História das Doenças e das práticas de curar no Oitocentos / Almanack / 2019

As últimas décadas têm sido marcadas por uma ampliação significativa no campo de pesquisa da história das doenças e das práticas de curar no Oitocentos. Dentre as características presentes nesses estudos, podemos ressaltar a intercessão e diálogo entre diferentes especialidades científicas, destacadamente os diálogos entre a história e a antropologia e a história e a linguística e a teoria literária; a multiplicidade de opções teórico-metodológicas adotadas – que transitam, mais comumente, entre a história social, a (nova) história política, a história cultura e a história das ciências – e de fontes utilizadas. Aliás, parte desse alargamento de fontes e olhares nos tem permitido, cada vez mais, captar as percepções em torno das doenças e das possibilidades de curas de certos estratos sociais antes desconsiderados em narrativas da história da medicina (em âmbito geral, apenas de uma medicina douta) eivadas de triunfalismos e percepções “presentistas”. [7]Cada vez mais sabemos dos achaques e de suas explicações e terapêuticas engendradas por escravos, libertos e demais elementos oriundos das camadas subalternas, num tipo de olhar que Roy Porter (1985), tão bem nomeou “visão dos pacientes / sofredores”.

Outro aspecto que merece menção é o alargamento dos temas de investigação: representações e caracterizações de doenças; passagem sempre temida de epidemias; diferentes medicinas que coexistiam e, não raro, se confrontavam em diferentes arenas; institucionalização da medicina douta; práticas de curar e doenças dos cativos, entre outros assuntos. Não sendo aqui o lugar para arriscarmos uma revisão dessa extensa bibliografia[8].

No rastro dessas possibilidades de ampliarmos o campo de análise em torno dessa área de pesquisa em franca expansão e fomentar o diálogo entre parte de seus autores e estudos, que apresentamos o presente dossiê temático História das Doenças e das práticas de curar no Oitocentos, na Revista Almanack. Acreditamos que o dossiê possa contribuir para que seus leitores – especialistas ou não especialistas – tenham diante de si textos que uma pertinente amostragem dessas novas leituras, fontes e métodos de estudo em torno dos temas da saúde e da doença no século XIX, com ênfase à realidade do Brasil imperial.

Assim, o artigo de Jean L. N. Abreu, “Discípulos de Asclépio: as teses médicas e a medicina acadêmica no oitocentos (1836-1897)”, analisa, a partir da organização das primeiras faculdades de medicina no Brasil, na década de 1830, até fins do século XIX, de que maneiras a produção de final de curso desses “facultativos” – como se dizia à época – espelha a institucionalização dos saberes médicos no Brasil. Nesse sentido, o autor, usando como corpus documental o banco de teses existente no Arquivo Público Mineiro, percebe as leituras, teorias e controvérsias que formavam os médicos nas faculdades de medicina do Império, ainda em vias de afirmação e legitimação de seus discursos e práticas.

Ainda acerca do processo de institucionalização dos saberes e práticas médicas oficiais no Brasil, mas, nesse caso, com base em um objeto mais específico de interpretação, qual seja as “nevroses” e demais “doenças mentais”, temos o texto de Simone de Almeida Silva, “Impugnação analítica: uma semiologia das doenças nervosas em defesa da medicina douta no período joanino”. A autora analisa os diagnósticos produzidos em torno dos êxtases da beata irmã Germana (1782-1853), na região do Caeté (Minas Gerais). Assim, diferentes saberes médicos oscilaram entre a percepção de que a beata era vítima de fenômenos sobrenaturais, argumento defendido por dois cirurgiões, e sua recusa, tecida em obra publicada pela Imprensa Régia em 1814, pelo médico mineiro diplomado na Europa, Antônio Gonçalves Gomide. Tais diferenças de olhares, teorias e conceitos acionados por esses diferentes discípulos de Hipócrates, revelam a rivalidade entre cirurgiões e médicos, além das influências de autores como Philipe Pinel e outros alienistas nessa publicação que a autora considera uma das primeiras obras sobre o tema do alienismo no Brasil.

O artigo de Tânia Pimenta, intitulado “Médicos e cirurgiões nas primeiras décadas do século XIX no Brasil”, com base na documentação da Fisicatura-mor (1808-1828), nos permite tomar conhecimento das diferentes “artes de curar” e perfis sociais daqueles que recorreram ao Órgão para oficializarem suas terapêuticas a partir da aquisição de licenças para curar. Assim, Pimenta dá conta das amplas e profícuas possibilidades analíticas dessa rica documentação, a exemplo da relação – em geral conflituosa – entre médicos e cirurgiões, os conhecimentos médicos exigidoa para a aquisição das licenças expedidas pelo Fisicatura, seu raio de ação em diferentes espaços geográficos, os custos arcados pelos indivíduos que queriam curar sem caírem nas raias da repressão e da ilegalidade, entre outros aspectos.

Os outros quatro artigos que compõem o presente dossiê revelam uma temática em franca expansão na historiografia das doenças e das artes de curar (como se dizia de modo corrente no oitocentos): a saúde dos escravos[9].

Assim em, “tráfico e escravidão: cuidar da saúde e da doença dos africanos escravizados”, de Jorge Prata, encontramos aproximações metodológicas e conceituais entre a História da Escravidão e a História das Ciências para o entendimento das formas de cuidados dos escravizados e das classificações e percepções dos achaques que sofriam. O autor, usando variada documentação, como testamentos e inventários, fontes da Santa Casa de Misericórdia, assentos de óbitos, defende a existência de um “sistema de saúde do escravo”, com especificidades e formas de identificação das doenças e, sobremaneira, tipos de tratamento que possuíam características próprias.

A fértil documentação da Santa Casa de Misericórdia (desta vez, a da Bahia) reaparece em “Decrépitos, anêmicos, tuberculosos: africanos na Santa Cada de Misericórdia da Bahia (1867-1872)”, de Gabriela Sampaio que, valendo-se de fontes inéditas, analisa as doenças dos escravos que viviam em Salvador na década de 1870. A autora busca, a partir desses registros, “chegar mais perto de quem eram e como viviam” esses indivíduos africanos, muitos deles cativos, uma vez que são revelados pela documentação do Hospital dados como a idade, o estado civil, a profissão, sua “nação”, entre outros dados. Além disso, a partir da produção médica da época, a autora igualmente busca compreender o discurso médico oficial tecido acerca das doenças que acometiam essa população e suas causas.

O corpo e a doença escrava como objetos de análise do saber médico oficial no século XIX também é analisado por Sílvio Lima, com base na obra do renomado médico Cruz Jobim. Assim, o autor sublinha de que maneiras, nas primeiras décadas do século XIX, o entendimento das enfermidades e a produção do conhecimento médico se processavam a partir da observação direta dos pacientes em hospitais que cada vez mais se configuravam com importantes espaços pedagógicos e de produção de textos médicos, a exemplo de teses, manuais e periódicos especializados. Para o autor, nesse processo de produção de saberes médicos, os corpos dos escravizados internados na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, seriam de fundamental valia para a construção das teorias etiológicas que tão fortemente influenciaram a medicina brasileira em recentes vias de institucionalização.

Como há tempos sabemos, os escravizados e seus descendentes não apenas adoeciam, mas também curavam. Nesse sentido, o artigo produzido por Sebastião Pimentel Franco e André Nogueira, interpreta as ações de dois curandeiros ilegais que atuaram na província do Espírito Santo na segunda metade do século XIX, sendo um deles, decerto filho de uma cativa. O processo-crime, tipo fonte já consagrada na produção de abordagens sociais em torno do universo do cativeiro, é aqui usado para percebermos que tipo de indivíduo recorreu aos curandeiros, quais achaques curavam e de que tipo de terapêutica e recursos sobrenaturais se valeram para a realização de suas curas. Assim, o caso de “O Trem” e Olegário dos Santos, nos remete ao pregnante universo da crença no feitiço e de práticas de curar que flertavam com o catolicismo e com matrizes culturais centro-africanas.

Aproveitamos para externar nossos agradecimentos à equipe da Revista Almanack pela eficaz parceria e auxílio em todas as etapas da edificação desse volume. Agradecemos, igualmente, aos colaboradores, cujos estudos aqui publicados nos permite um panorama dos mais atuais em torno da produção acadêmica da história das doenças e das práticas de curar no oitocentos. Enfim, desejamos que as leituras que seguem contribuam para o fomento do diálogo nesta seara de produção e possibilite novas incursões no universo fascinante e vário das doenças e suas curas no século XIX.

Saudações e boa leitura!

Notas

7. Para uma discussão sobre essa temática, ver, entre outros, Edler (1998) e Luiz Antônio Teixeira et. al. (2018, pp. 9-26).

8. Para um apanhado mais geral dessas tendências e texto concernentes à história das doenças e das práticas de curar no oitocentos, conferir Acosta (2005), além dos textos – muitos se propondo a um “estado da arte” publicados na coletânea organizada por Teixeira e Pimenta (2018).

9. Para uma abordagem mais ampla e que sugira ao escopo dessa apresentação sobre a produção historiográfica sobre a saúde dos escravos, ver, entre outros Figueiredo (2006, pp. 252-273) e Barbosa e Gomes (2016, pp. 273-305).

Referências

GOMES, Flávio e BARBOSA, Keith de Olivreira. Doenças, morte e escravidão africana: perspectivas historiográficas. PIMENTA, Tânia Salgado e GOMES, Flávio (org.). Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil. Rio de Janeiro: Outras Letras / CNPQ, 2016. [ Links ]

EDLER, Flávio. A medicina brasileira no século XIX: um balanço historiográfico. InAsclépio. V. L-2, 1998. [ Links ]

FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. As doenças dos escravos: um campo de estudo para a história das ciências da saúde. NASCIMENTO, Dilene Raimundo do, Diana Maul de; MARQUES, Rita de Cássia (org.). Uma história brasileira das doenças, v. 2. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. [ Links ]

PORTER, Roy. The patient’s view: doing Medical history from below. Theory and Society, v.14, n.2, Mar1985, pp. 175-198. [ Links ]

TEIXEIRA, Luiz A; PIMENTA, Tânia S. HOCHMANe Gilberto (org.). História da Saúde no Brasil. 1ed.São Paulo: Hucitec, 2018. [ Links ]

WITTER, Nikelen A. Curar como arte e ofício: contribuições para um debate historiográfico sobre saúde, doença e cura. In: Tempo. Revista do departamento de História da UFF. V.10, 2005. Disponível em:http: / / www.scielo.br / pdf / tem / v10n19 / v10n19a02.pdf. [ Links ]

André Luís Lima Nogueira – Doutor em História das Ciências e da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (COC / FIOCRUZ). Atualmente está no Programa de Pós-doutorado Nota 10 da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, na mesma instituição (FAPERJ / FIOCRUZ). Autor de Entre Cirurgiões, Tambores e Ervas: calunduzeiros e curadores ilegais em ação nas Minas Gerais (século XVIII) (Garamond, 2016), além de artigos e capítulos em livros. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0003-2160-4279

Lorelai Brilhante Kury – Doutora em História pela Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, EHESS. Atualmente é professora do PPGHCS da Casa de Oswaldo Cruz (onde atua também como pesquisadora titular) e do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autora de Usos e circulação das plantas no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2013; Iluminismo e Império na Brasil: O Patriota (1813-1814). 1. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz / Biblioteca Nacional, 2007. Entre outros livros, artigos e capítulos de livros. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-5231-5720

SEBASTIÃO PIMENTEL FRANCO – Doutor em História pela Universidade de São Paulo. Professor Titular e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Autor, entre outros livros, de O Terribilíssimo Mal do Oriente:o cólera da província do Espírito Santo (1855-1856) (EDUFES, 2015), e da organização, com a colaboração de outros pesquisadores, da coletânea Uma História Brasileira das Doenças, vols. 4, 5, 6 e 7. E-mail: [email protected] http: / / orcid.org / 0000-0002-3593-1724


NOGUEIRA, André Luís Lima; KURY, Lorelai Brilhante; FRANCO, Sebastião Pimentel. O oitocentos visto a partir de suas doenças e artes de curar. Almanack, Guarulhos, n.22, maio / agosto, 2019. Acessar publicação original [DR]

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