Arqueologia Hoje  / Especiaria / 2009

Especiaria – Cadernos de Ciências Humanas comemora, com este número, sua vigésima edição, que representa uma caminhada importante para sua continuidade enquanto revista científica voltada para a grande área das ciências humanas. Publicada ininterruptamente nesse período, os desafios não têm sido pequenos, porém, o constante reconhecimento da qualidade dos artigos e textos apresentados credencia a revista a continuar na direção trilhada.

A revista Especiaria-Cadernos de Ciências Humanas destaca, na presente edição, a arqueologia como objeto de análise de pesquisadores e estudiosos, brasileiros e estrangeiros, que se propõem a desvendar costumes, identidades e práticas culturais. “Arqueologia Hoje” é o sexto tema apresentado pela revista desde que assumiu o formato de dossiê, como parte principal de suas edições.

A publicação de um número voltado para o tema Arqueologia revela uma fina sintonia do conselho editorial da Revista Especiaria com o crescimento significativo das pesquisas arqueológicas em solo brasileiro, a necessidade de preservação do nosso patrimônio cultural e o potencial que essa ciência tem para auxiliar a construção das identidades sociais.

Em alguns textos, são lembrados instituições, cientistas pioneiros ou programas de pesquisa; em outros, fica evidente o quanto a diversidade das pesquisas desenvolvidas de norte a sul do Brasil tem revelado sobre o presente e o passado do continente americano. Os textos dos autores revelam o amadurecimento da própria disciplina em nosso país, intimamente relacionado ao maior contato entre as instituições de pesquisa nacionais e internacionais, à solidificação da Arqueologia no cenário nacional.

Dentro desse escopo, o primeiro artigo do Arqueologia Hoje é de Elvis Barbosa, professor da UESC e co-coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Bahia (NEPAB / UESC). Em Arqueologia na Bahia: uma História em construção, o autor nos oferece um histórico das pesquisas, pesquisadores e instituições que, ao longo do século XX e começo do XXI atuaram e atuam no Estado da Bahia. No transcorrer da leitura, surgem nomes de pioneiros como Vital Rego, Thales de Azevedo, Carlos Ott e Valentin Calderón, e de instituições tradicionais de pesquisa dentro do Estado, como o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia (MAE / UFBA), em Salvador, ao lado de outras mais recentes, como o já citado Núcleo de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Bahia (NEPAB / UESC) em Ilhéus, a ONG Acervo – Centro de Referência em Patrimônio e Pesquisa, localizada em Porto Seguro, e as pesquisas que têm sido realizadas na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), em Vitória da Conquista.

Na sequência, temos dois artigos voltados para a antiguidade da ocupação do território brasileiro e o grau de complexidade social das populações que aqui viviam antes da chegada dos europeus. A fim de comprovar a presença humana na América para além dos limites da transição final entre o Pleistoceno e o início do Holoceno, há 12.000 anos antes do presente, foram convidados Águeda e Denis Vialou, do Muséum National D’Histoire Naturelle de Paris. No artigo Dos primeiros povoamentos às ocupações ceramistas em abrigos rupestres do Mato Grosso, os Vialou apresentam datações de até 25.000 anos antes do presente que corroboram os dados de outros pesquisadores que argumentam que a ocupação do continente americano é mais antiga do que supunham as teorias tradicionais. Obtidas em contextos crono-estratigráficos rigorosos, onde vestígios da presença humana estão associados à megafauna extinta, os resultados oferecidos nessas escavações realizadas no centro geodésico da América do Sul são de fundamental importância para aqueles interessados na antiguidade e nos processos de povoamento do continente americano.

No campo da valorização de sistemas de ocupação regionais, suas articulações sociopolíticas e crescente complexidade em tempos anteriores à colonização européia, estão os textos de Denise Pahl Schann, de Paulo De Blasis e Maria Dulce Gaspar e de Marisa Afonso Continho. No artigo A Amazônia em 1491, de Denise Pahl Schaan, presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira e professora da Universidade Federal do Pará, a autora sintetiza a história da ocupação indígena na Amazônia por meio de uma bibliografia atual, focada na discussão sobre a alta densidade populacional da região, sua significativa diversidade étnica e a complexidade social existente antes do ano 1491. Nesse percurso, perpassa uma ocupação humana que se iniciou há pelo menos 11.000 anos com pequenos grupos caçadores, coletores e pescadores, sociedades horticultoras de floresta tropical e os cacicados que surgiram em regiões como as dos rios Trombetas e Tapajós e a Ilha de Marajó.

Já Paulo De Blasis e Maria Dulce Gaspar, professores do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo e do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, respectivamente, com Os sambaquis do Sul catarinenses: retrospectiva e perspectivas de dez anos de pesquisas primam por oferecer um balanço das pesquisas sobre as populações sambaquieiras que ocuparam o litoral Sul de Santa Catarina entre 7.500 e 1.500 anos antes do presente. Ancorados em mais de dez anos de pesquisa que coordenam na citada área, os autores discutem aspectos sobre a formação dos sambaquis e o sistema de assentamento em torno do complexo lagunar do litoral sul catarinense, revelando resultados que evidenciam a paulatina complexidade social e demográfica ao longo do período e apontam, segundo os autores, que as práticas rituais funerárias teriam tido um papel estrutural nas formas de organização social dessas populações.

Em Um painel da arqueologia pré-histórica no Estado de São Paulo: os sítios cerâmicos, a professora Marisa Continho Afonso, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, reúne informações que permitem caracterizar o Estado de São Paulo como um território singular por reunir testemunhos arqueológicos de outras regiões do país. Para tanto, utiliza o estudo de sítios-chave para a discussão de fronteiras culturais entre os grupos ceramistas associados às grandes tradições arqueológicas conhecidas na literatura especializada como Tupiguarani, Itararé / Taquara, Aratu e Uru.

Os textos seguintes, de Loredana Ribeiro, de Flavia Prado Moi e Walter Fagundes Morales, de Andrés Zarankin e Melisa Anabella Salerno e de Cristoban Gnecco, apesar de fundamentados em contextos e situações bem distintas, são claros exemplos da crescente inserção política e social da atividade do arqueólogo, a cada dia mais consciente de que sua profissão, antes estritamente dedicada à construção (ou reconstrução) do passado, não pode estar dissociada do engajamento político e social dos pesquisadores nem dos desdobramentos e consequências que podem resultar de suas atividades.

No artigo Sobre pinturas, gravuras e pessoas – ou os sentidos que se dá à arte rupestre, Loredana Ribeiro, pesquisadora do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, apresenta uma síntese sobre a influência das duas vertentes interpretativas incorporadas aos estudos da arte rupestre em solo brasileiro nas últimas quatro décadas – a perspectiva Estruturalista das missões francesas, e a Classificatória, ancorada no difusionismo cultural europeu – e discute as possibilidades interpretativas dos registros rupestres na prática da Arqueologia e na vida cotidiana das comunidades atuais, indígenas e caboclas. Dentro desse escopo, Loredana Ribeiro percorre um caminho que mostra como os significados e os sentidos dos grafismos podem receber novas significações dentro dos novos contextos culturais a que são submetidos no campo das identidades sociais.

No texto Arqueologia e Gestão de Recursos Culturais entre os Paresi da Chapada dos Paresi, MT, Flavia Prado Moi e Walter Fagundes Morales utilizam um estudo de caso, sobre os Paresi do Mato Grosso, para apresentar questões que vêm surgindo nas diferentes realidades dos povos indígenas brasileiros, que estão adquirindo crescente autonomia no manejo e gerenciamento dos recursos à sua disposição nos campos político, social, econômico e ambiental, e que envolvem uma crescente preocupação com o patrimônio arqueológico, por vezes identificado como herança cultural deixada por seus ancestrais.

Andrés Zarankin, professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG, e Melisa Anabella Salerno, professora do Departamento de Investigaciones Prehistóricas y Arqueológicas (IMHICIHU / CONICET), Argentina, tratam de um tema que tem despertado crescente interesse dentro da Arqueologia: a questão do gênero. Nesse trabalho, os autores oferecem um panorama dos estudos conhecidos como “Arqueologia de gênero”. Para tanto, em um primeiro momento discutem as origens desse campo de estudo e suas conexões com o movimento feminista para, na parte final do artigo, caracterizar os estudos de gênero e seu papel na ciência arqueológica, demonstrando como é possível pesquisar a pluralidade de identidades dentro de recortes de uma mesma sociedade.

O último artigo é de Cristoban Gnecco, professor da Universidad del Cauca, Colômbia. Em Arqueologias Latino Americanas: de la modernidad a los Estados multiculturales, Gnecco descortina as trajetórias das arqueologias na América Latina. Seu ponto de partida é histórico e descreve a rígida estrutura social e racial herdada de espanhóis e portugueses na formação dos estados nacionais e as formas de apropriação e valorização de um passado ancestral conforme os interesses de época. Nesse caminho, discorre sobre a modernidade nacionalista, a nova ordem multicultural e os papéis que a Arqueologia, o arqueólogo e outros atores sociais podem representar nesse processo de construções do passado a partir das realidades do presente.

Na sessão Artigos, André Ribeiro, da UESC, investiga como, no período que compreende o final do século XIX e a primeira metade do Século XX, foram construídas, na região Sul Baiana, relações da representação da morte como elemento importante da memória coletiva. André desenvolve uma análise que utiliza estudos necrológicos e de anúncios de funerais em jornais locais da época.

O número se completa com a resenha realizada por Marcélia Marques, professora da Universidade Estadual do Ceará, do livro Brasil Rupestre: arte pré-histórica brasileira, de Jorge Marcos, André Prous e Loredana Ribeiro, e com uma tradução do artigo de Thomas F. King Environmental Impact Assessment, Cultural Resource Management and Historic Properties: Learning from the Errors of United States, realizada por Rafael Brandi, mestrando da Universidade Federal de Santa Catarina.

Paulo Cesar Pontes Fraga – Editor.

Walter Fagundes Morales – Organizador.

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