Magistério oitocentista: contribuições da história da educação na problematização de questões de gênero, etnia e protagonismo docente / Revista Brasileira de História da Educação / 2018

Este dossiê é composto por quatro artigos sobre professores oitocentistas com recortes que contemplam diferentes regiões, períodos e questões [1]. O intuito desse conjunto de reflexões consiste em trazer contribuições da história da educação para a problematização de questões de gênero, etnia e protagonismo no exercício do magistério, considerando as singularidades regionais do território, em um período determinado da história brasileira, o Oitocentos.

A docência constitui parte imprescindível dos processos educacionais previstos nos projetos de civilização, progresso e ordenação de sociedades no século XIX, concebidos por agências governamentais ou não. O magistério público, em tais circunstâncias, confere ao ofício a particularidade de atuar em nome do Estado, mas também de ser peculiarmente afetado por ele. Da mesma maneira, atua na sociedade e é afetado por ela e por suas demandas sociais, ainda que algumas sejam configuradas como bandeiras de determinados grupos. Ambas as condições provocam continuamente os professores a se posicionarem com gradações de maior ou menor conformismo ou insubordinação, tornando-se atores de uma agenda que são convocados a cumprir.

Ao longo do Oitocentos, o ofício foi significativamente regulado por leis e por costumes oficiosos marcados pelas diversidades regionais, imperativos e urgências que, somados às experiências docentes (Schueler, 2001; Munhoz, 2012), conferem diferentes matizes aos processos de constituição da profissão. Também sinalizam os problemas e os efeitos do processo de inculcação de valores, de conformação e de adesão da população, via educação, a um projeto de governamentalidade, em que pesem os recorrentes movimentos insurgentes ao longo do Império.

Compreender e analisar tais aspectos permitem desnaturalizar ideias e imagens produzidas em torno do ofício de professor, bem como desconstruir crenças arraigadas e difundidas por muito tempo no próprio meio acadêmico. A persistência do tema da docência na composição dos eixos dos congressos da área como o Congresso Brasileiro de História da Educação e o Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação e o quantitativo expressivo de trabalhos remetem à emergência de novas abordagens, mas também sinalizam que a temática continua sendo importante objeto de estudos da história da educação e do campo da educação.

Os artigos que compõem o dossiê, no que se refere aos recortes temporais, abordam desde experiências iniciadas na década de 1820 avançando até o fim do século XIX. A maior concentração de estudos na segunda metade do século se relaciona com a ampliação da escolarização e da cultura escrita, abertura de escolas, instituições formadoras e criação de periódicos. Este crescimento incrementou a produção de registros que são tomados como fontes das pesquisas. Neste período, algumas medidas governamentais relativas à Instrução Pública, como a lei de 15 de outubro de 1827 e o ato de 1834 (adicional à Constituição de 1824), desencadearam um significativo crescimento da malha escolar e dos docentes. Marcos internos à história da educação – tanto da esfera central como estes citados, quanto provinciais – balizam as periodizações, assim como os eventos da história política das regiões e do Império do Brasil.

Assim, são analisadas trajetórias docentes vividas em regiões com diferentes características, ‘centrais’ e ‘periféricas’, imersas em ritmos sociais e econômicos distintos. São locais centrais – como a Corte – ou mais distantes geograficamente do poder imperial como a província da Parahyba do Norte. A Corte apresentava grande urbanização e era a mais populosa entre as localidades recortadas; São Paulo era uma capital pouca urbanizada, mas estava entre as regiões mais populosas da província. A vila de Cotia, servindo de contraponto, apresenta um contexto cultural caipira de uma região da província de São Paulo.

Fernanda Moraes, no artigo intitulado ‘Professores e professoras públicas de Primeiras Letras em Cotia (SP, 1870-1885): trajetórias docentes e estratégias do oficio de ensinar’, analisou a atuação de docentes de primeiras letras em Cotia – município vizinho à capital paulista, entre os anos de 1870 e 1885. Ao rastrear a vida pública de 14 professores, a autora identificou a presença deles em cargos públicos e / ou em funções diversas, concomitantes ou não ao exercício do magistério. Foram sujeitos que atuaram, sobretudo, no último quartel do século numa localidade periférica – Cotia – geograficamente próxima à capital paulista, mas distante do crescimento econômico que se assistia em outras regiões da província. Enquanto muitas localidades paulistas vivenciavam o desenvolvimento econômico propiciado pela cultura do café e instalação da linha férrea, Cotia vivia um processo de retrocesso justamente por ser um ponto importante do tropeirismo que decaiu com a ferrovia. Fernanda Moraes destacou que, a despeito da estagnação econômica, a escolarização foi ampliada na região e ressaltou a importância da ambiência familiar e das relações entre masculino e femininona configuração do magistério no XIX.

Angélica Borges, no texto intitulado ‘Lugares do magistério na Corte Imperial: o protagonismo do professor Candido Matheus de Faria Pardal’, apresenta uma reflexão acerca da trajetória de um professor que lecionou e circulou por diferentes espaços escolares, mas também por espaços religiosos, recreativos, sociais e políticos, na capital do governo imperial, a localidade mais urbanizada no período. Candido Matheus de Faria Pardal (1818-1888) exerceu o magistério por pelo menos 42 anos – no ensino primário, secundário e profissional – em instituições públicas e particulares, para meninos e meninas. O professor também atuou como examinador e escreveu compêndios. Angélica Borges destacou como Pardal extrapolou os limites da escola em diversas associações de caráter religioso, social, cultural, político e econômico, e em diferentes cargos públicos, estabelecendo uma série de relações a partir da escola com professores, governantes, famílias dos alunos, vizinhança, a cidade e o mundo estrangeiro, em um momento de intensificação do processo de escolarização na sociedade da Corte – por mais de quatro décadas – atravessando três quartéis do XIX. Por meio do recorte da trajetória prolongada de um professor numa localidade central, a autora refletiu sobre as diferentes relações estabelecidas entre magistério, escolarização e cidade.

A partir de um recorte provincial, Surya Aaronovich Pombo de Barros, no artigo intitulado ‘Graciliano Fontino Lordão: um professor ‘de côr’ na Parahyba do Norte’ destaca à luz da história da educação da população negra no Brasil a trajetória do professor Lordão (1844-1906), filho de uma mulher negra de quem se tem poucas informações e de um frei católico, que era professor e detinha relativa proeminência na sociedade local. Surya Barros acompanha a trajetória de escolarização, o exercício do magistério (como professor particular e público de primeiras letras e de latim) e a atuação política de Lordão como deputado provincial / estadual por quatro mandatos, além de dirigente do Partido Liberal. A autora questiona o impacto que a presença de um professor negro pode ter representado para os alunos e a possível relação entre pertencimento racial e algumas de suas práticas docentes como ter um aluno que era filho de uma escrava ou abrir uma aula noturna para adultos. Seu objetivo é destacar a possibilidade de ascensão social que a instrução podia representar para a população negra sem desconsiderar os obstáculos, a exclusão e a precariedade vivida por estes sujeitos.

Fabiana Garcia Munhoz, no artigo intitulado ‘Para além das prendas domésticas: a trajetória da mestra Benedita da Trindade no magistério feminino paulista’, aborda a trajetória da professora pública de primeiras letras pioneira da cidade de São Paulo, Benedita da Trindade do Lado de Christo. A autora interpreta questões que perpassaram o magistério feminino nesta província problematizando a legislação que criou as aulas públicas de primeiras letras para meninas e, a partir da trajetória da mestra Benedita, destaca a questão dos saberes específicos previstos pela lei (as prendas domésticas) retomando estudos anteriores (Hilsdorf, 1997; Rodrigues, 1962) e a interpretação desta historiografia de que a mestra resistia em ensinar as prendas domésticas previstas pela lei. Operando numa perspectiva micro-histórica, Fabiana Munhoz analisa o ingresso no magistério com a novidade representada pelos concursos públicos entre a população feminina; destaca a atuação de professoras como examinadoras das novas candidatas e estabelece algumas relações entre as experiências das mestras e os lugares que ocuparam – ou buscaram ocupar – na instrução feminina e transmissão do magistério entre mulheres na cidade de São Paulo em meados do XIX.

Os artigos do dossiê dão cor à heterogeneidade da docência – e da escolarização – ao longo do Oitocentos. Foram três abordagens com recortes locais e uma provincial. Em um cenário de contexto caipira, como o da vila de Cotia, observamos uma rede de professores em atividade e a ampliação da malha escolar. Acompanhamos os sujeitos professores – homens e mulheres – em suas relações, cooperações e conflitos para efetivar as aulas de primeiras letras numa localidade pouco populosa e urbanizada e com uma economia próxima da subsistência. Quase meio século antes, há alguns quilômetros da pequena vila de Cotia, na capital da província de São Paulo (uma cidade pouco urbanizada no período, mas capital de província), o magistério feminino era inaugurado e exercido por uma professora que conviveu com outras mestras, alunas e famílias, vereadores, inspetores e presidentes de província e lidou com questões relativas ao ingresso, exames, saberes das aulas femininas e transmissão do magistério. À modesta urbanização da província de São Paulo, onde acompanhamos uma experiência feminina, contrapõese o dinâmico cenário da Corte. Além dos contrastes regionais e do espaçamento do tempo, pesa a diferença de gênero nas experiências docentes dos sujeitos investigados.

A diversificada trajetória do professor Pardal atravessa e é atravessada por múltiplos espaços da cidade do Rio de Janeiro. Por ser homem, a vida pública do mestre foi bastante movimentada (e registrada em fontes) em associações de caráter religioso, social, cultural, político e econômico. Sua experiência indicia um caráter urbano do magistério na medida em que professor e seus alunos adentraram e abriram as escolas para estes espaços. No mesmo Império do Brasil, numa província do Norte do Império [2], bastante distante da Corte e com uma economia alicerçada na produção agrícola (açúcar e algodão), pecuária e no trabalho escravo combinado à mão de obra livre, acompanhamos a trajetória de um professor negro e os impactos de sua atuação num país onde a escravidão era legalmente permitida e fonte de produção da riqueza que se concentrava nas mãos de uma minoria da população.

Às diferenças regionais soma-se a diversidade temática das investigações. Como já destacamos, houve uma variedade de objetos – desde a circulação de professores e sua presença em outros espaços da cidade exercendo um protagonismo docente, relações familiares, transmissão do magistério até a questão racial e de gênero. Para subsidiar as análises, foi mobilizado um repertório diversificado de fontes. As interpretações são construídas a partir de cuidadoso trabalho de pesquisa em arquivos e de sistematização. Entre as fontes, destacam-se os documentos manuscritos da Instrução Pública de arquivos estaduais; imprensa oitocentista; relatórios de inspetores da Instrução e de presidentes de província; relatórios oficiais e legislação educacional.

Os artigos do dossiê trazem contribuições da história da educação para as reflexões sobre o magistério oitocentista e evidenciam as diferentes possibilidades de enfoque em torno da docência. Pardal, Lordão, Benedita da Trindade e os diversos professores de Cotia protagonizaram histórias de negociação e conformação diante das condicionantes impostas, e também de resistência, ousadia e luta para inserção e intervenção na sociedade por meio do magistério. Cada qual à sua maneira, a partir das possibilidades, de sua condição regional, de gênero ou de etnia, deixou seu quinhão de contribuição para compreendermos e constituirmos as multifacetadas páginas da docência na história da educação brasileira.

Notas

1. Os artigos que compõem este dossiê foram apresentados no formato de Comunicação Coordenada intitulada ‘Magistério oitocentista: singularidades regionais, de gênero e raça em trajetórias docentes’, no IX Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado em 2017, em João Pessoa-PB, no eixo temático ‘Formação e Profissão Docente’.

2. Durante o século XIX, as expressões ‘províncias do norte’ e ‘do sul’ eram utilizadas, mas sem organização oficial. O que se denominava de região Norte dizia respeito aos atuais norte e nordeste (Gregório, 2012).

Referências

GREGÓRIO, V. M. (2012). Dividindo as províncias do Império: a emancipação do Amazonas e do Paraná e o sistema representativo na construção do Estado nacional brasileiro (1826-1854). São Paulo, SP: USP.

HILSDORF, M. L. S. (1997). Mestra Benedita ensina primeiras letras em São Paulo. São Paulo, SP: Plêiade.

MUNHOZ, F. G. (2012). Experiência docente no século XIX: trajetórias de professores de primeiras letras da 5ª comarca da Província de São Paulo e da Província do Paraná (Dissertação de Mestrado em educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo.

Rodrigues, L. M. (1962). A instrução feminina em São Paulo. São Paulo, SP: Escolas Profissionais Salesianas.

SCHUELER, A. F. M. de (2001). Culturas escolares e experiências docentes na cidade do Rio de Janeiro (1854-1889) (Tese de Doutorado em educação). Faculdade de Educação da UFF, Niterói.

Fabiana Garcia Munhoz – Historiadora e pedagoga pela Universidade de São Paulo (2002, 2008). Mestra (2012) e doutora (2018) em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Suas investigações na área da História da educação dedicam-se ao estudo sobre o magistério oitocentista com foco na história social do trabalho docente, história social das mulheres e relações de gênero. Participa do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em História da Educação (NIEPHEFEUSP) desde 2007. É professora de Educação básica da cidade de Rio Claro – SP / BR desde 2013. E-mail: [email protected] https: / / orcid.org / 0000-0002-0198-4924

Angélica Borges – Graduada em Pedagogia e mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP, 2014). Professora adjunta do Departamento de Ciências e Fundamentos da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Campus Duque de Caxias (FEBF-UERJ), e professora da educação básica na Rede Municipal de Duque de Caxias (RJ). Integrante do grupo de pesquisa EHELO- FEBF (Estudos de História da Educação Local). E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-0207- 943X


MUNHOZ, Fabiana Garcia; BORGES, Angélica. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá-PR. Maringá, v. 18, 2018. Acessar publicação original [DR]

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