O método formal nos estudos literários – MENDVIÉDEV (B-RED)

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MEDVIÉDEV P N O método formal nos estudos literáriosDetalhe da capa de Bakhtin e o círculo, de Beth Brait.

MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológicaTradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. 269 p. Resenha de: FARACO, Carlos Alberto. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.7 n.2 São Paulo July/Dec. 2012.

Há muito tempo esperávamos a tradução para o português desse extraordinário livro de Pável N. Medviédev. Por que demorou tanto é difícil de explicar. Talvez o prestígio que o formalismo russo teve nos estudos literários brasileiros nas décadas de 1970 e 80 e a persistência de um certo substrato formalista nas décadas posteriores tenham inibido a vontade de traduzir uma obra crítica – radical e consistentemente crítica – do pensamento daqueles teóricos.

Mas, qualquer que tenham sido os motivos da demora, valeu a pena esperar porque o trabalho cuidadoso e criterioso das duas tradutoras nos legou um texto de altíssima qualidade. Tratou-se de uma feliz conjunção de competências: Ekaterina Vólkova Américo, falante nativa de russo, professora ministrante do curso de russo na Universidade de São Paulo (USP), é também tradutora e doutora em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo; Sheila Camargo Grillo é uma das mais destacadas estudiosas brasileiras das ideias do chamado Círculo de Bakhtin. Atua como professora na Universidade de São Paulo e foi pesquisadora no Instituto Górki da Literatura Mundial (Moscou).

Para sua tradução, partiram do original russo Formálnyi miétod v literaturoviédenii: kritítcheskoe vvediénie v sociologuítcheskuiu poétiku, publicado na então Leningrado, em 1928. Não se trata, portanto, de uma tradução indireta. Nesse sentido, as tradutoras dão uma contribuição muito valiosa ao mundo acadêmico brasileiro.

Informam também ao leitor que tiveram a preocupação de cotejar seu trabalho com as versões em inglês, espanhol, francês e italiano que – como diz Sheila C. Grillo no Prefácio – “permitiram, tanto em momentos de consonância como de dissonância, balizar nossas escolhas, tornando-as mais conscientes” (p.21). Algumas dessas escolhas estão comentadas numa Nota das Tradutoras (p.39-40), na qual também esclarecem os critérios de transliteração. Por fim, destaque-se que as tradutoras tiveram ainda o cuidado de rechear o livro com Notas (N.T.) em que dão informações sobre autores e obras citadas no texto, facilitando a vida do leitor.

O livro ora publicado pela Contexto vem enriquecido de uma Apresentação, escrita por Beth Brait; de um Prefácio, assinado por Sheila Camargo Grillo; de uma Nota Biográfica, redigida por Iuri P. Medviédev (filho do autor), acrescida de uma lista com a extensa produção bibliográfica de Pável N. Medviédev, com textos que vão de 1911 a 1937.

Beth Brait, em sua Apresentação, dá destaque à importância do livro seja em seu próprio tempo, seja para os leitores de hoje. É uma obra que responde a importantes pensadores da linguagem, “cujos traços fundamentais são recuperados e problematizados a partir de uma nova visão sobre o tema” (p.14). Dentre os muitos pontos abordados no livro, Beth Brait chama nossa atenção especialmente para a fina e sofisticada discussão teórica e metodológica que o autor desenvolve sobre os gêneros do discurso.

Em seu Prefácio, Sheila C. Grillo apresenta o livro e a tradução, e analisa o “espinhoso” problema da autoria do livro. Pessoalmente, considero esse problema altamente irrelevante. Reconheço a autoria pela assinatura. Assim, não tenho dúvidas de que Pável N. Medviédev é o autor deste livro. Isso tem sido heuristicamente muito produtivo porque facilita a percepção das muitas semelhanças, mas também das diferenças que há entre as várias obras dessa “coletividade de pensadores” (para usar a expressão de Iuri P. Medviédev na Nota Biográfica, p.249) que conviveram na década de 1920 e que, por vicissitudes da história de sua recepção posterior, foram agrupados sob o rótulo de “Círculo de Bakhtin”.

No entanto, como todos bem sabemos, há uma espécie de indústria acadêmica que vive de explorar o problema da autoria e, nesse afã, chega, muitas vezes, aos limites do escândalo e do nonsense. Sheila Grillo não podia, portanto, escapar de tratar do assunto. E o fez exemplarmente: buscou informações em múltiplas fontes e escreveu uma exposição desapaixonada, ou seja, ética e academicamente responsável.

Na Nota Biográfica, Iuri P. Medviédev traça um retrato de seu pai que nos permite conhecer mais de perto a vida de um intelectual ativo e apaixonado por seu trabalho naqueles anos fatídicos em que a cultura russa alcançou níveis altíssimos de efervescência e criatividade para, logo em seguida, ser sufocada pela mesmice mediocrizante imposta pelo terror totalitário. Nesse curto espaço de tempo, vemos o brilhante intelectual que nos legou uma obra instigante e que participou ativamente da efervescência de seu tempo ser declarado “inimigo do povo” e fuzilado em 1938.

Indo agora ao texto de P. N. Medviédev, cabe mencionar que ele tem quatro partes e nove capítulos, além de uma Conclusão. Na Primeira Parte (Objeto e tarefas dos estudos literários marxistas), acompanhamos a formulação dos fundamentos do que o autor chama de “a ciência das ideologias”, ou seja, de uma teoria de inspiração marxiana sobre a criação ideológica – entendidos os termos “ideologias” e “ideológico” em seu sentido amplo (e positivo), isto é, como fazendo referência, nos termos de Marx, aos “produtos do espírito humano” (ou ao universo das superestruturas) e não no sentido estrito (e negativo) do falseamento da realidade.

A poética sociológica proposta por Medviédev, no Capítulo Segundo desta Primeira Parte, é, assim, a teoria da “ciência das ideologias” que vai tratar especificamente da criação literária.

Depois dessa discussão geral, o autor, na Segunda Parte do livro (Uma contribuição à história do método formal), faz uma revisão histórica do pensamento formalista nos estudos da arte primeiro na Europa Ocidental e, em seguida, na Rússia, delineando suas diferenças.

A Terceira Parte (O método formal na poética) é uma detalhada discussão dos principais conceitos e pressupostos do Formalismo Russo: apresenta-os e, em seguida, submete-os à crítica sistemática, o que lhe permite expor suas próprias ideias sobre cada um dos temas. Encontramos aqui, nessa metodologia de trabalho, uma das características da “coletividade de pensadores” a que Medviédev pertenceu: o autor aproxima-se do outro criticamente, mas primeiro apresenta-o demorada e respeitosamente. É assim que Voloshinov, por exemplo, discute o freudismo e é também assim que Bakhtin discute a fortuna crítica sobre Dostoiévski.

Dentre os vários temas discutidos criticamente por Medviédev nesta Terceira Parte, merece especial destaque a sua longa argumentação contrária a um dos pilares do método formal: o conceito de linguagem poética que se contraporia à linguagem prática.

Essa argumentação é, sem dúvida, um dos pontos altos do livro por mostrar que a poeticidade não está no linguístico em si, mas decorre do processo de apropriação do elemento linguístico (qualquer que ele seja) por determinados modos de construção poética. Em outros termos, “a linguagem poética adquire as características poéticas apenas em uma construção poética concreta. Essas características não pertencem à língua na sua qualidade linguística, mas justamente à construção, seja ela qual for” (p.142).

Por fim, a Quarta Parte (O método formal na história da literatura) é destinada a uma apresentação crítica do modo como o método formal tratou os temas da história da literatura.

Na discussão crítica da teoria formalista da linguagem poética, Medviédev revisita a concepção de linguagem que ele, Bakhtin e Voloshinov vinham construindo ao longo da década de 1920. Mais do que isso: é nesta discussão que se reiteram também as bases da estética geral elaborada por esta “coletividade de pensadores”. Precisamente por isso é que este livro tem de ser lido juntamente com dois textos assinados por Bakhtin: “O autor e o herói na atividade estética” e “O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal” (conforme já sugeri em Faraco, 2009). É esse conjunto de textos que explicita a teoria estética desse grupo de pensadores.

A primeira observação que se pode fazer sobre essa estética é que ela é muito afinada com as discussões estéticas próprias do início do século 20. Como nos mostra Medviédev, na Segunda Parte desse seu livro (p.87-127), o discurso teórico sobre a arte – que vivia sob o impacto das transformações do fazer artístico que ocorreram nos fins do século 19 e início do 20 – começou a assumir o caráter construtivo da arte em detrimento das concepções da arte como imitação, representação ou expressão. Punha-se, então, como tarefa para o estudioso revelar a unidade construtiva da obra e as funções puramente construtivas de cada um de seus elementos.

É precisamente nessa direção que vai o discurso bakhtiniano. Em seu texto “O autor e o herói na atividade estética”, Bakhtin (1990, p.9) critica, entre outras, as abordagens biográficas e sociológicas da arte. Ele diz que falta a elas a compreensão estético-formal do princípio criativo fundamental da relação do autor com o herói. Seu foco de atenção é, portanto, declaradamente o estético-formal.

Nesse sentido, ele se afina com as concepções formais, construtivistas da arte, que Medviédev vai resumir no capítulo primeiro da Segunda Parte desse seu livro – resumo que se conclui com a afirmação (p.101) de que o problema formulado por essas concepções (ou seja, a atenção que despertaram para o caráter construtivo da atividade estética) e as tendências fundamentais em direção à sua solução eram, no geral, aceitáveis para ele e seus pares. Acrescenta, porém, a observação: “O que resulta inadmissível é somente o terreno filosófico no qual se dá sua solução concreta” (p. 101).

No correr do livro, Medviédev vai explicitando esse terreno filosófico a que ele se refere de modo crítico. Bakhtin e seus pares não podiam concordar, basicamente, com a ideia de que o estético-formal exclui necessariamente o social, o histórico, o cultural. Ou seja, com a ideia de que o social, o histórico, o cultural são estranhos ao específico da arte.

O que é considerado externo pelo pensamento formal se torna, para Bakhtin e seus pares, interno, imanente ao objeto estético. E isso se faz pelo engenhoso modo como eles concebem o princípio construtivo fundamental da atividade estética, ou seja, a dupla refração. Nada entra na arte diretamente (como se fosse apenas um registro estenográfico). No ato artístico, a realidade vivida (já em si refratada, ou seja, atravessada por diferentes valorações sociais porque a vida se dá numa complexa atmosfera axiológica) é transposta para um outro plano axiológico (o plano da obra) – o ato estético opera sobre sistemas de valores e cria novos sistemas de valores.

Precisamente por isso é que Medviédev retoma, com insistência, nesse seu livro a defesa de um método sociológico único para o estudo das artes e da literatura em particular, opondo-se a uma tradição que assume o pressuposto da necessidade de se separar o estudo imanente das artes do estudo de sua história e de sua inserção social e cultural.

Haveria, nas artes, segundo essa tradição, uma especificidade absoluta, um em-si estético (livre de qualquer interferência do social, do cultural e do histórico) que deveria ser o efetivo objeto de atenção e análise. O estudo da história da arte e da sua inserção sociocultural não deveria ser misturado com o estudo da especificidade da arte, do em-si estético.

Essa perspectiva metodológica do corte radical nos estudos estéticos já tinha sido abordada por Medviédev no texto que publicou em 1926, intitulado “Sociologismo sem sociologia” (MEDVIÉDEV, 1983). Nele, o autor nos lembra que P. N. Sakulin – o teórico russo de literatura que tentou, na década de 1920, reconciliar, numa obra enciclopédica, o saber literário tradicional, a poética formalista e o marxismo – defendia pura e simplesmente dois métodos distintos para o estudo da literatura: o método formal para o estudo imanente e o método sociológico para o estudo histórico, causal da arte.

Medviédev faz uma extensa crítica desse posicionamento dicotômico (voltando a fazê-la nesse seu livro) em que os métodos não conhecem nenhuma conexão interna, nenhuma unidade sistemática. E é precisamente essa conexão interna, essa unidade sistemática que Medviédev e seus pares de Círculo perseguem em suas formulações teórico-filosóficas sobre a atividade estética: um método único que não ignora nem o específico das artes, nem o fato de que as artes, como qualquer produto do espírito humano, são sociais do começo ao fim.

É, por sua engenhosidade, uma bela estética geral que ainda não repercutiu devidamente (cf. discussão em Faraco, 2011). Esperemos que a tradução do livro do Medviédev motive, entre nós, uma retomada desse pensamento heuristicamente tão poderoso.

Referências

BAKHTIN, M. Author and hero in aesthetic activity. In: HOLQUIST, Michael; LIAPUNOV, Vadim (eds.). Art and answerability: early philosophical essays by M. M. Bakhtin. Austin: University of Texas Press, 1990, p.4-256.         [ Links ]

_______. The problem of content, material, and form in verbal art.  In: HOLQUIST, Michael; LIAPUNOV, Vadim (eds.). Art and answerability: early philosophical essays by M.M.Bakhtin. Austin: University of Texas Press, 1990, p. 257-325.         [ Links ]

FARACO, C. A. O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin – dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009, p.95-111.         [ Links ]

_______. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares.  Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p.21-26, jan./mar. 2011.         [ Links ]

MEDVIÉDEV, P. N. Sociologism without Sociology: on the methodological works of P. N. Sakulin. In: SHUKMAN, Ann (ed.). Bakhtin School Papers. Oxford: RPT, 1983, p.67-74.         [ Links ]

Carlos Alberto Faraco – Professor da Universidade do Paraná – UFPR; Paraná, Curitiba, Brasil; [email protected].