Usos práticos do passado | Temporalidades | 2017

Em 1998, Carl Schorske editava pela Princeton University Press o livro que, na edição brasileira, publicada alguns anos depois, recebeu o nome de Pensando com a História. Indagações na passagem para o modernismo. O título do livro é bastante atraente e sugestivo, uma vez que Schorske não propõe pensar sobre a história. Diferentemente, a intenção dele era pensar com a história. Uma pequena mudança, mas que acaba nos conduzindo para outro tipo de reflexão. Convém, portanto, perguntar: o que vem a ser pensar com e de que maneira isto se difere de pensar sobre a história?

Ninguém melhor do que o próprio Schorske para tentar esclarecer a diferença. Segundo ele, pensar sobre a história significa um tipo de tarefa um tanto específica, realizada especialmente pelos filósofos e teóricos desta disciplina, interessados no que ele chama de “uma forma geral de produzir sentidos”.[1] Pensar com a história implica outra prática, cujo elemento central está na mobilização e emprego dos materiais do passado para nos orientarmos no presente. A palavra prática não aparece aqui por acaso. Na verdade, Schorske está se referindo, especificamente, a práticas culturais que configuram sentidos ao passado e formam imagens a partir das quais os homens se definem no presente. O universo abarcado pelos ensaios de Schorske perpassa a sociedade europeia na passagem do século XIX para o XX. Para ele, se no Oitocentos Clio esteve em ascensão, alimentando, pela reflexão histórica, as respostas dadas pelos homens daquele tempo ao processo de modernização pelo qual passavam os países europeus, no século seguinte, o modernismo propôs entender esse processo por ele mesmo, buscando-se, a partir de então, um afastamento e mesmo uma crítica ao historicismo.[2]

As reflexões trazidas por Schorske nesse livro, em especial a proposta de pensar com a história, nos remetem à compreensão do lugar da reflexão histórica numa dada cultura e às diversas maneiras pelas quais as sociedades se relacionam com o seu passado. Isso significa partir de um pressuposto que, embora possa parecer banal, é muitas vezes esquecido por nós, historiadores: o de que as representações que construímos do passado são apenas uma possibilidade dentre os variados usos e sentidos conferidos a ele numa dada sociedade. Isso significa dizer, em primeiro lugar, que o passado não é exclusivo do historiador. Sobre ele, se debruçam diversos agentes e instituições, como outros intelectuais, artistas, escritores e políticos que, de maneiras distintas, tomam o passado como referência para o presente e para a construção de projetos de futuro. Em segundo lugar, isso nos leva a problematizar a ideia de uma relação desinteressada com o passado (inclusive quando nos referimos ao passado dos historiadores), uma vez que esses usos nos apontam para interesses diversos e para o quê do passado é escolhido para ser significado pelos homens do presente.

O interesse por compreender as formas de dar sentido e utilidade ao passado certamente tem ocupado cada vez mais o universo de preocupações dos historiadores. Partindo de múltiplas referências teórico-historiográficas e mobilizando noções diversas – como “cultura histórica”, “usos do passado”, “passados práticos” –, os historiadores têm se debruçado, já há algumas décadas, não só sobre os produtos e procedimentos que caracterizam o seu próprio trabalho (isto é, o trato com a documentação, a narrativa, os pressupostos teóricos que conduzem as análises, o aparato conceitual mobilizado pelos historiadores profissionais quando “fabricam” história), como também têm se aberto para a compreensão das formas de divulgação, adaptação, mediação e vulgarização do passado produzidas por diversos agentes sociais e por meio de diferentes mídias. Tal movimento implicou também numa maior atenção por parte dos historiadores para os públicos que se interessam, consomem e se apropriam desses passados. Questão não menos importante, especialmente no momento atual, em que a maior facilidade de comunicação viabilizada pelas redes sociais faz com que diferentes discursos sobre o passado circulem de forma mais rápida. Discursos, em muitos casos, produzidos não por especialistas e com finalidades políticas muito claras. Tal movimento tem levado os historiadores a uma dupla interrogação: por um lado, acerca do lugar que a reflexão histórica ocupa hoje nas diversas sociedades e da capacidade que este discurso ainda tem de ensinar algo aos homens do presente. Uma velha e conhecida problemática que, a rigor, nos leva a toda a discussão acerca das transformações pelas quais passou o preceito da historia magistra vitae ao longo da Modernidade. A segunda questão pode ser sintetizada no interesse em compreender a relação (ou, talvez, as dificuldades existentes nesta relação) que os historiadores de profissão mantêm com uma audiência que extrapola o grupo dos pares universitários. [3] Como se vê, as duas interrogações se ligam, já que a constituição da história como conhecimento científico e especializado, produzido por um profissional, alterou também o público para o qual falava o historiador. Entretanto, é preciso considerar dois aspectos. Primeiramente, a constituição da história como conhecimento científico não anulou seu papel pedagógico, isto é, a ideia de que era possível aprender com a história. Além disso, o mesmo século XIX, que é reconhecido como o momento de disciplinarização do conhecimento histórico, foi também o período de emergência do historiador na “república das letras”, o que conferiu a ele um lugar de destaque na vida pública. Lugar este que certamente foi alterado e passou a ser ocupado por outros profissionais. Talvez seja por isso que essas questões estejam tão fortes hoje na agenda dos historiadores: qual a força e o impacto daquilo que produzimos para um público “geral”, de não especialistas? Como lidar com as diversas outras formas de dar sentido ao passado, existentes no vasto conjunto de uma cultura histórica, formas que, não raro, têm um alcance muito maior do que nossos trabalhos acadêmicos?

O dossiê temático Usos práticos do passado, que compõe a edição 23 da Revista Temporalidades, insere-se nesse universo de questões, reunindo artigos que debatem os usos e funções conferidos ao passado em momentos distintos e por diferentes sociedades. Como o leitor verá, este número da revista reúne análises bastante variadas, com enfoques e objetos instigantes. Subjacente a essa diversidade, há uma questão maior, que talvez sirva para alinhavar todos os trabalhos, e que diz respeito à mobilização do passado pelos múltiplos “presentes”.

O artigo de Luis Cláudio Palermo, Tempo e temporalidade: transformações semânticas modernas e alguns desdobramentos na produção do conhecimento histórico, abre o dossiê tratando de algumas noções centrais para o campo do conhecimento histórico. São elas: tempo, temporalidade e aceleração do tempo. Dividindo a análise em dois momentos, o autor pretende, inicialmente, fazer uma discussão conceitual, discutindo os novos sentidos dados a esses conceitos na Modernidade à luz das contribuições trazidas por escritores como Heidegger, Norbert Elias e Edward Thompson. Em seguida, aborda o impacto da transformação dessas noções na produção do conhecimento no campo da história.

Carmem Lúcia Druciak, no artigo A obra Songe du Vieux Pèlerin de Philippe de Mézières e sua proposta de reforma da cavalaria francesa na Baixa Idade Média, leva a discussão sobre as apropriações e sentidos dados ao passado para a Europa do século XIV. Tomando o espelho de príncipe que Philippe de Mézières, diplomata e conselheiro real, escreveu para o jovem monarca Carlos VI, a autora evidencia como aquele autor elaborou uma crítica ao estado da cavalaria de sua época e procurou entender uma sociedade em transformação, buscando nos valores do passado uma proposta de reforma para esta instituição.

O artigo La figura del Dr. Francia en la historiografía paraguaya posbélica: la batalla por los héroes, de Bárbara Natalia Gómez, nos conduz ao Paraguai de fins do século XIX para compreender o debate em torno de quais personagens deveriam ser escolhidos para compor o panteão dos heróis nacionais, uma discussão que envolveu os intelectuais, e que ocorreu em um momento central de reconstrução do país após a guerra contra a Tríplice Aliança. A batalha mencionada no título do artigo se deu entre dois historiadores, Manuel Dominguez e Blas Garay, e em torno da figura de Gaspar Rodrigues de Francia, ditador da República paraguaia entre 1814 e 1840 e um dos participantes do movimento que levou à independência do país em 1811. O artigo, além de tratar de algumas questões próprias ao processo de conformação da disciplina histórica no país latino-americano, aponta para as profundas disputas que envolvem a narrativa em torno da independência paraguaia e os valores que seus heróis deveriam representar. Além disso, o artigo de Bárbara Gómez evidencia as intricadas relações tecidas entre o trabalho do historiador e os interesses políticos subjacentes à construção das identidades nacionais.

As íntimas relações entre memória e história e as disputas em torno da memória nacional também constituem pontos centrais do artigo seguinte, Memórias conflituosas no Oeste estadunidense, de Lucas Henrique dos Reis. O espaço estudado desloca-se para o Oeste dos EUA, lugar de intensos conflitos territoriais. Dialogando com os trabalhos de Michel Pollak, o autor parte do memorial construído em uma das famosas montanhas das Black Hills, entendendo-o como representante por excelência de uma memória oficial enaltecedora da Revolução Americana e da Guerra Civil. Entretanto, como mostra Reis, essa memória oficial, alimentada pelas interpretações formuladas por intelectuais e políticos, não anula (e mesmo se choca com) as memórias ditas “periféricas”, ou subterrâneas, produzidas por outros grupos, que, nas palavras de Pollak, “teimam em venerar justamente aquilo que os enquadradores de uma memória coletiva em um nível mais global se esforçam por minimizar ou eliminar”.[4]

A dimensão da memória nacional também está presente no artigo de Thiago de Souza Júnior, Dimensões raciais e políticas educacionais: usos do passado na conformação dos valores estadonovistas. Entretanto, dessa vez o olhar se volta para a dimensão do ensino e para um objeto bastante especial, o livro didático, que ganha relevo na análise. Entendendo a escola como espaço central para a realização dos projetos políticos e culturais do Estado Novo, o autor circula pelos campos dos estudos da memória e do ensino de história, evidenciando o papel ocupado pela história como disciplina escolar na promoção de um discurso identitário, cujo principal veículo de divulgação eram livros didáticos como História do Brasil, de Basílio de Magalhães. Assim, o livro didático de história é tomado aqui como um suporte a partir do qual se difunde uma interpretação acerca do passado, bem como valores característicos de certos projetos políticos.

Em seguida, temos o artigo Repetir para inventar: A recepção dos clássicos na França Ocupada, de Rafael Guimarães Tavares Silva. Aqui, o autor se vale do conceito de falsificação, entendendo-o na sua multiplicidade de sentidos, para pensar como, em uma circunstância histórica específica, escritores franceses como Sartre, Camus, Simone de Beauvoir, Paul Valéry e Jean Anouilh retomaram textos e figuras da Antiguidade Clássica, apropriando-se deles. Isso em um período especialmente crítico, quando a França foi ocupada pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial.

Encerramos o dossiê com o artigo Black Mirror e a cegueira moral da Modernidade, de Maria Visconti. Por meio dele, o leitor, seja conhecedor ou não da série televisiva que dá título ao texto, vai se deparar com uma análise do episódio “Engenharia reversa”, exibido na 3ª temporada da produção. Lançando mão das ideias apresentadas por Hannah Arendt e Zygmunt Bauman, a autora se interroga sobre as lições promovidas por episódios traumáticos do século XX, como o Holocausto, e até que ponto estaríamos, hoje, livres de outro acontecimento como esse. Mas o texto vai além, nos levando a pensar como uma série de grande sucesso, como é Black Mirror, apropria-se de elementos do passado para chamar a responsabilidade dos homens do presente para com o futuro.

Como é possível perceber, o leitor terá aqui a possibilidade de conhecer artigos (em muitos casos, frutos de pesquisas de mestrado e doutorado) que buscaram analisar as implicações políticas, sociais e identitárias de determinadas leituras do passado. Mas as contribuições trazidas pelos textos que compõem esse dossiê não me parecem ficar apenas nisso. Eles também apontam para uma questão central para os historiadores de hoje e que diz respeito a assumir que o profissional da história, ligado atualmente a uma universidade, não tem (e nunca teve) o monopólio sobre o passado, o que nos obriga a aguçar nosso olhar para outras formas de dar sentido ao passado, produzidas por agentes diversos, e que atingem a amplos públicos. Isto é, outras formas a partir das quais as sociedades pensam com a história. Certamente, há aí uma abertura interessante para análises que circulam por campos diversos, como o estudo das memórias, dos intelectuais, da história da historiografia, do ensino e da teoria de história. Os trabalhos publicados aqui são uma amostra desses caminhos.

Notas

1. SCHORSKE, Carl E. Pensando com a História. Indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 13.

2. SCHORSKE, Carl E. Op. Cit. p. 13-28.

3. Duas reflexões interessantes nesse sentido foram propostas recentemente por Arthur Lima de Ávila e Jurandir Malerba. Cabe ressaltar que este último autor, ao tratar da questão da recepção para o caso da produção historiográfica, lança mão da noção de “audiência”, compreendendo que ela traria para o centro do debate o “leitor comum”, isto é, “qualquer leitor que não tenha a leitura como profissão”. MALERBA, Jurandir. Os historiadores e seus públicos: desafios ao conhecimento histórico na era digital. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n. 74, 2017; ÁVILA, Arthur Lima de. (In)disciplinando a história: do passado histórico ao passado prático. Disponível em: https: | / www.academia.edu | 17902409 | _In_disciplinando_a_hist%C3%B3ria_do_passado_hist%C3%B3rico _ao_passado_pr%C3%A1tico; acessado em 28 de maio de 2017

4. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 10.

Ana Paula Sampaio Caldeira – Departamento de História | UFMG.


CALDEIRA, Ana Paula Sampaio. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.9, n.1, Jan./abr. 2017. Acessar publicação original [DR]

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