Artes, história das ciências e técnicas: interações / Khronos – Revista de História da Ciência / 2020

Ciência e arte são duas faces da mesma efígie que representa a criatividade humana, expressões da imaginação que levam à busca pelo conhecimento e entendimento do mundo em que vivemos. É com esta convicção que foi preparado o dossiê deste número 10 de Khronos, que começa com o texto do artista plástico Walter Miranda. Embora não se costume apontar a presença feminina na produção artística, o ponto de partida deste artigo foi a procura de pintoras que, desde a Antiguidade (e talvez mesmo antes) deram contribuições notáveis a essa arte. Essa participação se intensificou bastante durante a longa Idade Média europeia, constituindo uma parte importante e pouco lembrada da história das técnicas, como ressaltado pelo autor.

Em seguida, Flávia Fassis e Lilian Martins introduzem a obra de Charles Le Brun, renomado pintor francês do século XVII, em sua relação com a fisiognomia. Acreditava-se então haver uma relação direta entre aspectos faciais e o caráter, as emoções e o temperamento humano. O filósofo e cientista René Descartes influenciou o trabalho de artistas contemporâneos como Le Brun com suas ideias sobre a alma– e a fisiognomia se tornou um auxiliar nas análises de fundo psicológico até recentemente, lembrando ainda que Charles Darwin utilizou elementos dessas teorias em seus estudos sobre a expressão das emoções em homens e animais.

Já a vida e obra de duas artesãs do Rio de Janeiro são examinadas por Desirée de Almeida, Davison Coutinho e Nilton Gamba Jr. Numa perspectiva etnográfica, conhecemos assim pessoas situadas em dois polos culturais, uma produtora de artigos de consumo popular e uma outra sendo especialista em perucas teatrais. O contraste sociológico entre ambas permite também uma reflexão sobre o lugar da artesania na história das técnicas, a partir dos seus simbolismos particulares transplantados para objetos de cultura material, assim como sua difusão em diferentes camadas sociais.

Uma singular e magnífica coleção de obras de arte do século XVII referentes à alquimia está abrigada em Filadélfia (EUA), no Centro de História da Ciência (antiga Fundação para o Patrimônio da Química), instituição mundialmente consagrada. Maria Rita Guercio fez pesquisas neste local e no presente texto introduz a história da alquimia e de suas transformações que levaram à química moderna, ilustrando o texto com obras de pintores flamengos que estão no acervo mencionado. Por vezes com ironia e tecendo comentários sobre os que se dedicavam à alquimia, essas obras permitem muitas possibilidades de leitura ao lado da história da ciência.

Os antigos papiros egípcios têm sido uma rica fonte de informações sobre a história das técnicas e Rosângela Pertile discorre sobre a história da medicina a partir de dois documentos desse tipo, sugerindo que a abordagem dessas fontes seja mais interdisciplinar. Um dos papiros descreve tratamento de fraturas e o outro trata de plantas medicinais recomendadas para várias doenças. O uso de imagens que ilustram os papiros elucida e complementa de forma decisiva aspectos dessa história que deve ter influenciado decisivamente tratados médicos posteriores como os gregos.

Para encerrar o dossiê, uma fotografia enigmática do celebrado Man Ray é analisada por Diego Rezende. Para isto, recorre à formulação clássica da teoria quântica, empreendida a partir de Niels Bohr (“interpretação de Copenhague”), tendo em vista sua aplicação à natureza da luz. A dualidade onda-partícula no caso luminoso e o princípio da incerteza se tornaram paradigmáticos com as experiências do tipo de dupla fenda, levando aos dogmas da quebra da causalidade e do princípio da não-contradição. Os paradoxos daí advindos são muito conhecidos e estabeleceram um cisma na física quântica, ainda não superado, apesar de propostas alternativas, como as da atual Escola de Lisboa. No texto, as ideias do movimento artístico do surrealismo na década de 1930 se concatenam com a visão citada da teoria quântica para propor uma possibilidade de explicação para a fotografia de Ray.

Os artigos de fluxo desta edição se iniciam com a análise sobre as formigas de Daniele do Carmo e André Frazão Helene. Intercalando um amplo arco da história dos estudos etológicos desses insetos que vivem em sociedade, tantas vezes considerada exemplar de virtudes morais, o texto mostra a influência de tais observações comportamentais sobre a cultura humana, presentes tanto na literatura quanto em fábulas e tradições de vários povos. Naturalistas, etnólogos e outros vislumbraram na coletividade das formigas aspectos que podem ser considerados metaforicamente justificativas para o próprio comportamento dos homens, tirando conclusões conforme a lição que se pretendia enfatizar.

Numa história da geometria algébrica, Renato Leme e Giorgio Venturi perpassam por um desenvolvimento milenar de noções cujas origens estão na geometria euclidiana e nas ideias platônicas. Ao longo dos séculos e passando por problemas na história das ideias como a caracterização teórica da perspectiva matemática no Renascimento, chega-se à contribuição fundamental da escola italiana do final do século XIX e posteriormente àquela do grupo francês Bourbaki, dando impulso à conceituação de “ponto genérico”, que se tem mostrado bastante fértil nos refinamentos resultantes da pesquisa matemática hodierna.

A Comissão Científica de 1859 se formou a partir de uma iniciativa da Corte imperial de Pedro II e foi integrada por naturalistas e estudiosos brasileiros, ainda que o país não tivesse uma tradição propriamente institucional de ciências, como analisado por Paulo Cesar dos Santos. Precursora das atividades da Comissão Geológica do Império e posteriormente das Comissões Geológicas e Geográficas que adentraram o período republicano, a Comissão Científica de 1859 se dedicou à província do Ceará, recolhendo observações e materiais usados para a exposição regional de 1861, que repercutiu e serviu de modelo para as futuras exposições nacionais.

A transposição do romance campeão de vendas de Umberto Eco para o filme O nome da rosa é objeto de estudo por Cecília Hulshof. Discutindo temas como veracidade e ficção, é introduzida a problemática das concepções entranhadas, mas inexatas, de obscurantismo da Idade Média, chamando a atenção para como isto influiu na própria História da Ciência. O papel dessas narrativas como auxiliar da prática didática do ensino de História é questionado, mas ao mesmo tempo se reconhece que as limitações encontradas não excluem o possível uso deste recurso.

Raiany de Oliveira reflete sobre as proposições do filósofo Jürgen Habermas em torno da ideia de progresso técnico e sua importância para a vida em sociedade. Dialogando com a proposição popularizada por Charles Snow sobre a barreira entre as ciências humanas e as exatas e naturais, o texto de Habermas é apresentado como uma tentativa de resgatar para nossos dias a noção de valor da modernidade, de que faz parte a tradição do progresso. Num viés latouriano, a autora comenta as possibilidades dessa valorização através dos estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade.

Duas tradicionais instituições da Universidade de São Paulo, a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Medicina Veterinária estão entrelaçadas na vida do médico italiano Alfonso Bovero, como demonstram José Guilherme Closs, Maria Angelica Miglino e Edson Liberti em texto solidamente documentado. Bovero veio ao Brasil para ser o responsável pela cátedra de anatomia da recém-inaugurada Faculdade de Medicina e, com sua atuação, deixou discípulos importantes nessa especialidade, tanto na Universidade de São Paulo quanto na Escola Paulista de Medicina. A especialização crescente das ciências levou a anatomia para o Instituto de Ciências Biomédicas da USP a partir da década de 1970 e este fato se insere na problemática de dispersão de fundos arquivísticos, como ocorreu com o legado de Bovero. É de se notar que na USP não existe a formação em Arquivologia (apesar de ter contado com profissionais excelentes neste campo), lacuna preenchida apenas pela UNESP nas instituições superiores de São Paulo. As vicissitudes sofridas pelo legado de cultura material de Alfonso Bovero estão retratadas nesse texto e são representativas de problemas semelhantes sofridos por tantos fundos documentais brasileiros.

O mecanismo grego antigo encontrado no naufrágio de Anticítera tem sido o foco de inúmeras pesquisas e de intensa cooperação multidisciplinar e internacional. Beatriz Bandeira faz parte dessa rede e apresenta a tradução de um dos resultados mais importantes desse esforço, o artigo de Freeth et al. sobre os calendários do mecanismo mostrando os anos das Olimpíadas e as previsões de eclipses. Trata-se de artigo seguido de extensas Notas Complementares, ambos publicados em Nature (2008).

Fechando a edição, temos um necrológio sobre o emérito historiador da ciência Edward Grant, falecido em meados de 2020.

Desejamos aos leitores uma leitura gratificante sobre o amplo material desta edição, feita durante a (e apesar da) pandemia da Covid-19.

Gildo Magalhães – Editor


MAGALHÃES, Gildo. Editorial. Khronos – Revista de História da Ciência. São Paulo, n.10, dez., 2020. Acessar publicação original [DR]

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