Cultura maritíma / Antíteses / 2014

Quando propusemos o tema Cultura Marítima compreendida como a articulação dos conceitos de História, Cultura e Mar não imaginávamos que a temática apresentasse tão grande inserção no mundo acadêmico como a profusão de artigos recebidos demonstrou. Isto, por um lado, foi fator de enorme satisfação para os organizadores do dossiê como para a editoria da Antíteses, mas, por outro, representou também um enorme trabalho de seleção dos textos que comporiam o dossiê.

Assim, o leitor se depara neste número com uma amostra do que vem sendo feito na academia brasileira acerca dos temas relativos às relações culturais, econômicas e políticas que os homens e mulheres constroem em relação ao mar, que se configuram, conforme as circunstâncias, como elementos de afastamentos, distanciamentos, proximidades, espaçamentos e estriamentos. A compreensão destas diferentes significações e ressignificações é necessariamente histórica, mas não prescinde de conceitos de outros campos, como o das Relações Internacionais, da Ciência Política, da Ciência Militar, da Literatura, da Filosofia, dentre outros que são trazidos à esta mesa de profícua discussão que se tornou este número da Antíteses.

Abrindo nossos trabalhos Silvia Capanema, da Universidade de Paris 13-Nord, revisita a Revolta da Chibata, buscando compreender as apropriações dos símbolos republicanos, feitas pelos Marinheiros Nacionais. Um destes momentos de apropriação e de ressignificação teria ocorrido quando da visita do presidente eleito do Brasil, Hermes da Fonseca, a Portugal em outubro de 1910. Esta viagem realizada pelo Dreadnought São Paulo propiciou aos marinheiros brasileiros presenciar a proclamação da República naquele país, movimento que contou com a expressiva participação dos quadros da Marinha Portuguesa, desde oficiais a marujos. Além desta experiência, Silvia Capanema ainda destaca a vivência de um grupo de marinheiros na Inglaterra durante a construção da nova esquadra brasileira e a percepção dos movimentos trabalhistas. A partir daí, a autora procura demonstra como se deu a apropriação da ideia republicana e da de cidadania por um grupo popular e majoritariamente composto por negros, pardos e mestiços, pouco depois da abolição da escravidão no Brasil.

Francisco Eduardo Alves de Almeida, da Escola de Guerra Naval, em interessante texto aborda a trajetória de Cecil Scott Forester como autor de livros de História, biografias e romances históricos, sempre voltados para seu tema preferido – a guerra no mar.

Todos sabem da importância do mar na vida do Reino Unido. C.S. Forester faz parte de uma tradição que constitui o romance histórico naval, gênero literário de grande sucesso que ensejou versões cinematográficas e televisivas. É o caso da série de vinte um livros de Patrick O´Brian, nos quais o autor criou o comandante Jack Aubrey que foi, em 2003, representado no cinema por Russell Crowe em O Mestre dos Mares. Cecil Forester antecede O’Brian, e também tem várias de suas obras vertidas para o cinema como o Afundem o Bismarck de 1954 e o Captain Horatio Hornblower de 1951, que teve o título no Brasil de O Falcão dos Mares.

Forester criou Horatio Hornblower na década de 1930, como modelo do oficial da marinha britânica, inspirado na figura de Horatio Nelson, herói que derrotou as forças hispano francesas na batalha de Trafalgar, em 1805, no contexto das guerras napoleônicas. Aliás, tanto Hornblower como Aubrey são representantes de um passado inglês que é idealizado frente às agruras das duas guerras mundiais, nas quais os antigos valores como o heroísmo, o cavalheirismo haviam desaparecido, assim como declinara a hegemonia britânica em termos globais.

Francisco Eduardo na primeira parte do texto percorre a trajetória de C.S. Forester e, na segunda, demonstra como este realizou a construção de Horátio Hornblower através da análise dos livros da série deste herói que transita entre a ficção e a realidade. Um excelente texto que nos permite compreender a cultura marítima inglesa.

José Miguel Arias Neto, professor das Universidades Estadual de Londrina e da do Centro Oeste do Paraná, especialista em História Naval brasileira, apresentou interessante pesquisa que levou o título de A Marinha do Brasil no início do século XX: tecnologia e política. Nele, o professor José Miguel analisou a literatura de caráter civilista que não só criticava as intervenções militares na política, mas igualmente propunha uma redefinição do papel das Forças Armadas, propugnando a necessidade de reformas nessas organizações, tanto no aspecto material como na formação e aperfeiçoamento de seus quadros. Para abordar essas questões, o autor inicialmente discutiu as conseqüências dessa literatura civilista na Marinha, baseando-se nos escritos de Eduardo Prado, de Afonso Celso de Assis Figueiredo e de outros personagens destacados do período como, por exemplo, Rui Barbosa. Como fontes de pesquisa, o autor também utilizou os Relatórios Ministeriais, além das necessárias edições da Revista Marítima Brasileira do final do século XIX e início do XX. Em seguida José Miguel passou a discutir as perspectivas de reformas no âmbito do Estado, em especial as propostas de programas de construção naval no início do século XX, que pretendiam modernizar a Esquadra. Em sua conclusão, o autor afirmou que a implantação do regime republicano provocou reformas para transformar a Marinha em uma organização mais profissional e moderna; no entanto, fatores exógenos e endógenos provocaram reformas legislativas que reforçaram as relações hierárquicas sociais na Marinha. A Revolta da Armada provocou uma cisão na Marinha que de certa maneira afetou os programas de construção naval. O programa Alexandrino pareceu para José Miguel o resultado da recriação de velhas idéias de estadistas do Império. Os canhões desses navios recém adquiridos se voltariam para as autoridades constituídas em 22 de novembro de 1910, no que ficou conhecido como Revolta da Chibata. Trata-se assim de importante texto para se compreender o que foi a Marinha no início do século XX.

Carlos André Lopes da Silva, historiador ligado à Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha, discutiu a formação, constituição e a organização da Biblioteca da Real Academia dos Guardas-Marinha em 1802. O propósito principal dessa biblioteca era prover saberes diversos relacionados com a atividade marítima aos alunos e docentes da Real Academia ainda em Portugal, dessa forma antes da transferência da família real desse país para o Brasil em 1807. Com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, essa biblioteca tornou-se a primeira do gênero a funcionar no Rio de Janeiro. Carlos Lopes discute em seu artigo o entrelaçamento entre os conteúdos científicos e as artes mecânicas sintetizadas no acervo bibliográfico da biblioteca, local fundamental para a formação dos futuros oficiais de marinha no período joanino. Este artigo torna-se fundamental para a discussão da alvorada da formação da Marinha Imperial Brasileira e de seu corpo de oficialato, que se refletiria certamente no desempenho profissional da força nas primeiras questões militares no recém criado Império.

Um dos temas de marcada influência na história da Marinha brasileira nos primeiros anos da República foi a Revolta da Armada. Com o título de Entre barcos e telegramas: a crise do asilo diplomático depois do fim da Revolta da Armada, o professor João Júlio Gomes dos Santos Júnior, que desenvolve pós-doutorado na Universidade Federal de Pelotas, investigou detalhadamente um dos aspectos poucos discutidos dessa revolta, que foi a troca de telegramas entre os governos brasileiro e português quando, após o término da revolta em 1894, mais de 500 combatentes brasileiros solicitaram asilo diplomático em duas corvetas da Armada de Portugal. Esse episódio desencadeou uma disputa jurídica entre Brasil e Portugal quanto à interpretação do direito de asilo político. Em meio a negociações, as duas corvetas suspenderam do Rio de Janeiro e rumaram para Buenos Aires, de onde os asilados seriam transferidos para uma embarcação fretada que os levariam a Portugal. Por questões políticas, esses revoltosos brasileiros foram impedidos de desembarcar, o que provocou ampla insatisfação com a superpopulação dos navios e o temor de uma epidemia a bordo. João Júlio discutiu em detalhes essa troca de correspondência entre os dois países, que culminou na interrupção das relações diplomáticas entre eles, só reatadas no ano seguinte com a mediação inglesa. Trata-se assim de um texto fundamental para se compreender os bastidores da Revolta da Armada.

Elizabeth Espíndola Halpern, psicóloga e oficial da Marinha, e Ligia Maria Costa Leite, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresentam o interessante  texto Marinha do Brasil: uma trajetória de enfardamento, a partir de um exame das fundações dessa instituição, por meio de uma análise sócio-histórica, tomando como hipótese central que a Marinha e seu componente humano têm uma trajetória histórica e uma origem e base sociais. Tanto a organização como seus profissionais são efeitos da racionalidade científica moderna, de acordo com as autoras. Para isso, as duas pesquisadoras discutem a invenção do Estado Moderno, do exército nacional e do soldado cidadão, passando em seguida a abordar o seu objeto de análise, a Marinha do Brasil, sua construção e o papel do recrutamento nessa organização. Em item subseqüente as autoras se debruçam sobre o que chamaram de “invenção do profissional militar naval” e a trajetória de enfardamento, concluindo que “os valores e preceitos militares concebidos como sínteses assumem um caráter dogmático, justificando-se por si mesmos, sem serem problematizados. De fato, eles são efeitos de uma construção cujas regras e objetivos precisam ser conhecidos”. Trata-se assim de uma interessante abordagem sobre o papel da Marinha na sociedade.

Instigante é o texto de Renato Amado Peixoto, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, analisando as origens, as transformações e a função do curso de História da Cartografia, de Jaime Cortesão, no Ministério das Relações Exteriores e no Instituto Rio Branco, descortinando o surgimento da Geopolítica brasileira: o trabalho nestas instituições terminou por “produzir e disseminar um saber acerca do espaço, cuja linguagem e seus usos foram enfeixados numa disciplina, a Geopolítica Brasileira, que ascenderia em importância por conta das tensões que acompanharam a separação dos cursos de Geografia e de História na década de 1940”.

Neste processo construtivo ou de fabricação, como quer o autor, uma série de ressignificações e novas identificações foram sendo cunhadas de modo a produzir um “sentido de continuidade” na história e na política do Brasil com a finalidade de dirigir a ação do Estadista e do Diplomata: a formação territorial, o pan-americanismo, a imagem de Alexandre de Gusmão e do Barão do Rio Branco, a criação do Instituto. “Jaime Cortesão, elabora a imagem da ‘Ossatura do Gigante’ para dizer da Formação Territorial do Brasil; do ‘Protótipo’ para ressaltar a figura do Barão do Rio Branco; da ‘Flecha’ para dizer de seu próprio esforço e de como os diplomatas poderiam dele se valer para acertar no ‘Alvo’”.

Já Alexandre Fiúza, da Universidade do Oeste do Paraná, no texto Uma ponte sobre o Atlântico: os exilados e as relações entre as polícias políticas brasileira e portuguesa (1950-1970) analisa brilhantemente as relações entre os órgãos de repressão portugueses a partir de extensa e significativa documentação da PIDE / DGS – Polícia Internacional de Defesa do Estado / Direcção-Geral de Segurança de Portugal e do DOPS – Delegacia de Ordem Política e Social dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Paraíba no Brasil. O autor demonstra que antes mesmo do golpe civil militar de 1964, os órgãos de segurança dos dois países mantinham estreita colaboração e que esta se aprofundou a partir da instalação do regime militar no Brasil. A partir daí, até a Revolução dos Cravos, constituiu-se uma vasta rede de comunicações que produziu informações que serviram “de parâmetro para ações práticas, como prisões, proibições e abertura de processos, no enquadramento dos setores observados, e, provavelmente, numa própria autojustificativa para a existência destes serviços e seus respectivos cargos públicos, com as comissões e extras recebidos pelos agentes quando da sua atividade rotineira ou nas `diligências` ”. Esta indústria da comunicação “construiu também uma ponte para a circulação de informações entre os dois países, bem como produziu e reforçou o convencimento dos ideais destes regimes autoritários nas próprias fileiras da repressão, seja do lado de cá ou de lá do Atlântico”.

O professor Marcos Valle Machado da Silva, da Escola de Guerra Naval, apresentou interessante artigo sobre um assunto pouco discutido na literatura naval que é a questão do Oceano Ártico como uma nova fronteira marítima. Em seu artigo O Oceano Ártico: oportunidades de nova fronteira marítima, o professor Marcos Valle argumenta que as mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global não terão apenas efeitos negativos. No caso do comércio marítimo, o aumento de temperatura global poderá apresentar algumas oportunidades, principalmente a abertura de rotas marítimas ligando o Pacífico e o Atlântico pelo Oceano Ártico. Marcos Valle apresenta as projeções de acessibilidade à navegação no Oceano Ártico e as potenciais rotas marítimas que se apresentam para o comércio marítimo, para em seguida discutir como os Estados com territórios no Ártico estão articulando instituições para incrementar o comércio marítimo nessa região e, por fim, porque a China tem conseguido implementar estratégias bem sucedidas em defesa de seus interesses nesse oceano, embora seja um Estado exógeno ao Ártico. Trata-se assim de um texto importante para se compreender o potencial comercial do Oceano Ártico no século XXI em um típico exemplo de história do tempo presente.

Em um interessante texto, o professor Gabriel Passetti da Universidade Federal Fluminense, em O Estreito de Magalhães redescoberto: ciência política e comércio nas expedições de exploração nas décadas de 1820 e 1830, a partir da leitura crítica de relatos de dois comandantes exploradores britânicos, Phillip Parker King e Robert FitzRoy, discute os motivos que levaram as principais potências a se interessar pela região do Estreito de Magalhães, conciliando interesses científicos, estratégicos e comerciais, estabelecendo também relações com os indígenas locais. Esses dois exploradores realizaram serviços de exploração e mapeamento nesse estreito, porém não foram os únicos. Mais de uma dezena de embarcações não militares de diversas bandeiras cruzaram a região, sendo aquela rota de navegação intensa, o que trouxe o interesse de muitas potências ocidentais. Gabriel analisou os relatos desses dois exploradores ingleses e concluiu que a relação entre ocidentais e indígenas no sul da Patagônia e na Terra do Fogo, nas primeiras décadas do século XIX, foi marcada pelo comércio, mas não pela amizade. O Estreito de Magalhães e a Terra do Fogo eram estratégicos para o Reino Unido e esses dois exploradores procuraram identificar potencialidades econômicas e oportunidades estratégicas, tendo sempre a certeza de sua superioridade e razão. Trata-se assim de um texto importante para se desvendar o modo de pensar britânico naquele início de século XIX.

Marília Arantes Silva Moreira, mestranda na área de Relações Internacionais na Universidade de São Paulo, analisa a narrativa de viagem La Plata, The Argentine Confederation and Paraguay (1853 – 1860), feita pelo comandante Thomas Jefferson Page da US Navy no Water Witch. Esta viagem visava forçar a livre navegação da bacia do Prata, mapear a região e descobrir a suposta conexão entre o Prata e o Amazonas, idéia, como todos sabem, proveniente das representações sobre a Ilha Brasil do imaginário cartográfico desde pelo menos o século XVI. Em parte os objetivos foram alcançados, pela imposição ao Paraguai de acordo liberando a navegação dos rios, o mapeamento da região, mas a tão desejada ligação entre as bacias meridional e setentrional não foi encontrada. Ao longo deste processo, o Water Witch foi alvejado por forças paraguaias o que ensejou a retaliação e a imposição dos acordos de navegação com o Paraguai. A narrativa, construída a posteriori, visa legitimar as ações do comandante Jefferson apoiando-se no discurso imperial dos EUA, que por esta época fundava-se já na idéia de “Destino Manifesto”. Desta suposta superioridade dos EUA provêm as representações negativas sobre o primeiro Lopez, devido à sua política protecionista, e uma visão positivada sobre Urquiza, para o militar estadunidense, mais liberal, portanto, mais civilizado. Tanto uma representação quanto a outra são mediadas pelo desejo do avanço dos EUA na América do Sul. Importante notar que a viagem se inicia exatamente no mesmo ano de 1853, quando os EUA iniciam um contencioso com o Brasil acerca da navegação do Amazonas, tema já explorado pela historiografia.

Finalmente, Fernando Ribas De Martini, mestrando em História Social, também da Universidade de São Paulo, desenvolve um tema – Toneladas de Diplomacia num mar sem fronteiras: discussões sobre os poderes navais de Argentina, Brasil e Chile, no início do século XX -, que tangencia e dialoga com os textos de Silvia Capanema e José Miguel Arias Neto. Trata-se da corrida armamentista que se estabeleceu na América do Sul, no contexto do desenvolvimento dos Impérios em final do século XIX e que resultou em uma disputa pela hegemonía militar, o que no período implicava em possuir o maior Exército e a maior Marinha. Não é ao acaso que os grandes empreendimentos capitalistas do período eram as indústrias química e metalúrgica. Mas Fernando De Martini aborda a corrida armamentista, no caso naval, dentro de uma perspectiva interesantísima, que é a busca de articular as relações internacionais no grupo ABC – Argentina, Brasil e Chile no contexto do Pan-Americanismo e da influencia dos EUA; o estado do desenvolvimento tecnológico que, rápidamente impõe oscilações aos frágeis compromisos políticos e diplomáticos conquistados, e, finalmente, ao fato de que boa parte da intelectualidade latino americana discutía os programas de reaparelhamento naval dos três países a partir de uma perspectiva anti-americana.

Esperamos que o leitor aprecie os textos que compõem este dossiê, cuja organização foi muito prazerosa.

Francisco Eduardo Alves de Almeida – Escola de Guerra Naval

José Miguel Arias Neto – UEL / UNICENTRO

Rio de Janeiro / Londrina, inverno de 2014.

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