Antônio Flávio Barbosa Moreira – pesquisador em currículo – PARAÍSO (ES)

PARAÍSO, Marlucy Alves (Org.) Antônio Flávio Barbosa Moreira – pesquisador em currículo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. 245p. Resenha de: FAVACHO, André Miarcio Picanto. Sobre desafios, avanços e tensões nos estudos de currículo: sobrevoos no pensamento de Antônio Flávio Barbosa Moreira. Educação & Sociedade, Campinas, v.32 no.115 Campinas abr./jun. 2011.

O livro que ora descrevo é uma coletânea de artigos de um dos mais influentes estudiosos das questões curriculares no Brasil. A professora Marlucy Paraíso, organizadora do livro e também pesquisadora em currículo, tentou buscar, em meio a palestras, entrevistas, depoimentos ou resultados de pesquisas, os textos mais importantes já publicados ao longo da carreira de Antônio Flávio Barbosa Moreira.

Vale ressaltar que a organizadora é responsável por uma excelente introdução à obra, na qual revela detalhes preciosos sobre o pensamento curricular no Brasil, bem como nos brinda com uma entrevista apaixonante, onde explora, com rigor, a vida e a trajetória política e acadêmica do autor. Essa é a razão pela qual considero a sua iniciativa uma honrosa e delicada atitude de gratidão a Antônio Flávio e a todos nós que nos dedicamos à educação brasileira. Assim, a organização do livro não é um ajuntamento qualquer de textos, mas um esforço compensador para destacar, ao mesmo tempo, a vida, a paixão, o trabalho e a veia política do autor. A coletânea não resulta em qualquer coisa parecida com um mero livro, mas, mais do que isso, resulta em um livro-homenagem, prova de respeito e veneração.

A fim de dar consistência ou coerência aos diferentes textos de Antônio Flávio, Paraíso dividiu o livro em três partes, intituladas, respectivamente, “O crítico”, “O político” e “O multiculturalista”. Obviamente, essas nomeações objetivaram alcançar certa fidedignidade na descrição da trajetória acadêmica do autor, mas, a meu ver, acabaram por representar suas lutas concretas, bem como seu compromisso social e político com a educação brasileira.

No âmbito de “O crítico”, a organizadora selecionou três textos de Antônio Flávio: “A constituição e os rumos iniciais dos estudos de currículo no Brasil”, “Currículo e controle social” e “A configuração atual dos estudos curriculares: a crise da teoria crítica”. Podemos dizer que o autor elabora, por meio desses textos, uma espécie de crítica curricular que estabelece três aspectos (ou, talvez, advertências) relevantes a serem considerados quando se deseja pesquisar currículo.

Primeiro: que, no Brasil, não houve a pura e simples transferência dos estudos curriculares americanos; pelo contrário, as formas de resistência sempre estiveram presentes em toda a extensão da produção curricular brasileira. Havendo resistência, obviamente ocorriam alterações, modificações, adaptações, enfim, todo um processo de negação e criação que impedia que o modelo curricular americano circulasse tão livremente em território brasileiro. Segundo o autor, é preferível falar em influência, que, por sua vez, produz o que ele chama de hibridização curricular, na qual tendências, modelos e discursos curriculares distintos disputam, mobilizam e articulam antigas verdades na produção de novas significações. Segundo: que o ambicionado controle da população pelos governos conservadores, por meio dos currículos, não deve ser entendido somente como uma ideia negativa a ser abandonada pelas políticas curriculares de perspectiva crítica. No seu modo de ver, o controle social pode, a partir das teorias críticas, ambicionar outra relação com os conteúdos e a organização praticados até então na escola, ofertando outra perspectiva ainda desprezada de análise da realidade e restituindo o valor histórico dos saberes estrategicamente desqualificados pelos governos conservadores e/ou pelas ciências positivistas. Terceiro: que, em se tratando de currículo, o diagnóstico do tempo presente é indispensável na compreensão do fenômeno educativo; afinal, é nossa obrigação saber onde nos encontramos – local, nacional e mundialmente – em matéria de educação. Perguntas importantes devem-se ser feitas pelos curriculistas, tais como: quais são os comportamentos desta época? Sob quais configurações políticas e econômicas vivemos na atualidade? Quais deslocamentos epistemológicos estão em curso? Quais são as novas significações da sociedade?

Já em “O político”, Paraíso selecionou: “Os Parâmetros Curriculares Nacionais em questão”, “Propostas curriculares alternativas: limites e avanços” e “Estudos de currículo: avanços e desafios no processo de internacionalização”. Como político que elabora a crítica ao Estado, Antônio Flávio, nesses textos, transita entre a crítica e a proposição, mostrando como as políticas educacionais, aliadas ao neoliberalismo econômico emergente nos anos de 1990, colocam o currículo escolar como núcleo central de suas ações, camuflando pautas importantes, como a polêmica ideia de um currículo nacional.

Com maestria, o autor mostra que, diferentemente da década de 1980 (quando se debatia qual conteúdo a escola brasileira deveria prezar na formação dos alunos), a década seguinte preferiu falar de parâmetros, de princípios e de orientações curriculares, com a clara intenção de instituir um sistema de avaliação nacional que exigia a consolidação de um currículo oficial e avaliador. Tal perspectiva ignorou boa parte do que havia sido, até então, ponto de polêmica, discórdia e negociação entre educadores e política pública, como os debates sobre conteúdos mínimos, qualidade da escola pública, experiências locais, entre outros, que simplesmente foram desprezados pelo que a política educacional brasileira batizou de Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).

Contudo, o que “O político” propõe para combater esse processo de hegemonia curricular? A resposta parece se desenhar de três formas: em primeiro lugar, aprenda a dizer não, “simplesmente diga não!”, parafraseando Michael Apple, o que já ajuda a interrogar as políticas curriculares. Em segundo lugar, acompanhe os limites e avanços de propostas curriculares oficiais e alternativas realizadas pelos municípios e estados, o que ajuda a recuperar a ideia de que nós – professores, alunos e comunidade – também somos formuladores de políticas curriculares. E, por fim, atentem para o processo de “internacionalização dos estudos de currículo”, que pode, se bem avaliado, ser bastante útil na construção de políticas curriculares mais solidárias e comprometidas com a emancipação. Aliás, os primeiros passos nessa direção já se materializam. Já foram realizados eventos na China, na Finlândia, na África do Sul, no Brasil e em Portugal, o que mostra que essa não é mais uma discussão nacional; o objetivo é conhecer e congregar o que os pesquisadores em currículo dos diferentes continentes produzem nesse campo.

Para a última parte do livro, “O multiculturalista”, foram selecionados: “A recente produção científica sobre currículo e multiculturalismo no Brasil (1995-2000): avanços, desafios e tensões”, “Currículo e estudos culturais: tensões e desafios em torno das identidades” e “A qualidade e o currículo na escola básica brasileira”, nos quais Antônio Flávio destaca a importância de se incluir, nos estudos sobre currículo, duas questões contemporâneas urgentes: a diferença e a qualidade da escola básica brasileira.

Do ponto de vista da diferença, ele argumenta que, em definitivo, vivemos, na contemporaneidade, em sociedades multiculturais, nas quais as diferenças de classe, gênero, religião, sexualidade, etnia e orientação sexual e cultural se expressam de múltiplas formas. Assim, a diferença se coloca como locus privilegiado para o descentramento do sujeito, que não é mais fixo e manipulável, mas, sim, aquele que se posiciona, nega, aceita, altera, deseja, constrói, impõe novas direções. Portanto, o autor aposta numa educação multicultural manifestada em práticas educativas que interroguem e resistam à ideia de que as coisas existiram desde sempre. Obviamente, nos alerta para o outro lado do multiculturalismo: a possibilidade de seu uso para a estandardização de culturas, posto que, sob o argumento do relativismo cultural, se celebram valores, práticas e manifestações externas às culturas locais.

Do ponto de vista da qualidade, Antônio Flávio, definitivamente, contribui com outra visão sobre a questão da qualidade da escola básica brasileira. Propõe, a partir de estudos de autores italianos, chilenos e estadunidenses, três questões sobre a qualidade. A primeira diz respeito ao conhecimento, isto é, não estaria passando da hora de os conteúdos escolares possibilitarem que os alunos compreendam suas realidades e atuem nelas? Obviamente, não se defende com isto nem a fixação dos alunos nos limites dos seus próprios mundos, tampouco a secundarização da aprendizagem em favor da pura socialização.

A segunda questão reporta-se ao processo de negociação da escola com os setores políticos da educação, a partir de seus projetos político-pedagógicos. Trata-se, portanto, de uma qualidade negociada, em que estão em jogo os diversos atores e grupos interessados no fenômeno educativo. Espera-se com isso que, no lugar de imposições verticais vindas dos órgãos centrais da educação, sejam firmadas parcerias entre escola e governo local, com vista a estabelecer o melhor para cada realidade.

Por fim, a terceira questão circunscreve-se nos limites do debate sobre o conhecimento e a negociação política. Trata-se de justiça curricular, que nada mais é do que repartir de forma mais justa os recursos materiais e simbólicos produzidos pela sociedade.

Para finalizar, algumas últimas palavras que, em minha opinião, resumem muito bem a postura que o autor demonstra ao longo de sua obra e que se encontra na entrevista transcrita nesse livro:

(…) confirmei a existência de uma educação para nossos filhos e de outra para os filhos dos outros. Educações, em vez de educação. Abalou-se, para mim, a visão da escola como um ambiente purificado, capaz de formar os bons cidadãos de que a sociedade carecia, sem que se conformasse com clareza seu papel na legitimação da estrutura de classes de uma sociedade capitalista. (Moreira, 2010, p. 32)

Assim, encerro aqui minha tarefa de resenhista. Cabe agora a cada leitor experimentar o livro do seu jeito.

André Marcio Piçanto Favacho – Doutor em Educação e professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected]

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