Cash for your trash: Scrap recycling in America – ZIMRING (RBH)

ZIMRING, Carl A. Cash for your trash: Scrap recycling in America. New Brunswick (NJ): Rutgers University Press, 2009. 221p. Resenha de: BOSI, Antonio de Pádua. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.33, n.66, jul./dez. 2013.

Publicado em 2009, Cash for your trash foi originalmente escrito como tese de doutorado na área de História na Carnegie Mellon University (Pennsylvania, EUA), em 2002. Embora seja um dos primeiros estudos especializados sobre a reciclagem de sucata nos Estados Unidos, seu alcance abriga fontes e reflexões que possibilitam rastrear algumas mudanças nas práticas sociais, desde o século XIX, relacionadas ao desperdício e à reutilização de todo tipo de materiais descartados. Este último aspecto é a característica mais relevante do livro.

Inicialmente, Carl Zimring propõe um difícil problema: qual é o significado da reciclagem? Por meio de uma rudimentar escala histórica o autor afirma que essa atividade é bastante antiga, e encontra registros desde os séculos VIII e VII a.C., quando Isaías e Miqueias profetizaram que Deus converteria os povos de tal modo que “das suas espadas forjariam relhas de arados, e das suas lanças, foices” (Zimring, 2009, p.13). Sua evidência seguinte aponta para a Europa medieval do século XII e para técnicas de produção de papel a partir de restos de pano. Deste ponto ele se aproxima rapidamente dos séculos XVIII e XIX, e identifica a presença de um incipiente mercado para a compra e venda de trapos e ferro-velho, cujos desdobramentos teriam causado forte impacto econômico e social no século XX, tornando-se um importante, lucrativo e monopolizado empreendimento:

Lidar com o lixo tornou-se um grande negócio na década de 1990. Diversas cidades privatizaram seus sistemas de recolhimento e processamento de lixo, estabelecendo contratos com empresas gigantes que passaram a dar um destino para o desperdício da sociedade. Firmas privadas estabeleceram contratos com cidades durante décadas, mas onde operavam 10 ou 20 mil companhias passou a haver lugar para apenas quatro corporações nacionais que agora dominam esse mercado. (Zimring, 2009, p.155, tradução nossa)

Na percepção do autor, a sobrevivência humana baseada no lixo surgiu como uma alternativa para pessoas pobres e sem repertório para entrarem no mercado de trabalho. Apoiado no estudo do sociólogo Stewart Perry (1998), sua caracterização acerca dessa atividade indicou um tipo de trabalho “sujo, perigoso e de baixo status“. Tratou-se, no início, de uma atividade restrita a imigrantes europeus pobres, principalmente italianos com pouco domínio da língua inglesa. A desconfiança tida contra tais imigrantes esteve aliada a uma percepção negativa sobre lidar com o lixo dos outros, produzindo uma sensibilidade generalizada de que essa atividade era mesmo suja e repulsiva – a razão fundamental da falta de prestígio que marcou homens e mulheres que se ocuparam com esse trabalho. Mesmo quando a sucata foi transformada em mercadoria e passou a ser vista também como um vantajoso negócio, o status daqueles que viviam desse comércio não mudou.

Zimring confirma que desde o século XIX diversos materiais foram sistematicamente recolhidos e negociados em muitas cidades. Borracha, panos velhos, garrafas, estanho, ferro, aço e até ossos (transformados em fertilizantes) constituíram a renda de muitos trabalhadores que, a serviço de negociantes (que atuavam como atacadistas dessas mercadorias), cruzavam grandes centros urbanos em carroças coletando ou comprando essas sobras. Contudo, sobre isso, suas reflexões e as fontes pesquisadas não ultrapassaram a contribuição de Susan Strasser (2000) acerca da realidade das pessoas que sobreviveram dessa atividade até a primeira metade do século XX.

A atenção de Zimring dirigiu-se predominantemente ao comércio de materiais descartados e à sensibilidade frente ao desperdício. Centrado na questão do comércio de materiais recicláveis, o autor oferece um retrato estatístico da conversão do lixo em negócio. Na segunda metade do século XIX, o crescimento das transações envolvendo sucata ao longo do século XIX nos Estados Unidos (especialmente restos de ferro e aço) foi bastante visível. Se em 1884 registrou-se a importação de 733 mil toneladas de ferro e aço, em 1887 o volume importado saltou para quase 2 milhões de toneladas. Tal crescimento tornou-se evidente desde as primeiras décadas do século XIX, quando o Estado taxou esse tipo de importação e arbitrou um sistema de classificação a fim de estipular a qualidade do material negociado. Entretanto, o comércio de materiais recicláveis, que aumentou continuamente no século XIX, não era motivado por nenhum tipo de preocupação centrada no desperdício ou na higiene.

Para Zimring, a preocupação com a preservação do meio ambiente surgida no início do século XX (particularmente as florestas e os recursos naturais ameaçados pela sociedade industrial e de consumo) esteve associada à estratégia de negócios da National Association of Waste Material Dealers (NAWMD). A utilização do sentimento preservacionista (aparentemente disseminado nos Estados Unidos desde o início do século XX) para legitimar o negócio de materiais recicláveis tornou-se uma prática publicitária recorrente e um poderoso argumento político para reconhecer e valorizar a função social dos empresários desse setor. Zimring identifica como esses empresários começaram a expressar repetidamente essa visão desde 1913, quando foi criada a NAWMD. Naquele ano, o presidente da entidade tentava afirmar a função social de seus pares e associados dizendo que “os negociantes de resíduos são os verdadeiros preservacionistas. Eles têm conseguido retirar milhões de dólares do lixo” (Zimring, 2009, p.73). Contudo, embora a referência ao sentimento preservacionista fosse clara por parte dos negociantes de sucata, o mesmo não acontecia com a população e com o Estado. Os programas públicos que estimularam a reciclagem só apareceram na década de 1940 em função, prioritariamente, da necessidade de fornecer metal e borracha para a indústria num contexto de guerra. O principal slogan do governo repercutia os efeitos de Pearl Harbor, e não uma preocupação ambientalista: “recolher sucata para explodir os japoneses!”.

De qualquer modo, a disseminação da prática da reciclagem parece ter sido estimulada pelo Estado, o que certamente fortaleceu os negociantes de sucata. Mas isso foi feito inicialmente sem recorrer a argumentos ambientalistas. A primeira grande intervenção estatal aconteceu em razão do esforço de guerra que envolveu a reutilização de materiais empregados na indústria bélica. Sobre isso, Zimring identificou o surgimento de propaganda governamental sistemática que buscava mobilizar a população para recolher itens como metais e borracha. Contudo, foi um esforço nitidamente datado, pois o final da Segunda Guerra Mundial encerrou também a cruzada moral da reciclagem. O Estado só voltaria a promover a reciclagem uma década depois, pressionado pelo resultado de um consumismo sem antecedentes nos Estados Unidos.

Sobre isso Zimring destaca o que uma abundante literatura já havia evidenciado, que ao longo dos anos 1940 e 1950 os estadunidenses foram encorajados a consumir numa escala crescente, de modo a converter esse comportamento em uma prática social rotinizada e exponencialmente poluidora. O rápido descarte de mercadorias envelhecidas ‘precocemente’ tornou-se um fenômeno social novo e surpreendente. Apenas no ano de 1951, aproximadamente 25 mil automóveis descartados estavam espalhados em diversos ‘cemitérios’ pelo país. Esse número cresceria para 8 milhões durante a década de 1960. Tal quadro parece ter justificado um novo esforço dirigido para o recolhimento e reaproveitamento dessa sucata, apelando para uma visão higienista centrada na limpeza e estetização de margens de estradas e terrenos urbanos que assustavam em razão da quantidade de entulhos, principalmente as carcaças de automóveis.

Zimring aponta ainda que seguidos governos investiram nesse sentido ao longo das décadas de 1960 e 1970, desenvolvendo um aparato institucional que buscou regulamentar as áreas para o depósito de sucata sem, contudo, garantir ou facilitar meios para a reutilização desse material. As inovações tecnológicas que possibilitavam a separação e transformação de ferro, aço, borracha e plástico, por exemplo, apresentaram outros ritmos, e o seu emprego logicamente dependia de mostrar-se mais barato que a produção de tais itens in natura.

O livro se torna mais interessante à medida que se aproxima do tempo presente e passa a abordar a articulação entre a reciclagem e o ambientalismo (datando e explicando o surgimento dessas duas éticas), mostrando, mesmo que brevemente, de que modo isso favoreceu a constituição de uma poderosa indústria da reciclagem. Além disso, a abordagem tentada por Zimring sugere e anima uma perspectiva sobre esse tema em que a escrita do historiador assume a força de uma intervenção política, uma vez que o autor conduz algumas de suas reflexões até a atualidade. Mas é também a parte mais curta e menos explorada do livro, permanecendo como um desafio para futuros estudos. Sua visão sobre o modo como se generalizou a percepção de que “reciclar é ecologicamente correto” é pouco precisa. Por um lado, tal inexatidão deve-se ao fato de que essa é uma questão recente, com desdobramentos ainda inacabados. Por outro lado, a sondagem do autor acerca desse problema é pouco profunda porque, em grande medida, maneja um volume tímido de fontes primárias e secundárias. Mas não se deve considerar isso um defeito do livro, pois, como observei, o capítulo final sugere importantes desafios para a pesquisa histórica e, também por este motivo, merece ser lido.

Uma última palavra sobre a importância das fontes referidas ao objeto histórico que o autor se propôs a discutir. Sua pesquisa reuniu um conjunto numeroso de fontes primárias e secundárias, indicadas no livro, que ainda podem e devem ser investigadas por pesquisadores que tenham interesse no tema. Isso pode ser mais claramente visualizado no que diz respeito à hipótese, apresentada por ele, sobre a mudança da sensibilidade diante do lixo, do desperdício e da prática do reaproveitamento. Nesse sentido, considerando que suas reflexões se basearam nos Estados Unidos, deveríamos manter aberta a indagação acerca dos percursos históricos da relação com o lixo – e com a produção do lixo – construídos em diferentes lugares. Lançar tal abordagem sobre países da América Latina seguramente ampliaria nossa compreensão acerca de valores e práticas sociais ligadas à relação homem-natureza, atualmente muito em voga. Nunca é demais lembrar que abaixo do equador a reciclagem é um evento histórico que envolve dezenas de milhares de pessoas que vivem do lixo.

Finalmente, a contribuição de Carl Zimring para esse tema tem sido enriquecida com a divulgação de reflexões iniciadas em Cash for your trash. É o caso de The Complex Environmental Legacy of the Automobile Shredder, de 2011, e The Encyclopedia of Consumption and Waste: The Social Science of Garbage, de 2012, onde Zimring aprofunda discussões sobre as tecnologias recentes de produção de lixo e o impacto no meio ambiente. Essa produção se beneficiou de sua trajetória intelectual, marcada por uma formação centrada na História, mas interdisciplinar. Sua atuação profissional na docência, por exemplo, diferentemente de nossa experiência que exige um envolvimento com o núcleo duro da História, caracterizou-se pelo ensino de conteúdos interdisciplinares ligados, sobretudo, ao tema História e Meio Ambiente. Enfim, os historiadores e demais pesquisadores interessados no tema certamente não se decepcionarão com tais leituras.

Referências

PERRY, Stewart E. Collecting Garbage: dirty work, clean jobs, proud people. New Brunswick (NJ): Transaction Publishers, 1998.         [ Links ]

STRASSER, Susan. Waste and Want. A Social History of Trash. New York: Metropolitan Books, 2000.         [ Links ]

Antonio de Pádua Bosi – Pós-doutorado em História Econômica (Universidade de São Paulo). Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected].

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