Eurípedes Simões de Paula / Revista de História / 2009

Em 1977, falecia abruptamente o professor Eurípedes Simões de Paula. Em 2007, o Departamento de História da Universidade de São Paulo decidiu homenageá-lo na Revista de História, da qual ele foi fundador e editor até a data de sua morte. O artigo de Janice Theodoro traça o seu perfil biográfico e intelectual, centrado no projeto político-institucional que ele desenvolveu para a então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, o qual articulava aspectos educacionais, científicos, arquivísticos e editoriais. Estes aspectos são igualmente relembrados no artigo de uma de suas principais colaboradoras, Elisabeth Conceta Mirra, historiógrafa do Centro de Apoio à Pesquisa Histórica (CAPH), igualmente idealizado por Eurípedes Simões de Paula. Ambos os textos ressaltam a organicidade da sua ideia de universidade, que ele procurou implementar durante a sua profícua atividade administrativa, por meio da criação da Revista de História, da abertura de diversos cursos de línguas e de centros de pesquisa e documentação: a Sociedade de Estudos Históricos, o Instituto de Estudos Portugueses, a Associação Nacional dos Professores Universitários de História, o Centro de Documentação Histórica – futuramente, CAPH –, entre outros. Seu projeto previa igualmente estruturas que dessem sustentação à divulgação científica, entre as quais se incluem a editora da Universidade de São Paulo (Edusp), a gráfica da Faculdade de Filosofia, bem como a promoção de inúmeros encontros, simpósios e congressos, cujos resumos eram acolhidos nas páginas da revista que fundou. Dentre todos os aspectos desse projeto – que podem ser apreciados nos textos do próprio Eurípedes Simões de Paula publicados em anexo ao artigo de Janice Theodoro – uma questão lhe parecia central: a educação e o ensino, para a qual todas as iniciativas aqui mencionadas convergiam.

A homenagem a Eurípedes Simões de Paula, após 30 anos de sua morte, é tão mais oportuna que o corrosivo trabalho da memória vai fragmentando ou apagando aos poucos diversas facetas desse projeto outrora orgânico, cuja articulação fazia das partes que compunham a antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) um corpo vivo e atuante na sociedade brasileira. Aquele projeto foi desestruturado durante o governo militar, de modo que a atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) já não guarda muito mais do que uma articulação interna de tipo administrativo. A despeito dessa involução, a FFLCH continua sendo percebida como um corpo orgânico por diversos segmentos sociais, na medida em que os diferentes centros de excelência que ela abriga produzem ainda um pensamento crítico de tipo radical (no sentido especificado por Antonio Cândido e Carlos Guilherme Mota) vital para a sociedade.

Por uma infeliz coincidência, entretanto, 2007 foi também o ano-base da última avaliação trienal do sistema Qualis de periódicos, promovida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), na qual a Revista de História caiu do primeiro estrato da classificação, que sempre ocupara, para o quarto.

A divulgação dessa classificação, tão significativa para a vida editorial das revistas acadêmicas, não foi precedida pela publicação dos critérios que a balizaram. E, tendo em vista o peso institucional aí implicado, estranhamos igualmente que sequer tenha sido enviada correspondência prévia aos editores das revistas avalizadas. Aliás, isso é compreensível, até certo ponto, pois os critérios que nortearam a avaliação dos periódicos publicados em 2007 só foram definidos mais tarde, entre abril e outubro de 2008. Mesmo assim, eles ainda não haviam sido publicados oficialmente pela Capes até o fechamento deste editorial (início de julho de 2009), seja por meio de seu site institucional ou de qualquer outra forma de correspondência. É desnecessário dizer que não houve tampouco qualquer discussão desses critérios com os pesquisadores da área.

Por outro lado, a lista divulgada pela Capes apresenta inconsistências que consideramos graves no que diz respeito a elementos consensuais, próprios à caracterização do que se entende por periódicos científicos, particularmente na área de Ciências Humanas: foram incluídas revistas que não atendem ao critério mínimo de periodicidade (p. ex. Revista da Cátedra Jaime Cortesão), periódicos com pouca ou absolutamente nenhuma expressão na área específica de História (p. ex. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte), como também outras publicações que foram, infelizmente, interrompidas há alguns anos (p. ex. Revista Internacional de Estudos Africanos). Causou-nos surpresa, também, a baixa avaliação atribuída a periódicos internacionais altamente reputados no campo específico (p. ex. Slavery & Abolition). Tudo isso denota que ou os critérios não foram aplicados, ou foram-no de maneira discricionária.

Por fim, observamos que os critérios que nortearam tal avaliação mimetizam outros, igualmente polêmicos, que ainda tentam se impor em outros países, a despeito das fortes críticas que têm recebido em toda parte (cf. matérias publicadas na revista Pesquisa Fapesp de maio e junho de 2009). De fato, tais critérios são pouco pertinentes aos temas e conteúdos veiculados pelas revistas de ciências humanas: o que define um periódico de qualidade são apenas porcentagens. Por exemplo: uma revista de excelência deve publicar 75% de artigos de autores provenientes de cinco instituições diferentes da que publica o periódico e 15% de estrangeiros… os restantes 10% não sendo especificados. São parâmetros que conduzirão inevitavelmente a uma padronização das revistas, e a partir de critérios extrínsecos à competência dos autores e aos temas em debate. De resto, quando tomamos em consideração tais porcentagens, vemo-nos conduzidos à bizarra situação de ponderar se devemos recusar artigos relevantes porque extrapolam aquelas cotas. Se seguíssemos aqueles critérios, a revista passaria a ser moldada antes pela forma determinada pelas cotas do que pela relevância de tal ou qual artigo. Quanto ao critério “qualidade”, ele só surge no estrato superior e em termos extremamente vagos e imprecisos: “periódicos de destacada qualidade, devidamente demonstrada em relatórios pelos avaliadores”. Quais critérios definiriam a qualidade, para estes avaliadores, não é possível saber. Mas, mesmo para os estratos inferiores, imaginamos mal uma comissão avaliadora aferindo a qualidade dos periódicos com uma máquina calculadora à mão! E mesmo a calculadora pode ser inútil, na medida em que o sistema de avaliação trabalha com as chamadas “travas estatísticas” (cf. Jornal da Ciência n. 646). Essas “travas estatísticas” estabelecem cotas para os estratos superiores da lista de avaliação, o que faz com que ela tenda a assumir a forma de uma “curva de Gauss”. O procedimento é típico de empresas capitalistas e visa incentivar a competitividade interna, numa lógica avessa à nossa, pautada antes na colaboração e diálogo acadêmicos (por exemplo, através do trabalho fundamental realizado pelos pareceristas). As “travas estatísticas” introduzem, ademais, uma deformação da realidade: como os estratos superiores só podem conter um determinado número de periódicos, os demais, mesmo que sejam de igual qualidade, serão classificados em estratos inferiores. Dito de outra maneira: se a lei e a realidade não coincidem, a realidade deve ser modificada para se acomodar à lei!

Por outro lado, há que se considerar também o gigantismo da tarefa, o que torna praticamente inviável. Como fazer todas aquelas contas para as 898 revistas de história listadas na última avaliação? Que dizer quanto a aferir a qualidade do conteúdo dos artigos?

De resto, parece-nos que as revistas de história não podem ser todas avaliadas com os mesmos critérios, pois cumprem funções sociais diferentes, conforme tenham uma vocação generalista ou voltada para temáticas específicas, conforme se dediquem a problemas regionais ou tenham um escopo mais amplo etc.

Compreendemos e apoiamos o esforço da Capes em promover o aperfeiçoamento dos periódicos científicos brasileiros mediante sua avaliação; por isso acreditamos na necessidade imperiosa de transparência e coerência dos procedimentos adotados.

A despeito de cotas e porcentagens, persistimos em nossa política editorial, que visa divulgar artigos de qualidade. Nesse sentido, além do “dossiê Eurípedes Simões de Paula”, reunimos para este número 160 da Revista de História dois artigos com percepções diversas sobre as relações entre história, política e religião. Um artigo do historiador Paolo Prodi, “Cristianismo, modernidade política e historiografia”, que propõe uma síntese da sua reflexão, iniciada há cerca de cinquenta anos, sobre o papel do cristianismo, e mais particularmente sobre o catolicismo póstridentino, na construção do mundo ocidental, e especificamente nas noções modernas de Estado e de justiça. A discussão gira em torno da tensão entre norma escrita e norma moral. Sua reflexão está apoiada num instigante balanço, ao mesmo tempo biográfico e historiográfico. As posições assumidas por Paolo Prodi podem ser confrontadas com a resenha crítica elaborada por outro historiador italiano, Adriano Prosperi, sobre o livro Uma história da justiça (traduzido para o português em 2005). Prosperi concentra sua crítica no conceito de revolução com o qual opera Paolo Prodi no referido livro e, logo, ao problema da ruptura e da continuidade.

Estas problemáticas surgem igualmente no artigo de Lígia Bellini e Moreno Laborda Pacheco, na tensão existente entre a prescrição normativa e as práticas efetivas, no caso analisadas através da “Experiência e ideais de vida religiosa em mosteiros portugueses clarianos, nos séculos XVI e XVI”: a efetividade do voto de obediência “não implicava forçosamente numa vivência religiosa desvinculada de determinações do universo de crenças e práticas no qual as monjas estavam inseridas”. A tentativa de controle normativo das práticas sociais é tema igualmente da investigação realizada por Richard Negreiros de Paula – no caso, o atrito entre medicina e direito –, que resgata a luta de uma mulher para se livrar da custódia psiquiátrica, em 1897. Aqui, a norma é veiculada por meio de uma difícil articulação entre os saberes psiquiátrico e jurisprudencial (analisada na disputa travada por Teixeira Brandão pela manutenção ou ampliação da jurisdição profissional dos médicos alienistas pelo domínio sobre a custódia dos insanos), de um lado, e, de outro, a resistência da referida mulher, Ernestina Ribeiro de Azevedo.

O artigo de Frank Lestringant também enfoca esta problemática, mas no terreno da metodologia e da memória histórica. A partir de uma provocação colocada desde o título do artigo – “É necessário expiar o Renascimento?” – o autor parte da “invenção” de um passado imperial francês nas últimas décadas do século XIX, passando em seguida pelas inflexões teóricas propostas pela antropologia do pós-guerra, para criticar os usos e apropriações que foram realizados de autores como Jean de Léry, André Thevet, François Rabelais e Michel de Montaigne (onde sobressaem anacronismos, ilusões retrospectivas e arbitrariedades). A provocação do título vem no sentido de dialogar com os recentes debates ocorridos na França (particularmente em torno do seu passado escravista), apontando os limites da consciência crítica europeia pós-colonial.

A história da historiografia é também a perspectiva adotada por Karina Anhezini, que faz a crítica dos procedimentos fabricados por Afonso d’Escragnolle Taunay, entre 1911 e 1939. Segundo a autora, Taunay soube combinar sua leitura da historiografia francesa com o desenvolvimento da produção historiográfica no Brasil, criando um método próprio que articulava monografias no intuito de recuperar o pitoresco, a vida comum, os costumes, dando-lhes sentido “como um ‘mosaísta’ que reúne as peças dispersas nos documentos”. Contemporâneo de Taunay, Euclides da Cunha é classificado por Danilo Zioni Ferretti dentro do grupo de historiadores da paulistanidade: em seu artigo, ele analisa a forma original como o autor de Os sertões ali representou o bandeirante. Sua conclusão é que “a grande originalidade da representação historiográfica de Euclides estava em apresentar o jagunço de Canudos como o verdadeiro herdeiro da grandeza bandeirante. Ao contrário do discurso vigente, os derrotados pelas tropas da República não eram os inimigos da nação, mas os próprios representantes do seu cerne mais profundo, identificado diretamente com o bandeirante. As tropas republicanas, atacando os jagunços, feriam a alma da nação.”

A despeito da força desses modelos interpretativos, ainda encontramos vigor em análises empíricas que justificam a necessidade do historiador voltar incessantemente à sua prática mais fundamental. Isso é evidenciado no artigo “Lojas e armazéns das casas de morada paulistas”, de Maria Lucília Viveiros Araújo, e no de Manoela Pedroza, “Transmissão de terras e direitos de propriedade desiguais nas freguesias de Irajá e Campo Grande (Rio de Janeiro, 1740-1856)”, este numa abordagem mais marcadamente sociológica: são dois textos que sistematizam uma série de informações que nos permitem justamente revisitar criticamente os grandes modelos explicativos, testá-los, sofisticá-los enfim. O primeiro artigo “suscita um diálogo com a historiografia que tratou do comércio oitocentista”; o último conclui-se com a seguinte frase: “mas como se poderia sustentar um sistema de transmissão tão complexo e diferenciado se a legislação previa formas de acesso e posse das terras bastante diferentes das soluções encontradas em nível local?” Reencontramos aqui questões identificadas nos primeiros artigos apresentados neste editorial, as quais fazem referência justamente à tensão entre normas e práticas sociais, mas também questões presentes nos demais artigos, atinentes à tensão entre memória histórica e historiografia.

Tensões estas vividas por Oswald de Andrade, cuja trajetória intelectual é analisada por Éder Silveira no artigo “Oswald ponta de lança. Antropofagia e imaginação política na década de 1940”. Da renúncia da vanguarda artística e literária modernista à sua aproximação com o Partido Comunista Brasileiro, e do abandono do PCB à retomada da antropofagia na década de 1940 (que culmina com a redação de sua tese sobre A crise da filosofia messiânica), Oswald de Andrade encarnou dramaticamente as referidas tensões, as quais se prolongaram ainda, posteriormente, nas apropriações que foram feitas de sua obra. São essas tensões que ganham um significado quase heurístico na análise de Éder Silveira (o que ecoa a problemática assinalada por Frank Lestringant).

Fechamos este número com uma resenha do importante livro de Loïc Wacquant, As duas faces do gueto (2008), por Vera Malaguti Batista, o qual não deixa de repercutir, mais uma vez, o problema da tensão entre normas e práticas sociais, presente em outros artigos publicados neste número da Revista de História. Aqui, trata-se de “repensar os efeitos do capitalismo, neste simulacro de democracia em que os jovens negros e os pobres em geral se encontram cada dia mais nas garras do sistema penal e dos grupos de extermínio”.

Os artigos que selecionamos para este número 160 da Revista de História giram em torno destas problemáticas e dão organicidade ao presente volume. Tal qualidade não chegará a ser percebida por sistemas de avaliação fincados em padrões percentuais e estatísticos que desviam a atenção do conteúdo dos artigos. Isso é privilégio de leitores que tomam o tempo de ler como quem contempla uma imagem, de meditar, de associar conteúdos mesmo inusitados e eventualmente testar a pertinência dessas associações a partir de procedimentos metodológicos, contribuindo assim para o debate que caracteriza a nossa comunidade – o que constitui a cerne da missão proposta por esta Revista de História, desde a sua fundação.

Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron (editor)

Maria Cristina Cortez Wissenbach (vice-editora)


ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro; WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Editorial. Revista de História, São Paulo, n. 160, 2009. Acessar publicação original [DR]

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