Federalismo nas Américas / Locus – Revista de História / 2013

No presente número, a Revista Locus publica o dossiê Federalismo nas Américas. A ideia do volume é apresentar um debate sobre as propostas e modelos federalistas nas Américas e as relações e arranjos entre províncias e poderes centrais, contemplando os casos da Argentina, México, Brasil e EUA, de forma a compreender como esses projetos se fizeram representar nos diferentes cenários políticos que surgem após os movimentos de Independência, bem como seus desdobramentos nos debates e na consolidação dos modelos políticos no século XIX e inícios do século XX.

O federalismo moderno surgiu oficialmente, ou seja, como sistema de organização política, na constituição norte-americana de 1787. Desde então, de uma forma ou de outra, vem servindo de inspiração a movimentos das mais variadas origens e tendências até os dias atuais. Mas naquela conjuntura específica, quando a Europa e as Américas enfrentavam as transformações decorrentes dos intensos movimentos sociais e políticos que abalavam as estruturas de poder em ambos os continentes entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, o federalismo parecia surgir como resposta inevitável a uma velha questão, inerente ao processo de formação e consolidação dos chamados estados nacionais, principalmente aqueles que então começavam a se desenhar no antigo ultramar. Tratava-se das dificuldades em conciliar a existência dos novos centros de poder – materializados no modelo de um Estado impositivo, que se aprimorava desde meados do século XVIII –, com a tradição autonomista das antigas províncias, combinadas a experiências mais ou menos extensas de autogoverno, conforme a região e o período.

Essas dificuldades, já anunciadas no cenário político norte-americano que se seguiu à declaração da independência, tendiam a se reproduzir especialmente no antigo espaço colonial, onde as províncias iriam, de fato, resistir à ameaça de mudança representada pela imposição de um poder centralizado. Assim, o federalismo se tornaria progressivamente interessante às elites políticas na América latina, principalmente por combinar algumas noções às quais surgia associado e que o faziam intensamente moderno: as noções de soberania, autonomia e república. Não por acaso, essas seriam importantes palavras de ordem no eterno ideário liberal, e que então se afirmava: soberania se associava ao direito dos povos de se autogovernarem na ausência de um poder governante legítimo, como rezavam as antigas tradições do pactismo; autonomia lembrava as ideias de liberdade e independência, tão caras às colônias que se livravam do jugo das tradicionais potências europeias; por fim, a república, indelevelmente relacionada à luta contra as antigas e empoeiradas monarquias, que ainda carregariam as marcas da arbitrariedade e do autoritarismo, mesmo ao longo do século XIX.

Entretanto, o sucesso da revolução norte-americana e a intensa propaganda de modernidade que lhe sucedeu pareciam ocultar uma verdade inegável: os recém-criados Estados Unidos da América haviam formulado e adotado um modelo federalista por necessidade, ou melhor, por imposição de sua história colonial. Visto por esse ângulo, toda a modernidade do sistema parecia se deparar com um certo conservadorismo em sua essência: a manutenção, a qualquer custo, da autonomia de cada uma das antigas treze colônias, obtida a despeito de alguns séculos de dominação colonial, e a rejeição de um Estado central moderno, capaz de construir e garantir a unidade. Mas a federação norte-americana era, de fato e de direito, uma novidade, digna de ser reconhecida como tal, inclusive porque o próprio discurso autonomista assumiria, nesse momento, um caráter mais liberal, identificado à noção moderna de soberania, tal como esta seria enunciada nos movimentos da década de 1820. Assim, sua originalidade se baseava na criação de um sistema – e suas sólidas instituições políticas – destinado a preservar essa autonomia e coibir e controlar o avanço dos poderes do governo central; tratava-se de uma solução que, na prática, inventava uma nova forma de unidade e renovava uma bem sucedida independência individual e não-coletiva.

Porém, do ponto de vista dos movimentos autonomistas que se intensificavam nas outras Américas, a pergunta mais importante seria até que ponto o federalismo, tal como então conheciam, poderia responder aos anseios dessas nações. Nesse sentido, as iniciativas voltadas para a formação de federações, tanto na antiga América espanhola quanto no Brasil, estariam destinadas a enfrentar não apenas os diferentes projetos centralizadores, mas ainda as inúmeras resistências regionais, que exporiam toda a diversidade dessas experiências de autogoverno local e colocariam na ordem do dia a capacidade dos atores e instituições envolvidos em negociar (e renegociar constantemente) algum tipo de consenso.

Nem por isso, no entanto, propostas, projetos e variações de modelos federalistas deixaram de ser perseguidos, não apenas nesse contexto, mas ainda ao longo de todo o século XIX, até os dias atuais. Há, naturalmente, que se diferenciar as regiões, até porque, no Brasil, embora o império que se constituíra em 1822 houvesse herdado um vastíssimo território fragmentado, nunca deixou de existir uma referência central, representada pela sombra da monarquia. Entretanto, tanto no Brasil quanto na América espanhola, onde era notória uma maior diversidade étnica, cultural, geográfica etc., havia sérios obstáculos a serem suplantados no sentido da manutenção das autonomias regionais tradicionais.

De qualquer forma, em princípio, parece justo afirmar que os movimentos, experiências e modelos federalistas alcançaram um êxito maior na ausência de referências sólidas e / ou legítimas de poder central, o que possibilitava um ambiente propício ao afloramento de regionalismos de diferentes origens e tendências. Mesmo no Brasil, ao menos no primeiro século de sua existência independente, os momentos em que essas ideias surgiram mais seriamente no debate político corresponderam exatamente à ausência da monarquia, ou seja, ao período regencial (1831- 1840), que se sucedeu à abdicação de D. Pedro I, e à proclamação da república, no contexto em que se discute a elaboração e implementação da constituição de 1891, onde o sistema político do país é oficialmente reconhecido como uma república federativa.

Mas a que se deve o sucesso ou o fracasso dessas primeiras tentativas? Que tipo de federalismo vingou, seja nos EUA ou nas diferentes nações latino-americanas? Como essas primeiras experiências nos ajudam a compreender a recorrência do modelo? Parece simples afirmar que as dificuldades eram muito maiores ao sul do Equador, dados, inclusive, o caráter e o modelo administrativo das monarquias ibéricas, que teriam gerado obstáculos intransponíveis a uma independência de fato, no sentido da autonomia regional e autogoverno. Mas a história não é fácil e, em geral, parece sempre pronta a afrontar a obviedade. Não por acaso, o maior desafio enfrentado pelo federalismo ocorreu na própria nação que lhe deu existência e vigor, nos Estados Unidos, onde, em meados do século XIX, uma longa e sangrenta guerra civil varreu o país de norte a sul, literalmente. Com a reconstituição da União, a partir de 1865, a guerra civil também reinventou o federalismo norte-americano.

De fato, a riqueza do processo político na história consiste exatamente no poder e na capacidade da sociedade não propriamente de recriar ou copiar experiências, mas de as reinventar. São essas constantes releituras que, entendidas como teoria e prática política, condicionadas por diferentes cenários e conjunturas, concedem dinamismo e movimento a todo o processo. Assim, embora o caráter doutrinário da revolução norte-americana tenha despertado corações e mentes, é a experiência prática que atrai os olhares pragmáticos das novas lideranças políticas e das elites que estes, via de regra, representavam. Também nos trópicos, o federalismo seria constantemente reinventado, de forma a enfrentar os dilemas recorrentemente impostos tanto pelos latentes ou explícitos regionalismos quanto por governos centrais autoritários.

Em qualquer que seja o período, em cenários onde há espaço para o debate acerca de valores como autonomia, liberdade e soberania – principalmente em função da fragilidade, transitoriedade ou mesmo inexistência de um poder centralizado –, o federalismo surge, então, como uma promessa de conciliação dos interesses entre centros e regiões, destinado, entretanto, a administrar um pesado fardo, representado por arraigadas experiências de autogoverno herdadas do período colonial, ou por antigas e novas representações identitárias, regionalismos dinâmicos, localismos tradicionais, recorrentes disputas intra e interprovinciais, etc.

Portanto, entender o federalismo americano implica, necessariamente, conhecer seus movimentos, suas propostas e suas experiências. Significa entender o que esses processos têm em comum, quais os princípios e interesses que os motivaram e que forças enfrentaram em sentido contrário, quando se considera o extenso arsenal de recursos a que fizeram uso os governos centrais em busca de legitimidade, imposição da autoridade e manutenção da unidade. Significa, portanto, compreender como os governantes lidaram com essa equação, a que tornava imprescindível costurar o território, preservar a autonomia decisória das províncias e governar toda a nação, agindo em nome da ordem e mantendo o equilíbrio entre as partes que formam o todo.

Portanto, o que se propõe aqui é expor e comparar essas experiências regionais e federalistas no tempo e no espaço, de forma a reabrir as portas a um debate que parece ainda extremamente rico, até porque, dentre os tradicionais temas da política, este é, sem dúvida, aquele que parece sempre o mais atual. Essa deve ser outra verdade irrefutável: no fundo, estamos condenados a discutir eternamente nossos espaços de autonomia dentro de sistemas concebidos para unir diferenças e, de alguma forma, as manter e controlar, sem, contudo, as suprimir.

Esperamos que as reflexões e experiências aqui tão brilhantemente retratadas pelos autores possam, de fato, inspirar e renovar esse importante debate.


MARTINS, Maria Fernanda. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.19, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]

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