Viagem ao cinema silencioso do Brasil.

PAIVA, Samuel; SCHVARZMAN, Sheila (Org.) Viagem ao cinema silencioso do Brasil. Rio de Janeiro: Editorial Azougue, 2011. 310p. Resenha de: SCHIAVINATTO, Iara Lis Franco. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.32, no.64, DEZ. 2012.

É bem-vinda esta obra escrita por pesquisadores do cinema que, desde 2002, se reúnem amiúde para ver filmes silenciosos na Cinemateca Brasileira. De partida, há uma lição de método: a escrita nasce da experiência de vê-los e da necessidade de melhor compreendê-los, considerando os sentidos da imagem e suas relações com o real. Desta maneira, reordena-se sua memória, atualizando-a. O livro inicia-se com um estudo sobre o estado atual da prospecção, restauração e preservação desses filmes no Brasil, dos catálogos à crítica, passando pela materialidade e pelo acesso. O acervo é concebido como uma coleção catalogada e mutável, pois pode se expandir e redimensionar. No âmbito da memória, a documentarista Guiomar Ramos retomou com d. Guiomar Rocha Álvares suas impressões ao assistir Voyage de nos souverains au Brésil (1920), isso porque d. Guiomar testemunhou, quando jovem, essa real visita. O filme dispara a memória, vindo à baila a cultura política da época. Já Mauro Alice descreveu seu interesse em usar o mesmo filme e Lembranças de velhos1 na elaboração de um roteiro cinematográfico. O livro apresenta um mapeamento comentado das Atualidades Gaúchas, o importante catálogo dos filmes disponíveis nesta Cinemateca, e o notável Relatório, escrito pelo major Reis sobre sua viagem a Nova York, extraído do acervo da Embrafilme – hoje, na Cinemateca. Major Reis explicitou as negociações e estratégias para exibir nos Estados Unidos Os sertões, produzido nas expedições do coronel Rondon. Dizia haver lá “quase uma prevenção” contra filmes estrangeiros. “Reduzidos aos assuntos não teatrais”, entravam como educational films. Exibiu seu filme, pioneiramente etnográfico, num circuito culto e científico, intermediado pelo coronel Theodore Roosevelt. No texto, transparecem tensões do mundo vincado pelo colonialismo. Pesa na memória o repúdio da Cinearte aos naturaes e cavadoresCinearte condenou a presença de negros, índios, caboclos, traços de Congo nos filmes, numa “postura racista”, e buscou a imagem do Brasil moderno, depois vislumbrada na Cinédia. Ato contínuo, desmereceu uma gama de profissionais e procedimentos. A rememoração e a visibilidade desses filmes são temas correlatos e fortes no livro; seja ao recuperar sua constituição histórica entre 1896 e 1934, no momento da consolidação do cinema como meio de comunicação de massa e entretenimento, seja ao nuançar as perspectivas dos sujeitos sociais aí enredados.

O livro enfrenta algumas questões fundamentais do assunto, com discrepâncias e discordâncias. Dialoga com os críticos Paulo Emilio Salles Gomes, Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet, e com a noção de primeiro cinema no viés de Tom Gunning e Charles Musser. Seria um cinema fascinado pela sua própria atração e capacidade expositiva, embebido na representação do cotidiano e encantado por ela. Releva-se, nele, o processo de cosmopolitização das imagens e práticas expositivas. Contudo, não são réguas da sua inteligibilidade: a ausência de uma linguagem cinematográfica sistematizada e acabada, o progresso técnico ou o recorte nacional. Daí, o valor, para esses pesquisadores, em indicar a materialidade do filme e em situar os lugares, os circuitos, os momentos de exibição. Há diferença entre exibir No Paiz das Amazonas (1922) no Odeon ou no Palais e exibi-lo no espaço da Exposição Internacional de 1922, sempre no Rio de Janeiro. Porém, a maior parte dos filmes vistos no Brasil, principalmente a partir de 1912, era estrangeira. Da produção aqui realizada, preponderava o natural ao posado, para ficar no vocabulário dos profissionais de então. Em várias passagens, os autores distinguem naturalatualidadecavaçãotravelogue e posado nos termos e implicações da época, explorando especificidades e ambiguidades.

Alguns autores debatem o gênero fílmico. Em parte, exploram a recepção e elaboração de gêneros, incorporando modelos cinematográficos, sem cair na cópia. Alfredo Supia aborda a ficção científica e flagra a recepção da sua iconografia e do seu imaginário em filmes posados e naturais – estes últimos reforçariam a verossimilhança científica. Luciana Araújo questiona a virada da figura dramatúrgica do herói, do mocinho em galã, ao comparar o norte-americano Tol’able David (1921) e Tesouro perdido (1927) de Humberto Mauro, observando essa mudança em filmes feitos em São Paulo e Pernambuco. Em suas tramas, importaria menos a construção do herói e mais a reafirmação da figura do senhor – entendido, pela autora, na esteira de Joaquim Nabuco. As relações sociais ditadas pela dialética do senhor-escravo explicariam essa dissociação entre herói e galã. Sheila Schvarzman mapeia a produção de travelogue em Cornélio Pires na condição de imagens também negociadas, onde se evidenciam a continuidade de certos tipos sociais e a grandeza do paulista. No plano das representações sociais, Luciene Pizoqueiro trabalha a figura feminina em três filmes paulistas centrados na sociabilidade burguesa e familiar. Eles mostram o papel da elite na cidade de São Paulo ao designar hábitos e emoldurar gestos e formas, bem como suas estratégias para cristalizar sua identidade.

Os filmes, além disso, funcionam como um elemento constitutivo da geografia imaginária da nação. Eduardo Morettin trata da geração de riqueza e do lugar da natureza em No País das AmazonasTerra Encantada e No Rastro do Eldorado, de Silvino Santos, esmiuçando os significados da sua produção e exibição durante o ciclo comemorativo do centenário da Independência do Brasil, em 1922. Essa geografia imaginária ressurge em Ana Lobato e Paulo Menezes, ao exporem a montagem de uma cartografia que designa interior/litoral, campo/cidade, as fronteiras do país e, simultaneamente, insere o Brasil, como nação e simbolicamente, no contexto mundial. As irmãs Fabri desmontam os liames entre A Real Nave Itália no Rio Grande do Sul de Benjamin Camozato e a exposição itinerante levada pelo navio Regia Nave Italia por vários portos brasileiros, propagando uma iconografia fascista, o imaginário político do fascismo, o discurso eugenista e o entusiasmo da imprensa brasileira. O filme, hoje aos pedaços, dirigia-se preferencialmente ao público italiano. Alguns artigos, pontualmente, nomeiam os sentimentos de pertencimento e seus mecanismos, a exemplo do sentimento patriótico em Fabris ou o respeito cerimonioso de Cornélio Pires pela grande propriedade.

Em escalas distintas, alguns artigos problematizam as relações entre filmes vistos, de imagens precárias, e o real. Apontam a força da performance nessa filmografia, como no caso do major Reis a tomar posse, através da imagem, da fronteira, capturando-a com suas gentes para o Estado nacional. O assunto é menos a “autenticidade da imagem”, argumenta Flavia Cesarino Costa, mas o “relato acontecendo visualmente” na frente da câmera. Nessa condição, situações involuntárias, até mesmo indesejadas, vazavam. As imagens expunham o tal “atraso brasileiro” combatido pela Cinearte, que propunha a criação da filmografia de fato moderna. Por sua vez, as mediações com o real implicavam o diálogo com imagens oitocentistas, fotografias brasileiras ou não, denotando a frequência ao mundo das imagens que precede a emergência do cinema. Esse repertório imagético oitocentista, no geral, imbricou-se à viagem, na medida em que dela resulta e representa sítios visitados, inscrevendo-se muitas vezes na lógica colonial de reconhecimento do mundo e sua posse, ajudando a estabelecer o tráfego contínuo, rápido, simultâneo, em massa das imagens em ordem planetária. O fotográfico concorreu para o estabelecimento de uma percepção do lá e do aqui, do local e do global, da imagem que documenta e do objeto. Foi em si mesmo um mediador. Aí, a noção de viagem adquire, ao longo da leitura, sentidos entrecruzados: a captura da imagem na viagem, o gênero travelogue, o tema da viagem nos filmes, o alto trânsito das imagens a tecer entre si relações variadas em sua exibição. Alude às condições da e à própria experiência de ver os filmes naquelas circunstâncias e hoje. A viagem, ademais, revela a atitude por parte dos pesquisadores ao embarcar nessa experiência estética, acadêmica e cinematográfica.

Com base nesse livro, é possível refletir sobre o lugar que o corpo ocupa nessas relações entre imagem e real a considerar as conclusões de Luciana Araújo, sobre a centralidade do corpo nos filmes de major Reis e naqueles comentados por Pizoqueiro. Ou sobre a potência do ritual do poder, dizia Paulo Emílio, para gerar imagens capazes de representá-lo em celebrações de grandeza variada, do funeral de Rio Branco ao Centenário da Independência. No todo, o leitor é surpreendido pelo matiz político conservador desses filmes no temário, no tratamento das imagens, na narrativização, na recepção, nas negociações entabuladas, porque, no limite e no pinga-pinga, representavam do cotidiano a desigualdade social e espraiavam, no senso comum, uma percepção modulada pela noção de raça – expediente a justificar tal desigualdade. Ficam em mim perguntas: filmes como São Paulo: sinfonia da metrópole (1929) soaram mais arrojados do que pareciam até agora? Não caberia precisar mais os liames entre a geração de cavadores e da Cinearte? Há mais pistas no inteligente Baile perfumado (1997) para compreender essa produção tanto na fatura da imagem, no instante em que é feita, quanto sua transformação em moeda de poder e na sua rememoração?

Nota

1 Trata-se de BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Iara Lis Franco Schiavinatto – Instituto de Artes, Departamento de Multimeios, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Rua Elis Regina, 50. Cidade Universitária Zeferino Vaz. 13083-970 Campinas – SP – Brasil. [email protected].