As Primeiras-damas de Roma: as mulheres por trás dos Césares | Annelise Freisenbruch

As Primeiras-damas de Roma é o primeiro livro da autora inglesa Annelise Freisenbruch, doutora em Antiguidade Clássica pela Universidade de Cambridge e pesquisadora assistente na produção de livros e filmes populares sobre o mundo antigo. Publicado no Brasil em 2015 pela Editora Record, o livro é fruto de um estudo inglês homônimo lançado pela autora em 2010. Em sua obra, de caráter historiográfico, Freisenbruch analisa a importância das primeiras-damas romanas na ascensão e construção do Império Romano.

Para auxiliar e situar o leitor acerca do tema a ser discutido, Annelise divide o livro em nove capítulos, além de utilizar árvores genealógicas, fontes literárias e arqueológicas, mapas do Império Romano, obras literárias contemporâneas, filmes e séries do século XX que abordam o assunto.

O recorte temporal analisado inicia-se por volta do século I a. C., e vai até o século V d.C. Do início do Império, ao seu apogeu, cristianização e dissolução, Freisenbruch apresenta mulheres como Lívia Drusa (58 a.C. – 29 d.C.) e Otávia (69-11 a.C.), essenciais para a promoção do novo regime político no século I a.C. A partir delas, expõe a trajetória e vida de mulheres que se elevaram ao poder nos cincos séculos subsequentes.

A política de Roma é revelada através das histórias de mulheres como Júlia (39 a.C. – 14 d.C.), boêmia filha de Augusto (p.99); Domícia (53-130 d.C.), uma esposa que teve um caso flagrante com um ator grego antes de conspirar no assassinato de seu marido (p.208); Fausta (289-326 d.C.), madrasta que tentou seduzir o prórprio enteado e depois projetou sua execução.

O início da narrativa tem como pano de fundo o assassinato de Júlio César (100-44 a.C.) por membros do Senado, e as constantes conspirações para assumir o poder de Roma entre os triúnviros Marco Antônio (83-30 a.C.), Lépido (90-13 a.C.) e Otaviano (63 a.C. – 14 d.C.), futuro imperador Augusto (p.05). É neste panorama conturbado e instável que a autora insere as personagens centrais do livro, pertencentes a abastada dinastia júlio-claudiana, que servirão de base para as mulheres das demais dinastias: Otávia, irmã de Otaviano e esposa de Marco Antônio e Lívia Drusa, consorte de Otaviano e primeira imperatriz romana.

Segundo Freisenbruch, na Roma Republicana, havia um pensamento enraizado e um contraste entre as mulheres ditas “ideais” e as “masculinizadas”. Raramente as mulheres eram elogiadas nos textos da Antiguidade por agirem segundo seus próprios interesses, mas eram enaltecidas por promover os interesses dos maridos e dos filhos, e, através deles, recuperar o esplendor da Roma primitiva, habitada por mulheres notáveis (p.41).

Em relação às mulheres “ideais”, personificações da moral e imaginário romanos, Freisenbruch destaca Lucrécia, Vetúria e Volúmnia, matronas do século VI a.C. Lucrécia é lembrada com saudosismo por sua lealdade e virtudes ímpares por suicidar-se após ser estuprada, para não desgraçar seu pai e seu marido. Enquanto isso, Vetúria e Volúmnia são louvadas por intervirem diretamente nas negociações de paz entre grupos masculinos que ameaçavam a harmonia de Roma (p.43).

Cabe salientar que, para produzir a obra, Freisenbruch fundamenta-se em textos de autores da Antiguidade, como a Eneida de Virgílio, as Sátiras de Juvenal e Amores de Virgílio. Ademais, para fomentar seu arcabouço teórico, utiliza fontes arqueológicas do período, destacando-se moedas, grafites parietais, inscrições tumulares, estátuas das imperatrizes, sarcófagos, joias e pinturas. Assim, com o intuito de demonstrar a complexidade da sociedade romana, bem como problematizar a participação feminina na política de Roma, a autora parte de uma leitura crítica das fontes literárias e materiais, analisando os discursos e as relações de poder nelas contidas, ora exaltando, ora difamando a figura de mulheres dos círculos de poder romanos.

Nesse sentido, a autora faz uma análise do discurso contido em moedas e bustos comemorativos que compara Otávia e Lívia Drusa às matronas romanas. Otávia, a passiva irmã de Otaviano e esposa de Marco Antônio, que ao se casar com este, formou amistosos entre os dois triúnviros, é comparada com Vetúria e Volúmnia. Lívia, por sua vez, gozou de status privilegiado: a primeira imperatriz teve sua imagem ligada à de Lucrécia, por sua lealdade ao marido. Desse modo, ambas representavam os ideais da virtus romana, os quais deveriam ser resgatados e seguidos pelas mulheres da elite.

A rainha egípcia Cleópatra VII (69-30 a.C.), amante de Marco Antônio, simbolizava as mulheres “masculinizadas”. Mulheres como ela, que se imiscuíam no território político e militar, eram acusadas de transgredir a ‘ordem natural’ das coisas. Marco Antônio, por sua vez, foi cunhado como um homem delicado e afeminado que se submete às ordens de uma mulher. Otaviano foi o responsável por construir e disseminar discursos negativos contra ambos. Em detrimento, com a campanha política cada vez mais ruidosa, edificou para a esposa e a irmã discursos favoráveis, com o intuito de persuadir o povo romano que era o único homem capaz de governá-los.

Os discursos imagéticos veiculados por meio de moedas, estátuas e bustos conferiam à Lívia e Otávia o ideal aristocrata de feminilidade e virtus romanas das antigas matronas, fundamentais para ajudar a definir a imagem do futuro imperador como marido, irmão e homem de família devotado, o único capaz de representar a sociedade romana e reviver seu passado heroico com grandes homens e grandes mulheres. A historiadora brasileira Norma Mendes (2006) assinala a importância da família imperial para o incremento e aceitação do novo governo, uma vez que Augusto promoveu o culto doméstico ao deus Lares, cujo principal objetivo era solicitar proteção à família, aos lares e às virtudes do pater. Para tanto, o imperador e seu próprio núcleo familiar eram a expressão máxima do culto, exemplos para a população.[1]

Lívia exercia um papel feminino tradicional num contexto político público, bastante comum entre as primeiras-damas contemporâneas. Conforme pontua Freisenbruch, ela era vista como ‘embaixadora da boa vontade’, promovendo valores morais do novo regime através de suas demonstrações e comportamentos femininos idealizados e valorosos no meio público, como o ato de fiar as roupas do próprio marido próximo às janelas e vias públicas da residência imperial, exprimindo os ideais do Império aos passantes que a viam costurar. (p.70).[2]

A autora explora a influência das imperatrizes subsequentes a Lívia na construção de panoramas positivos e/ou negativos acerca do Império em ascensão. A tarefa de elaborar a imagem das novas imperatrizes fora tratada com cuidados especiais. Moedas ressaltando a fertilidade e bustos decorativos representando as novas esposas imperiais foram arquitetadas, fazendo-as dividir os holofotes com os imperadores, vendendo a imagem de um governo sólido e ajustado moralmente.

A obra analisada opõe-se à historiografia tradicional, que apresenta uma gama de fontes literárias e informações sem precedentes sobre os ‘grandes homens’ e governantes do mundo romano, enfatizando os textos políticos de historiadores romanos, como a História de Roma de Dião Cássio e a História Augusta, coletânea de biografias de imperadores romanos do final do século IV d.C. de autoria desconhecida. Discursos, batalhas e ações políticas foram incessantemente registradas, garantindo que seus sucessos e vitórias atravessassem os séculos. Entretanto, essas mesmas fontes oferecem poucos dados a respeito das mulheres por trás desses homens e feitos, criando lacunas e questionamentos.

Com linguagem acadêmica clara e objetiva, a leitura mostra-se de suma importância aos estudantes, pesquisadores e interessados pelo assunto que queiram compreender o universo romano através de uma historiografia social, que traz a mulher como destaque na abordagem de pesquisa. Seja como modelo de conduta ou por sua atuação política direta ou indireta, ocupando o posto de mãe, esposa ou amante, as primeiras-damas romanas simbolizam a premissa para um estudo alternativo sobre a Antiguidade Clássica. A autora não tem como objetivo esgotar o tema, mas instiga o leitor a refletir e estudar a História de Roma a partir de múltiplas perspectivas.

Notas

1. SILVA, G. V; MENDES, n.M. Repensando o Império Romano. Rio de janeiro: Mauad/ EDUFES, 2006.

2. Lucrécia fiava a roupa de seu marido quando o violador a viu pela primeira vez. Mais tarde, Augusto moldou uma falsa noção de ‘continuidade’ com o passado, apropriando a imagem de mulher ideal que trabalha com lã para Lívia

Taís Cristina Melero – Graduanda em História pela Universidade do Sagrado Coração (USC). Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID/CAPES). E-mail: [email protected]


FREISENBRUCH, Annelise. As Primeiras-damas de Roma: as mulheres por trás dos Césares. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015. Resenha de: MELERO, Taís Cristina. As primeiras-damas de Roma: uma nova abordagem historiográfica. Revista de História Bilros: História(s), Sociedade(s) e Cultura(s). Fortaleza, v.7, n.15, p. 336-340, mai./ago., 2019. Acessar publicação original [DR]

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