dicotômica transmitida na separação cultura popular/cultura erudita. A cultura erudita é classificada como “continuadora imóvel da tradição reprodutora de um passado clássico”; a minoria erudita é inativa; a pintura apreciada pela elite caracteriza-se, para o autor, pela ”continuidade na ausência de rupturas, na sensação de imutabilidade”. Funari apresenta o leitor uma cultura clássica erudita completamente estática e desprezível. Por outro lado, a cultura popular é dinâmica, criativa, revestida de caráter multifacetado e contestatório.

Entretanto, não é tão fácil dividir, cultura erudita e popular, já que há um movimento constante de recriações e apropriações, onde pólos aparentemente opostos se interpenetram. Além disso, é inútil negar a riqueza da cultura clássica que o autor classifica como erudita. Como desprezar (só para citar alguns exemplos) Ésquilo, Sófoles, Hesíodo, Heródoto, Virgílio e tantos outros? A nova história precisa exorcisar o perigo da adesão às novidades simplificadoras, como a de que tudo o que foi criado pelos “vencidos” seja “bom”, sob pena d cair no moralismo românico.

Paralelamente à necessidade de debater tais posições contidas no livro, afirma-se o valor de sua leitura. Dedicado a um público Jovem, estimulará, sem margem de dúvida, o fascínio pelo estudo da história. Acreditamos que seu uso, em turmas de jovens estudantes, poderá contribuir imensamente para levar, ao ensino de segundo grau, uma história renovada, simples sem ser simplista, interessante e, finalmente, instigante.

Regina Horta Duarte – Professora do Departamento de História FAFICH·UFMG.

Acessar publicação original

[DR]