A Guerra da Tríplice Aliança, 150 anos depois  | Diálogos | 2020

Ao se completarem os 150 anos do fim da Guerra da Tríplice Aliança (Guerra Guasu, Guerra contra a Tríplice Aliança ou Guerra do Paraguai, entre as várias denominações que o conflito recebeu), as academias dos países envolvidos abriram suas portas para novas reflexões e debates em torno deste acontecimento que marcou a vida política, social, econômica, cultural e histórica da região do Prata.

Diferentes fatores têm contribuído para a renovação e a produção de novas leituras sobre a contenda. Sem dúvida, a disponibilidade de outras ferramentas teórico-metodológicas, surgidas nas últimas décadas, tem enriquecido com novos olhares as análises sobre o passado. Assim, foram deixados para trás os relatos engessados das histórias política e militar de outrora, em que o tom era colocado na ação dos “grandes homens” e na somatória de batalhas, sem dar margem às microhistórias, à história social ou à história cultural. Agora, estas se fazem presentes de maneira definitiva e em um diálogo interdisciplinar com as outras áreas das ciências humanas, transcendendo as fronteiras nacionais para construir uma história regional. Por sua vez, as histórias política e militar foram as grandes beneficiadas de estas mudanças que, longe de perderem espaço nas narrativas sobre o passado, ganharam um fôlego inusitado. Leia Mais

Os estertores da Guerra da Tríplice Aliança: momentos finais e repercussões | Navigator | 2020

O presente dossiê, referente ao sesquicentenário do final da Guerra da Tríplice Aliança, é de suma importância por trazer à tona reflexões inovadoras acerca daquele conflito numa tão importante efeméride. As preocupações centrais aqui foram preservar o rigor científico e a diversidade historiográfica. Para tanto, este dossiê conta com a presença de historiadores(as) independentes ou ligados às mais diversas instituições de ensino superior no Brasil e no exterior, e juristas, tratando de temas os mais variados, como tática, estratégia, logística, direito internacional, antropologia, historiografia, tecnologia (naval e terrestre, civil ou de emprego mais propriamente militar). Leia Mais

A Guerra da Tríplice Aliança: 150 anos depois / Diálogos / 2020        

Ao se completarem os 150 anos do fim da Guerra da Tríplice Aliança (Guerra Guasu, Guerra contra a Tríplice Aliança ou Guerra do Paraguai, entre as várias denominações que o conflito recebeu), as academias dos países envolvidos abriram suas portas para novas reflexões e debates em torno deste acontecimento que marcou a vida política, social, econômica, cultural e histórica da região do Prata.

Diferentes fatores têm contribuído para a renovação e a produção de novas leituras sobre a contenda. Sem dúvida, a disponibilidade de outras ferramentas teórico-metodológicas, surgidas nas últimas décadas, tem enriquecido com novos olhares as análises sobre o passado. Assim, foram deixados para trás os relatos engessados das histórias política e militar de outrora, em que o tom era colocado na ação dos “grandes homens” e na somatória de batalhas, sem dar margem às microhistórias, à história social ou à história cultural. Agora, estas se fazem presentes de maneira definitiva e em um diálogo interdisciplinar com as outras áreas das ciências humanas, transcendendo as fronteiras nacionais para construir uma história regional. Por sua vez, as histórias política e militar foram as grandes beneficiadas de estas mudanças que, longe de perderem espaço nas narrativas sobre o passado, ganharam um fôlego inusitado.

Essa renovação historiográfica é nítida nos artigos que integram este dossiê. Em grande medida, o estado das investigações atuais é fruto da redemocratização das últimas décadas na bacia do Prata – o que tem permitido a organização e abertura de novos repositórios documentais – e da profissionalização das ciências humanas que, durante os governos autoritários, tinham sido amordaçadas. Os aportes das novas perspectivas de análise, bem como a incorporação de novos objetos e de novas fontes de investigação têm enriquecido o conhecimento sobre a guerra em si e sobre como ela se projetou nas respectivas histórias nacionais e nas relações internacionais entre os países que participaram no confronto.

A realização do VII Simpósio Internacional de História Global e das Relações Internacionais, sob o tema “A Guerra do Paraguai: 150 anos depois”, organizado pelo curso de bacharelado em Relações Internacionais e pelo Programa de Pós Graduação em Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, levou a especialistas de diferentes áreas a apresentarem seus trabalhos e reunirem um numeroso público de diversas regiões do Brasil, do Paraguai, da Argentina e do Uruguai, evidenciando a atualidade e a necessidade dessa renovação nas pesquisas. Este dossiê traz parte dos trabalhos apresentados nas diferentes mesas redondas do Simpósio, além de somar a participação de pesquisadores de diversos países, na tentativa de oferecer esse olhar diverso, múltiplo e inovador que as novas leituras sobre a Guerra Guasu oferecem.

A eclosão da Guerra foi o resultado de uma série de vínculos, acordos e alianças entre produtores locais, comerciantes e políticos em uma trama que não pode ser analisada apenas pelo viés diplomático. Em “O Brasil e o subsistema platino: os antecedentes da Guerra da Tríplice Aliança”, o internacionalista Daniel Rei Coronato explora como as teorias das Relações Internacionais são insuficientes para a compreensão da política regional naquele momento. Para ele, os mecanismos de coerção e capital dos Estados ainda não estavam plenamente estabelecidos antes da Guerra e a maneira como foram estabelecidos é resultado direto daquele conflito.

Dois artigos exploram os aspectos da história militar do conflito. Jéssica Gonzaga, a partir de uma série de documentos da Marinha Brasileira, do Conselho de Estado, do governo da Província de Mato Grosso e da Secretaria de Negócios Estrangeiros, explora a análise sobre a defesa daquela região desde a década de 1850, os planos para sua defesa e as dificuldades para suas execuções. Seu artigo “A estratégia de defesa da fronteira de Mato Grosso contra a República do Paraguai pela Armada Imperial (1852-1864)” contribui para o entendimento de como militares lotados na região de fronteira, comandantes na Corte e políticos debateram as relações entre o Império e o país vizinho.

Leandro José Clemente Gonçalves apresenta, em “Três guerras, uma mesma maneira de combater: a tática nas guerras de meados do século XIX nos casos das guerras da Crimeia (1853- 1856), da Secessão Americana (1861-1865) e do Paraguai (1864-1870)”, uma análise original sobre as semelhanças entre os três conflitos. A partir de memórias e relatos de combatentes e comandantes, ele demonstra como a falta de treinamento, de armamento e as próprias dificuldades dos campos de batalha levaram à adoção da estratégia defensiva de trincheiras naquelas situações. Conforme ele explora, o aparecimento e uso de novo armamento – o rifle – pouco alterou as formas de fazer a guerra naquele momento por conta da falta de treinamento, das dificuldades dos terrenos e dos conflitos, ou ainda de percepção pelos oficiais.

Finalizado o conflito, as diplomacias dos antigos aliados atuaram intensamente nas negociações em torno de tratados de paz. O artigo “Disputas diplomáticas e imprensa após a Guerra do Paraguai: a Missão Mitre de 1872 no La Nación e no Jornal do Commercio” explora as relações entre imprensa e diplomacia naquele período. A partir da análise dos jornais mais influentes das duas capitais, Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva demonstra como os temas referentes ao pósguerra foram muito explorados por políticos locais, como a imprensa de cada país utilizava notícias veiculadas no outro país para tentar influenciar nos processos de decisão e como a missão diplomática do general e ex-presidente ao Rio de Janeiro recebeu ampla cobertura nas duas capitais.

A paz definitiva entre os antigos aliados e o Paraguai ocorreu somente em 1876 e o artigo “‘Estando autorizado pelo Sr. Conselheiro Barão de Andrada’: percursos e limitações da trajetória do diplomata Luiz Augusto de Pádua Fleury em Buenos Aires (1876)” analisa a documentação diplomática da legação Imperial naquela capital naquele momento. A partir das impressões do representante brasileiro, um diplomata em ascensão na carreira, Gabriel Passetti explora as limitações à atuação daqueles profissionais, suas relações com a estruturação do Estado Imperial e como ele observou e analisou aspectos da política doméstica argentina, crítico a seu sistema político republicano.

Nesse mesmo espaço urbano, a capital da Argentina, outras disputas se livravam e tinham a ver com o futuro político do país. No clima eleitoral, os jornais portenhos serviam como espaço privilegiado para veicular os debates públicos prévios às eleições presidenciais de 1874 e a Guerra recém encerrada era uma das principais armas políticas para esse debate. Se o conflito tinha significado a vitória para a Argentina, as condições em que essa vitória foi obtida e o contexto das negociações de paz trouxeram sérias críticas ao mitrismo. As representações construídas pelos jornais da época sobre a contenda constituem o tema analisado por Bruno Segatto, no seu artigo “O Paraguai como arma eleitoral: representações e identidade nacional nos jornais de Buenos Aires durante a campanha presidencial argentina de 1873-1874”, a partir do qual identifica o modo em que os jornais se converteram em instrumento de mobilização das facções às quais cada periódico estava vinculado.

Vitor Izecksohn e Arnaldo Lucas Pires Junior identificaram as origens dos conceitos explorados pelos revisionismos da Guerra a escritos publicados ainda durante o conflito. Em “Juan Bautista Alberdi, a Guerra do Paraguai e os Revisionismos Históricos”, eles analisam os escritos daquele político e intelectual argentino no exílio durante o conflito e verificam como ele construiu uma argumentação em torno de solidariedade americana e da figura do presidente paraguaio, Francisco Solano López, que depois foram resgatadas e exploradas nas análises do revisionismo histórico no século XX.

Por sua parte, Liliana Brezzo e Laura Reali, em “La Guerra del Paraguay entre líneas. Los proyectos archivísticos y la correspondencia de Juan O’Leary y Luis de Herrera (1905-1926)”, retomam a análise da correspondência entre o paraguaio Juan O’Leary e o uruguaio Luis de Herrera, para aprofundar as reflexões em torno dos mecanismos estabelecidos por ambos os intelectuais, “pais” dos revisionismos de seus respectivos países, para consolidar e difundir as novas leituras sobre Guerra, construídas na primeira metade do século XX. Nesta nova reflexão, as autoras salientam a importância de recuperar fontes, como a epistolar, para reconstruir aspectos fundamentais da história intelectual e da política que, por outros meios, seria muito dificultoso.

No artigo “A Guerra Guasu na construção da identidade nacional no Paraguai”, Marcela Cristina Quinteros realiza um percurso pelo século XX paraguaio para identificar de que modo os conceitos e elementos simbólicos consagrados pelo revisionismo histórico paraguaio, no início da centúria, foram ressignificados e reapropriados por diferentes grupos sociais, econômicos e políticos, fazendo um uso político da Guerra segundo as demandas de cada momento histórico (durante da Guerra do Chaco, após o golpe militar de 1936, durante a Guerra Civil de 1947 e com o stronismo). A consagração dessa história “revisada” como história oficial do Paraguai durante a ditadura de Stroessner foi crucial para a consolidação de uma identidade nacional a partir dos mitos revisionistas.

Um desses mitos foi construído em torno do papel da mulher durante a guerra, o que levou a uma exaltação particular da “mulher paraguaia”. Por mais contraditório que possa parecer, uma dessas figuras femininas consagradas pelos revisionistas paraguaios foi uma irlandesa, Elisa Lynch, companheira do Marechal Francisco Solano López. Natania Neres da Silva, em seu texto “Elisa Lynch como heroína nacional no stronismo: representações de gênero, domesticidade e sufragismo” traz uma riquíssima análise sobre as biografias escritas sobre Elisa Lynch durante o stronato e, a partir da seleção de algumas delas, reflete sobre os interesses políticos por trás de sua reabilitação.

Por fim, dois artigos refletem sobre como é contada a história da Guerra nos livros didáticos. Carolina Alegre Benítez e Antonio Tudela Sancho fazem um balanço da produção de textos escolares no Paraguai após a queda de Alfredo Stroessner até os dias atuais. Sob o título “Género y nacionalismo en la educación paraguaya: las mujeres en la historiografía escolar de la Guerra de la Triple Alianza”, os autores procuram analisar o papel histórico atribuído às mulheres nos relatos escolares, confirmando que, a pesar da renovação historiográfica na academia e nas políticas  educativas dos diferentes governos democráticos, ainda persistem as representações do universo feminino ligado ao nacionalismo e aos papeis tradicionais de gênero no marco de uma sociedade patriarcal.

Neste mesmo sentido, Ana Paula Squinelo confirma também que, embora tenha havido um significativo avanço historiográfico, as narrativas didáticas do Brasil, do Paraguai e do Uruguai permanecem na retaguarda da produção acadêmica. Ao tentar responder à pergunta do título do artigo, “O que as narrativas didáticas de história contam sobre a Guerra Guasu 150 anos depois? Mulheres, crianças, negros e indígenas em uma mirada comparativa: Brasil, Paraguai e Uruguai”, a autora realiza um exaustivo trabalho comparativo dos livros didáticos dos três países selecionados, para descobrir em que medida as novas pesquisas sobre gênero e raça foram incorporadas nesses textos.

A partir do aporte de cada um desses artigos podemos concluir que a incorporação de fontes tais como cartas, jornais, livros didáticos, biografias, documentos consulares, revistas, músicas, entre muitos outros, traz novos olhares sobre a Guerra da Tríplice Aliança. Essas fontes, interpretadas a través das ferramentas adequadas, permitem reconstruir, desde outros ângulos, os fatos acontecidos 150 anos atrás, abrindo diversos significados que esses fatos tiveram desde o fim da Guerra até hoje. Dois fatos importantes merecem ser destacados: a maior ou menor ausência de diálogo entre esta produção e a elaboração dos livros didáticos, por um lado, e a colaboração entre os pesquisadores de diferentes países para construir uma história da Guerra que supere as fronteiras nacionais, pelo outro. Se ainda os livros didáticos refletem muito pobremente o avanço das pesquisas acadêmicas, não acontece o mesmo com o trabalho conjunto de pesquisadores do Rio da Prata, sinalizando um futuro próspero para as pesquisas sobre o conflito oitocentista.

Gabriel Passetti – Universidade Federal Fluminense, Brasil. E-mail: [email protected]  https://orcid.org/0000-0001-8311-5396

Marcela Cristina Quinteros – Rede Ñande; GP UFMS e UEM, Brasil. E-mail: [email protected]   https://orcid.org/0000-0001-8376-947X

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