A operação historiográfica (Excertos) | Michel de Certeau

CETEAU Michel de A operação historiográfica
Michel de Certeau | Foto: Collège de France / books & ideas

Esclarecimento

Na seleção dos trechos deste fichamento  eu não me preocupei com as marcas do tempo, do lugar e das circunstâncias que interferiram na produção de Michel de Certeau. Meu objetivo foi recortar orientações teóricas gerais empregadas hoje, entre historiadores brasileiros, quase meio século depois de publicada A Escrita da História, onde está inclusa “A operação historiográfica” e que serão retomadas, na terceira unidade, como orientação para o aprendizado da crítica historiográfica.


1. O que fabrica o historiador quando “faz história”? Para quem trabalha? Que produz? Interrompendo sua deambulação erudita pelas salas dos arquivos, por um instante ele se desprende do estudo monumental que o classificará entre seus pares, e, saindo para a rua, ele se pergunta: O que é esta profissão? […]

2. Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da “realidade” da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada “enquanto atividade humana”, “enquanto prática”.4 Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas “científicas”5 e de uma escrita. Essa análise das premissas, das quais o discurso não fala, permitirá dar contornos precisos às leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto. A escrita histórica se constrói em função de uma instituição cuja organização parece inverter: com efeito, obedece a regras próprias que exigem ser examinadas por elas mesmas. […]

3. UM LUGAR SOCIAL

4. Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócioeconômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. [Pg. 066] É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam. […]

5. Os historiadores na sociedade.

6. Segundo uma concepção bastante tradicional na intelligentsia francesa, desde o elitismo do século XVIII, convencionou-se que não se introduzirá na teoria o que se faz na prática. Assim, falar-se-á de “métodos” mas sem o impudor de evocar seu valor de iniciação a um grupo (é preciso aprender ou praticar os “bons” métodos para ser introduzido no grupo), ou sua relação com uma força social (os métodos são meios graças aos quais se protege, se diferencia e se manifesta o poder de um corpo de mestres e de letrados). Estes “métodos” esboçam um comportamento institucional e as leis de um meio. Nem por isso deixam de ser científicos. Supor uma antinomia entre uma análise social da ciência e sua interpretação em termos de história das idéias, é a falsidade daqueles que acreditam que a ciência é “autônoma” e que, a título desta dicotomia, consideram como não pertinente a análise de determinações sociais, e como estranhas ou acessórias as imposições que ela desvenda. […]

7. O que permite e o que proíbe: o lugar.

8. Antes de saber o que a história diz de uma sociedade, é necessário saber como funciona dentro dela. Esta instituição se inscreve num complexo [Pg. 076] que lhe permite apenas um tipo de produção e lhe proíbe outros. Tal é a dupla função do lugar. Ele torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis; exclui do discurso aquilo que é sua condição num momento dado; representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes (sociais, econômicos, políticos) na analise. […]

9. UMA PRÁTICA.

10. O estabelecimento das fontes ou a redistribuição do espaço.

11. Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em “documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este gesto consiste em “isolar” um corpo, como se faz em física, e em “desfigurar” as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori. Ele forma a “coleção”. Constitui as coisas em um “sistema marginal”, como diz Jean Baudrillard;48 ele as exila da prática para as estabelecer como objetos “abstratos” de um saber. Longe de aceitar os “dados”, ele os constitui. O material é criado por ações combinadas, que o recortam no universo do uso, que vão procurá-lo também fora das fronteiras do uso, e que o destinam a um reemprego coerente. E o vestígio dos atos que modificam uma ordem recebida e uma visão social.49 Instauradora de signos, expostos a tratamentos específicos, esta ruptura não é, pois, nem apenas nem primordialmente, o efeito de um “olhar”. É necessário aí uma operação técnica. […]

12. Fazer surgir diferenças: do modelo ao desvio.

13. A utilização das técnicas atuais de informação leva o historiador a separar aquilo que, em seu trabalho, até hoje esteve ligado: a construção de objetos de pesquisa e, portanto, das unidades de compreensão; a acumulação dos “dados” (informação secundária, ou material refinado) e sua arrumação em lugares onde possam ser classificados e deslocados;60 a exploração é viabilizada através das diversas operações de que este material é susceptível. […]

14. Nesta linha o trabalho teórico se desempenha, propriamente falando, na relação entre os pólos extremos da operação inteira: por um lado, a construção dos modelos; por outro lado, a atribuição de uma significabilidade aos resultados obtidos ao final das combinações informáticas. A forma mais visível desta relação consiste, finalmente, em tomar pertinentes diferenças adequadas às unidades formais precedentemente construídas; em descobrir o heterogêneo que seja tecnicamente utilizável. A “interpretação” antiga se torna, em função do material produzido pela constituição de séries e de suas combinações, a evidenciação dos desvios relativos quanto aos modelos. […]

15. O trabalho sobre o limite.

16. Esta estratégia da prática histórica prepara-a para uma teorização mais de acordo com as possibilidades oferecidas pelas ciências da informação. Parece que ela especifica, cada vez mais, não apenas os métodos, mas a função da história no conjunto das ciências atuais. Com efeito, seus métodos não mais consistem em buscar objetos “autênticos” para o conhecimento; seu papel social não é mais (exceto na literatura especular, dita de vulgarização) o de prover a sociedade de representações globais de sua gênese.. A história não mais ocupa, como no século XIX, este lugar central, organizado por uma epistemologia que, perdendo a realidade como substância ontológica, buscou reencontrá-la como força histórica, Zeitgeist, [Pg. 087] e escondendo-se na interioridade do corpo social. Ela não tem mais a função totalizante que consistia em substituir a filosofia no seu- papel de expressar o sentido. […]

17. [A história, hoje, ] intervém à maneira de uma experimentação crítica dos modelos sociológicos, econômicos, psicológicos ou culturais. Diz-se que utiliza um “instrumental emprestado” (P. Vilar). É verdade. Mais precisamente, testa esse instrumental através de sua transferência para terrenos diferentes, da mesma forma que se testa um carro esporte, fazendo-o funcionar em pistas de corrida, em velocidades e condições que excedam suas normas. A história se toma um lugar de “controle” onde se exerce uma “função de falsificação.70. Nela podem ser evidenciados os limites de significabilidade relativos aos “modelos” que são “experimentados”, um de cada vez, pela história, em campos estranhos ao de sua elaboração. […]

18. Crítica e história.

19. Há cem anos este conhecimento representava uma sociedade a maneira de uma meditação-compilação de todo o seu devir. É verdade que a história era fragmentada numa pluralidade de histórias (biológicas, econômicas, lingüísticas, etc.).81 Mas, entre estas positividades despedaçadas, como entre os ciclos diferenciados que a Atualmente o conhecimento histórico é julgado mais por sua capacidade de medir exatamente os desvios – não apenas quantitativos (curvas de população, de salários ou de publicações), mas qualitativos (diferenças estruturais) – com relação às construções formais presentes. Em outros termos, conclui com aquilo que era a forma do incipit nos relatos históricos antigos: “Outrora não era como hoje.” A -representação – mise en scène literária – não é “histórica” senão quando articulada com um lugar social da operação científica e quando institucional e tecnicamente ligada a uma prática do desvio; com relação aos modelos culturais ou teóricos contemporâneos. Não existe relato histórico no qual não esteja explicitada a relação com um corpo social e com [Pg. 093] uma instituição de saber. Ainda é necessário que exista aí “representação”. O espaço de uma figuração deve ser composto.[…]

20. UMA ESCRITA

21. A representação – mise en scène literária – não é “histórica” senão quando articulada com um lugar social da operação científica e quando institucional e tecnicamente ligada a uma prática do desvio; com relação aos modelos culturais ou teóricos contemporâneos. Não existe relato histórico no qual não esteja explicitada a relação com um corpo social e com [Pg. 093] uma instituição de saber. Ainda é necessário que exista aí “representação”. O espaço de uma figuração deve ser composto. Mesmo se deixarmos de lado tudo aquilo que se refere a uma análise estrutural do discurso histórico,85 resta encarar a operação que faz passar da prática investigadora à escrita. […]

22. A primeira imposição do discurso consiste em prescrever como início aquilo que na realidade é um ponto de chegada, ou mesmo um ponto de fuga da pesquisa. Enquanto esta dá os seus primeiros passos na atualidade do lugar social, e do aparelho institucional ou conceitual, determinados ambos, a exposição segue uma ordem cronológica., Toma o mais anterior como ponto de partida. Tomando-se um texto, a história obedece a uma segunda imposição. A prioridade que a prática dá a uma tática de desvio, com relação à base fornecida pelos modelos, parece contradita pelo fechamento do livro ou do artigo. Enquanto a pesquisa é interminável, o texto deve ter um fim, e esta estrutura de parada chega até a introdução, já organizada pelo dever de terminar. Também o conjunto se apresenta como uma arquitetura estável de elementos, de regras e de conceitos históricos que constituem sistema entre si e cuja coerência vem de uma unidade designada pelo próprio nome do autor. Finalmente, paia atar-se a alguns exemplos, a representação escriturária é “plena”; preenche ou oblitera as lacunas que constituem, ao contrário, o próprio princípio da pesquisa, sempre aguçada pela falta.[…]

23. Dito de outra maneira, através de um conjunto de figuras de relatos e de nomes próprios, toma presente aquilo que a prática percebe como seu limite, como exceção ou como diferença, como passa. Por estes poucos traços – a inversão da ordem, o encerramento do texto, a substituição de um trabalho de lacuna por uma presença de sentido – pode-se medir a “servidão” que o discurso impõe à pesquisa.[…]

24. O lugar do morto e o lugar do leitor.

25. No texto o passado ocupa o lugar do assunto-rei. Uma conversão escriturária se operou. Lá, onde a pesquisa efetuou uma crítica dos modelos presentes, a escrita construiu um “túmulo”119 para o morto. O lugar feito para o passado joga, pois, aqui e lá, com dois tipos de operação, uma técnica outra escriturária. É apenas através desta diferença de funcionamento [Pg. 107] que pode ser reencontrada uma analogia entre as duas posições do passado – na técnica de pesquisa e na representação do texto.[…]

26. A escrita não fala do passado senão para enterrá-lo. Ela é um túmulo no duplo sentido de que, através do mesmo texto, ela honra e elimina. Aqui a linguagem tem como função introduzir no dizer aquilo que não se faz mais. Ela exorciza a morte e a coloca no relato, que substitui pedagogicamente alguma coisa que o leitor deve crer e fazer. Este processo se repete em muitas outras formas não-científicas, desde o elogio fúnebre, na rua, até o enterro. Porém, diferentemente de outros “túmulos” artísticos ou sociais, a recondução do “morto” ou do passado, num lugar simbólico, articula-se, aqui, com o trabalho que visa a criar, no presente, um lugar (passado ou futuro) a preencher, um “dever-fazer”. A escrita acumula o produto deste trabalho. Através dele, libera o presente sem ter que nomeá-lo. Assim, pode-se dizer que ela faz mortos para que os vivos existam. Mais exatamente, ela recebe os mortos, feitos por uma mudança social, a fim de que seja marcado o espaço aberto por este passado e para que, no entanto, permaneça possível articular o que surge com o que desaparece. Nomear os ausentes da casa e introduzi-los na linguagem escriturária é liberar o apartamento para os vivos, através de um ato de comunicação, que combina a ausência dos vivos na linguagem com a ausência dos mortos na casa. Desta maneira, uma sociedade se dá um presente graças a uma escrita histórica. A instauração literária deste espaço reúne, então, o trabalho que a prática histórica efetuou. […]


Referências

CETEAU, Michel de. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. Tradução de Maria de
Lourdes Menezes ;*revisão técnica [de] Arno Vogel.

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