História das doenças e artes de curar / Khronos – Revista de História da Ciência / 2018

Este número 6 de Khronos traz um dossiê derivado do 1º Simpósio Nacional de História das Doenças e das Artes de Curar. Realizado em São Paulo ao final de junho de 2018, o encontro resultou de uma feliz iniciativa do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e da Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz, do Rio de Janeiro.

Deste Simpósio foram selecionados cinco trabalhos de alta relevância historiográfica. Inicialmente, André Mota discorre sobre a modernização da cidade de São Paulo, intensificada na década de 1930, em meio a um crescimento urbano e populacional que se tornaria vertiginoso, inclusive pela migração interna nordestina. O quadro de doenças com que se defrontam as autoridades nas décadas seguintes inclui a esquistossomose, a epidemia de meningite pouco divulgada na época e doenças cardiorrespiratórias. A saúde pública reflete as divisões de classe já pronunciadas e que, infelizmente, permanecem de grande atualidade.

Dilene Nascimento, Eliza Vianna, Monica Moraes e Danielle Silva discutem o conceito de representação social das doenças, baseando-se na relação entre indivíduo e sociedade. Para tanto, discutem a relação entre o conceito de representação social e o da experiência da doença, que ocorre tanto em termos subjetivos quanto concretos, na busca do entendimento do que é permanente na estrutura social de doenças crônicas e epidêmicas. Iniciando-se com uma discussão do indivíduo Galileu Galilei no contexto da trama social da corte em que vivia, o texto mobiliza diversos referenciais para abordar algumas doenças antigas, como a lepra, tifo e peste bubônica, chegando ao caso contemporâneo da AIDS.

Liane Bertucci estuda aspectos da narrativa construída pela imprensa paulistana sobre a epidemia de gripe espanhola que grassou no mundo no ano de 1918. Textos de publicação diária no auge da doença eram pautados por elogios ou críticas, considerações médicas sobre a epidemia e iniciativas médico-governamentais para socorrer os doentes. Segundo os dados oficiais em um mês morreu um por cento da população paulistana. Em meio ao sofrimento individual e coletivo os jornais difundiam as ações de moradores da cidade para auxiliar os enfermos e suas famílias.

Tânia Pimenta volta-se para o tema da diversidade das relações entre terapeutas com formação acadêmica no Rio de Janeiro e aqueles que exerciam a arte de curar e eram de origem negra humilde, nas primeiras décadas do século XIX. A partir da documentação da Fisicatura-mor, responsável pela fiscalização do exercício das profissões de curandeiro, parteira e sangrador, mostra-se o conflito entre as duas tradições.

Simone Silva e Sebastião Franco realizaram pesquisas num antigo leprosário, a Colônia de Itanhenga, em Cariacica, Espírito Santo, cujo funcionamento data de 1937. O projeto foi desenvolvido em visitas ao local, hoje denominado Hospital Pedro Fontes, com o intuito de fazer o levantamento de documentação como correspondências, relatórios, prontuários médicos, fotografias e jornais, a fim de organizar e disponibilizar um catálogo de fontes. É discutida uma entrevista dos autores com um ex-interno da Colônia, colaborando para uma análise histórica acerca das experiências coletivas dos indivíduos afetados pela hanseníase e pelas ações de internamento compulsório infligidas aos pacientes.

Optamos por encerrar o dossiê com um texto que, embora não tenha sido apresentado no referido Simpósio e esteja situado em época histórica bem diferente, se enquadra no mesmo tema. Carlos Roberto Nogueira apresenta a partir de textos portugueses do século XIV uma análise das rações garantidas pelo governo aos leprosos. A situação de escassez se impôs então a um Portugal debilitado por uma balança comercial desfavorável. O século foi marcado por crises de abastecimento e pestes, em meio ao seu envolvimento constante nas guerras contra Castela. Parece surpreendente que em um século de falta de pão, de devastações e pilhagens, os chamados gafos escapassem à carestia generalizada, uma postura caritativa resultante da imagem medieval de horror e atração exercida pela corrupção da carne e a ameaça de danação eterna.

Após o dossiê há dois artigos gerais. No primeiro deles, aborda-se um aspecto da história da tecnologia brasileira. Em comemoração ao centenário da imigração japonesa em São Paulo (2008), Marcel Mendes fez um levantamento dos cem primeiros engenheiros nikkeis formados em São Paulo. Com isso, propõem-se algumas questões que visam a refletir sobre a trajetória desses profissionais, suas aspirações de realização profissional e a recuperação de sua memória.

Em seguida, Sara Albieri e Ana Paula Nobile fazem um oportuno retorno ao debate Popper-Kuhn acerca do progresso da ciência. Intensa ao final da década de 1970, essa interlocução seguiu caminhos diversos no ambiente acadêmico. Nas humanidades, inclusive entre nós, predominaram as referências às posições de Thomas Kuhn isoladas de seu contexto intelectual. Na recepção brasileira é recorrente a referência ao mesmo tempo vaga e dogmática ao falsificacionismo de Karl Popper. A recuperação dos principais argumentos dessa polêmica pode lançar luz sobre questões ainda presentes em história e filosofia da ciência, dentre as quais sobressai a construção de um mítico “método científico”.

Encerramos a edição com um trabalho de Edgar Zilsel (1891-1944), autor cujas obras não encontraram interesse dos editores brasileiros, embora seja um clássico. De fato, a chamada “tese de Zilsel” é um dos pilares da visão “externalista” da história da ciência, em que o autor coloca a origem da chamada “Revolução Científica” na aproximação renascentista entre pensadores universitários, humanistas seculares e artesãos. O texto “As raízes sociais da ciência”, em tradução de Flávio Santos, apresenta de forma sucinta as bases do pensamento do pensador austríaco.

Desejamos aos leitores um bom proveito desta publicação.

Gildo Magalhães – Editor


MAGALHÃES, Gildo. Editorial. Khronos – Revista de História da Ciência. São Paulo, n.6, dez., 2018. Acessar publicação original [DR]

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