Crenças e Representações Religiosas na Cultura Contemporânea / Revista Mosaico / 2018

Há espaço para crenças religiosas no mundo contemporâneo? Pergunta evidentemente retórica, pois basta abrir os olhos e direcionar os ouvidos para ver e ouvir a multiplicidade de crenças religiosas, presentes em templos, procissões, rituais, programas radiofônicos e televisivos, cursos de graduação e pós-graduação etc., que estão à nossa volta e / ou fazem parte da nossa vida. Contudo, essa efervescência religiosa não era o esperado pelos grandes nomes das ciências sociais do século XIX. Para Marx, a religião iria simplesmente desaparecer na sociedade comunista, juntamente com todas as outras formas de alienação humana. Augusto Comte e, em menor escala Émile Durkheim, acreditavam que a religião iria se racionalizar, tornando-se explícito o fato de ser meramente uma construção humana. Max Weber nunca afirmou que a religião iria desaparecer, mas com a sua famosa análise sobre o desencantamento do mundo, depreende-se que a fé religiosa se refugiaria nos recônditos da vida privada.

A despeito dessas análises dos fundadores das ciências sociais, o contexto do início do século XXI demonstra claramente que as crenças religiosas não desapareceram nem se tornaram mais racionalizadas. Pelo contrário, o que se percebe é o vigor de práticas religiosas seculares que se perpetuam e desenvolvem às margens das religiões institucionalizadas. O poder, o dinheiro e a organização hierárquica das grandes religiões não conseguiram sufocar a espontaneidade das diversas formas de religiosidade. O leque é amplo, e as práticas e os conteúdos englobam matizes populares e alternativas, bem como conservadoras e tradicionais ‘modernizadas’.

Em um mundo marcado por tecnologias inovadoras, por um domínio avassalador da economia de mercado e por uma sociedade altamente urbanizada e individualizada, os indivíduos podem encontrar espaços de relativa autonomia para cultuar seus santos devocionais, participar de rituais antigos, organizar procissões e manter suas crenças ancestrais. A racionalidade científica não se mostrou incompatível com a fé religiosa, pois conhecer os fundamentos básicos da física, da biologia, da astronomia e das ciências humanas não resulta, necessariamente, na ampliação do ateísmo. Ainda há espaço para a crença no milagre, para os rituais simbólicos de preces coletivas, para as práticas ancestrais. Contudo, nesse ‘caldo’ há também espaço para o mercado da fé, da remodelação hierárquico-institucional de rituais, de ‘domesticação’ do que poderia se tornar expressão autônoma de fé e religiosidade.

O Brasil, nesse contexto, constitui um grande laboratório para o estudo da religiosidade, especificamente popular. Apesar de ser um país de referência do vigor das religiões institucionalizadas, como o catolicismo, o protestantismo e o espiritismo kadercista, pululam várias manifestações religiosas populares. Religiosidade popular é aquela que não é plenamente institucionalizada, que se localiza nas margens, que se mantém pela tradição oral, que não obedece plenamente a hierarquia sacerdotal. Portanto, há numerosos exemplos de festas, rituais, movimentos devocionais e espiritualidades que emergiram dentro, nas fronteiras ou nas margens da liturgia oficial dos cultos religiosos institucionalmente dominantes. Assim, tanto o catolicismo romano, como o protestantismo histórico, no contato com as crenças e práticas religiosas de origem africanas ou ameríndias, sofreram alterações ou adaptações litúrgicas acarretadas pela especificidade do meio cultural brasileiro.

Marx, Weber, Comte e Durkheim, apesar da indiscutível genialidade analítica, como sempre subestimaram o vigor das práticas e das representações populares. O mundo contemporâneo não se tornou inteiramente secular e racionalizado. Assim, pode-se construir e observar espaços para a multiplicidade, para o colorido, para a sonoridade, para as ambiguidades das crenças populares. A existência desse dossiê é uma tentativa de mapear essa complexa existência e efervescência de crenças e expressões religiosas no Brasil, em fragmentos de sua diversidade.

Vários foram os textos submetidos à Revista Mosaico, respondendo à Chamada deste Dossiê Temático. Autoras e autores de diversos lugares e experiências compartilharam parte de seus resultados de pesquisa. Pareceristas foram convidados(as) a participar deste trabalho, fizeram suas avaliações, comentários e sugestões. Nossa gratidão a cada qual por tudo isto!

Os artigos, aqui apresentados, dão uma resposta à pergunta colocada no início. Haverão outras, mas que não chegaram a nós. Aqui, trata-se de perspectivas de experiências e expressões do catolicismo popular e de algumas oriundas do mundo evangélico e neoesotérico. Acolhemos uma contribuição que trata de representações de gênero na cultura musical, que, afinal, também reflete concepções religiosas, às vezes muito distantes daquilo que almejamos para um mundo mais justo em suas relações nas mais diversas esferas.

Josimar Faria Duarte, em Festa de Devoção a Santa Rita de Cássia, em Viçosa / MG, analisa memórias e identidades regionais por meio da religiosidade popular e eclesial, que reúne grande parte da população da cidade e suas autoridades civis e religiosas. A festa e seus rituais permitiram observar as relações sociais em termos de agregação e de memória coletiva, fazendo parte da construção de uma identidade cultural popular coletiva.

Saindo de Minas para Tocantins, antigo norte goiano, Weberson Ferreira Dias, Maria de Fátima Oliveira apresentam parte da historiografia regional das comemorações religiosas, em artigo intitulado Revisitando a Historiografia sobre Festas Religiosas na Região do antigo Norte de Goiás. Tratam especificamente da Romaria do Senhor do Bonfim, em Natividade (TO), que permeia cultura e cotidiano de moradores(as), dando sustentação social para superação de dificuldades cotidianas. Desta forma, experiência religiosa fornece subsídios para análise histórica das relações socioculturais.

Seguindo a viagem, com Márcio Douglas de Carvalho e Silva chegamos ao Piauí, em O Sagrado e o Profano na Dança de São Gonçalo: etnografia de um ritual de pagamento de promessa. O ambiente rural, no município de Campo Maior, apresenta-se por meio da dança e dos cânticos em forma de ritual, no qual se fez possível analisar elementos sagrados e profanos como parte deste ato religioso, bem como compreender melhor as agruras sofridas pelos campesinos.

Voltando das cantigas e danças nordestinas, retornamos a Goiás, numa perspectiva histórica sobre A Congregação do Santíssimo Redentor em Goiás (1894-1925), de Andréia Márcia de Castro Galvão. Apresenta e analisa a vinda dos Redentoristas a Goiás, no final do século XIX, como estratégia para enfrentar mudanças legislativas e para controlar as práticas leigas que mesclavam expressões religiosas medievais e mágicas com elementos portugueses, africanos e indígenas. O fortalecimento do poder clerical e a sacralização dos locais de cultos católicos faziam parte do projeto ultramontano, que investia em missões e comunicação na propagação da sua fé, diminuindo o poder das irmandades leigas.

Desta dinâmica faz parte a representação simbólica de Deus-Pai, na Festa ao Divino Pai Eterno: representações do patriarcalismo em Panamá (GO), de Eloane Aparecida Rodrigues Carvalho. Preceitos católicos doutrinais entrelaçam-se com hábitos cotidianos de quem participa desta festa religiosa por meio de novenas, confissões, procissões, batismos e missas. Compreender indícios e resquícios do patriarcalismo presente nos elementos simbólicos e ritualísticos é o objetivo do artigo.

Entre catolicismo tradicional e popular, desponta a missão e a estratégia da Igreja Assembléia de Deus no contexto quilombola no norte de Goiás, em Minaçu, apresentadas por Lusinaide Cordeiro de Sales Lima Marques, em seu artigo A atuação da Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Minaçu, no Quilombo do Riachão. Tecendo elementos históricos da comunidade e das instituições religiosas, a adesão à ‘nova fé’ pentecostal foi vista em perspectiva identitária como processo de tradução cultural. Destaca-se expressões e percepções de pertencimento da comunidade a essa outra experiência de fé.

Adentrando a capital brasileira, no centro de Goiás, nova dinâmica de crença e religiosidade é tematizada por Pepita de Souza Afiune, em seu artigo Do Oriente ao Ocidente: a Sociedade Teosófica Brasileira e o Neoesoterismo em Brasília. Do contexto histórico do surgimento do Orientalismo e da Nova Era, ela adentra o século XX com o estudo da Sociedade Teosófica Brasileira e justifica sua sede em Brasília por causa das várias crenças de caráter utópico e mí(s)tico atribuídas à fundação da nova capital brasileira. Entrelaçando mudanças culturais e socioeconômicas e profecia do pé. Dom Bosco, apresenta novas religiosidades que ali se fixam por causa da crença de terem encontrado a terra prometida.

Encerramos esta viagem, fechamos o dossiê com artigo que, mesmo não tratando diretamente de Crenças e Representações Religiosas, apresenta algo do que está no âmago de muitas práticas aqui apresentadas: culturas patriarcais que, mesmo sendo reelaboradas, não conseguiram superar relações assimétricas de poder. As autoras Alexandra Ferreira Martins Ribeiro, Rebeca Oliveira Araújo e Beatriz Polidori Zechlinski tratam de ROSA: as representações de gênero na composição de Pixinguina. Composta na década de 1920, a letra da música contém representações de gênero que referem práticas culturais em relação ao amor, ao casamento e à ordem social e apresentam Rosa como a mulher ideal em pureza, calma, maternidade, beleza e rainha do lar, boa dona de casa. Também isso é bastante característico das expressões religiosas apresentadas neste dossiê.

Religião como sistema de crenças e valores e religiosidades como expressão do mesmo são contextualmente experimentadas e vivenciadas. As percepções de que as novas manifestações de religiosidades desafiam e questionam antigas e fixas instituições religiosas precisam ser aprofundadas com uma crítica que ultrapassa fronteiras temporais e que, dizendo respeito a culturas, também se ocupa com culturas religiosas. Estas estão em todos os lugares e espaços de conhecimento, e podem ser transformadas, pois não são estáticas ou naturais. Haverá de se ir além da crítica aos clássicos cientistas sociais. Haverá de se transpor as justificativas legitimadoras e muitas vezes ingênuas para o surgimento de novas religiosidades e suas práticas. Haverá de se buscar perceber se e em que proporções estas mesmas contribuem para superação de injustiças, violências, conservadorismos e desrespeitos em busca de construirmos um mundo heterotópico, onde diferenças não são desqualificadas e assimetrias são transformadas em justas porções de uma caminhada de construção de culturas de paz que brota da justiça.

Neste sentido, de partilha e desafio, de inconformismo e alento, de perplexidades e completudes, desejamos a você, que agora se ocupa conosco, uma leitura proveitosa, de reflexão e prospecção!

Ivoni Richter Reimer – Pós- doutora em Ciências Humanas (UFSC). Doutora em Filosofia / Teologia (Universität Kassel). Docente na PUC Goiás. E-mail: [email protected]

Eliézer Cardoso De Oliveira – Pós-doutor pelo Programa de Ciências da Religião da PUC Goiás. Doutor em Sociologia (UnB). Professor no curso de História e no Mestrado em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado da UEG em Anápolis (GO). Bolsista do Programa de Incentivo a Pesquisa da UEG. E-mail: [email protected]


REIMER, Ivoni Richter; OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.11, n.1, jan. / jun., 2018. Acessar publicação original [DR]

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