Debates, polêmicas e conflitos: relações entre estabelecidos e ‘outsiders’ no ocidente tardo antigo e medieval / Ágora / 2017

O dossiê temático desta edição, intitulado “Debates, polêmicas e conflitos: relações entre estabelecidos e outsiders no Ocidente tardo antigo e medieval”, teve como proposta, e objetivo principal, reunir trabalhos que discutam a História do Ocidente tardo antigo e medieval, incluindo estudos sobre o pensamento. Foram aceitos trabalhos sobre todos os tipos de debates, polêmicas e tensões entre poderes em conflito, maioria e minorias, Igreja e dissidentes, que enfoquem os temas tratados.

O primeiro artigo é de autoria de Álvaro Alfredo Bragança Júnior e versa sobre um gênero literário, a Narrenliteratur (literatura dos insensatos), cujo principal objetivo era advertir o homem de então dos perigos de uma nova instância reguladora do orbe, não sendo a Igreja. Sebastian Brant com seu Das Narrenschiff (A nau dos insensatos) critica os desvios de então, personificando os agentes sociais como insensatos, que se deixam levar por novos modelos de comportamento. O espaço é o Sacro Império e o o recorte temporal é o século XV.

O segundo artigo é de autoria de Ana Paula Tavares Magalhães (USP), que também coordena este dossiê e trata do franciscanismo, um tema que tem reaparecido e gerado interesse na academia e na sociedade. Como ela explica, trata-se de uma “[…] controvérsia fundamental no interior da Ordem Franciscana ao longo do século XIII e parte do século XIV que opôs duas formas de interpretação da regra: ao passo que os “Conventuais” eram defensores de uma observância ampla, os “Espirituais” preconizavam a observância estrita, conforme o que imaginavam ser o projeto original de Francisco”.

O terceiro artigo nos vem do Paraná e também trata do franciscanismo. É de autoria de Angelita Marques Visalli e seu tema enfoca um dos espirituais franciscanos, nos apresentando uma abordagem sobre o personagem Jacopone de Todi (1236- 1306) a partir das relações de poder tanto institucionais (relação com o papado) como pessoais. Alocado na Itália medieval, no século XIII e início do XIV e no auge do conflito entre conventuais e espirituais. Faz, portanto um conjunto, com o artigo anterior, pois elabora um estudo de caso meticuloso, com análises de textos em italiano medieval e reflexões inéditas sobre este personagem.

O quarto texto é de um colega que colabora como nosso grupo de pesquisa há mais de uma década, sendo especialista em Inquisição e autor de alguns livros. Trata-se de Geraldo Magela Pieroni (UTP/PR) em conjunto com Alexandre Martins, doutorando em Filosofia (PUC/PR). O artigo denominado “Heréticas à margem: os estabelecidos inquisidores e as bruxas outsiders” faz um interessante contraponto entre a teoria de Elias e Scotson e as inter relações entre inquisidores e as mulheres acusadas de bruxaria. Como nos dizem os autores: “Muitas mulheres foram acusadas de práticas desviantes que maculavam a ortodoxia religiosa. Quem determinava estas condutas consideradas fora da lei? O que legitima a criminalização de um grupo acusado de heterodoxo? As leis são filhas do tempo no qual foram produzidas e, portanto, é inequívoco o embate entre duas visões de mundo, de um lado, a concepção erudita dos juristas e teólogos os quais definem situações e comportamentos como “certos” ou “errados”; e do outro, a da cultura popular do povo supersticioso”.

O quinto artigo nos vem de um dos discípulos do homenageado neste dossiê, que atingindo a titulação de doutor, pode homenagear seu mestre e amigo com esta publicação. Trata-se de Germano Miguel Favaro Esteves (UNESP/Assis) com seu artigo: “Entre a fé e o pecado: o olhar feminino na Incipit Obitvs cvivsdam Abbatis Nancti” que através da análise de um clássico da hagiografia do período visigótico, a obra “Vida dos Santos Padres de Mérida” faz uma análise da aguda misoginia clerical do personagem Nanctus. O tema é muito contemporâneo, mesmo sendo da Antiguidade Tardia e espacialmente alocado no reino visigótico, pois mostra a visão eclesiástica da malignidade da mulher e dos riscos que elas apresentam a um homem santo.

O sexto artigo, alocado na História das Mulheres enfoca a contribuição de uma mulher à cultura medieval, mostrando a participação destas na sociedade. O artigo vem do nordeste e é de autoria de Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB) e se denomina: “As memórias de Leonor López de Córdoba (1362/23-1430): inaugurando linhagens”. Nas palavras da autora trata-se de: “[…] obra escrita nos primeiros anos do século XV e considerada a primeira autobiografia em castelhano. Dada a importância desta obra, tanto do ponto de vista histórico, quanto literário, o estudo busca evidenciar a contribuição das mulheres nos estudos sobre gêneros autobiográficos […]”.

O sétimo artigo é de Mario Jorge Mota Bastos (UFF/Niterói/RJ) e se denomina: “Estabelecidos e outsiders na medievalística contemporânea”, nos traz reflexões sobre o tema no âmbito da historiografia. O autor visita a escrita da história recente, nos colocando a percepção dos europeus, em relação aos medievalistas de outros continentes e suas contribuições. Indaga e reflete sobre a visão de quem vive nos espaços outrora medievais, em relação a nós e outros como nós, e a nossa obra desenraizada, já que não tivemos medievo. Mário questiona, provocando a polêmica: “[…] Mas, será que de fato lhes pertence, de alguma forma superior ou específica, o “passado” em questão? Seremos, todos nós ‘outros’, outsiders ao promovermos a medievalística desde as “periferias” do mundo contemporâneo?”.

O oitavo artigo também vem da UFF (RJ) e é de autoria de Renata Vereza e se denomina: “Revendo a ideia de tolerância: os contornos da marginalização das comunidades mudéjares castelhanas no século XIII”. Um artigo que busca refletir sobre as relações dos castelhanos cristãos com os muçulmanos dos territórios ‘reconquistados’ pelos reis Fernando III e Afonso X, além de outros anteriores e posteriores. A autora revisita o conceito da ‘convivência’ tão caro aos historiadores no período da celebração dos 500 anos da reconquista/descoberta da América (1491/1992). Tenta demonstrar que já havia conflitos e tensões no século XIII e que se tornarão mais fortes no século XVI.

O nono artigo nos traz o segundo discípulo de nosso homenageado, que foi seu primeiro doutorando a defender na UNESP/Assis. Trata-se de Ronaldo Amaral (UFMS – Campo Grande) e que nos apresenta um artigo denominado: “Entre a longa-duração e a ruptura: a consciência mítica medieval apreendida pela dialética do eu e do outro no mesmo”. Traz no artigo uma ampla reflexão da compreensão de mundo no período tardo antigo ( e diria também medieval). Como nós, hoje, podemos entender o homem do passado? Seus códigos, sua concepção do mundo são vistos, por nós através das lentes do presente. O autor sugere: “Contudo, não havendo a possibilidade de encontrar o pensamento e o modus desse pensar do homem do pretérito por ele e nele mesmo, só poderemos apreendê-lo a partir de nós, no interior de nosso próprio espírito, e por meio de uma dialética entre a alteridade e a identidade, quando, sobretudo esta última poderá sobreviver ainda que obnubilada e ressignificada pela primeira”.

O décimo e último artigo é de minha autoria, como coordenador deste dossiê, não poderia deixar de homenagear Ruy de Oliveira Andrade Filho com um texto, mesmo se humilde demais, para tal missão. Como nos conhecemos estudando Isidoro de Sevilha e o reino visigótico de Toledo, não poderia ser outro o texto que agregaria a esta coletânea de autores para homenagear Ruy. Meu texto se denomina: “A ética e a concepção religiosa de Isidoro de Sevilha: o livro das Sentenças”. O artigo analisa a concepção de mundo isidoriana, na qual o mundo é um palco do confronto entre o bem e o mal, Deus e o diabo, chegando a se aproximar de um dualismo inaceitável para a Igreja. Nas palavras do autor, o artigo: “[…] pretende descrever e analisar a visão de mundo isidoriana, vista através do prisma da luta do Bem e do Mal, do confronto entre as boas ações e os pecados, que emana desta obra. A vida humana é o palco da luta das virtudes contra os vícios/pecados (De pugna virtutum adversus vitia). Tudo o que for prazer carnal, é definido como uma armadilha, uma tentação que leva o homem a cair nos braços do Diabo. Para vencer as tentações do Diabo e da carnalidade deve se elevar aos céus, a Deus”.

Ana Paula Tavares Magalhães

Sergio Alberto Feldman

Organizadores.

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Estabelecidos e outsiders no Ocidente tardo antigo e medieval / Ágora / 2016

Com muita satisfação apresento o dossiê “Estabelecidos e outsiders no mundo tardo antigo e medieval”, no qual nos propomos a homenagear o Dr. Celso Taveira que está se aposentando da Ufop, universidade com a qual temos relações especiais. A homenagem a este emérito professor, pesquisador e ser humano raro, deixei ao Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho (Unesp – Campus de Assis).

Proponho-me apresentar os textos recebidos e aprovados para o dossiê. Eles foram distribuídos de maneira cronológica: um texto de história antiga, que optamos por aceitar, mesmo que amplie o escopo da proposta inicial, por acharmos que enriqueceria nossos estudos com o mesmo; no recorte cronológico da Antiguidade Tardia temos oito (8) artigos; já no recorte cronológico do medievo temos seis (6) artigos, totalizando quinze (15) artigos.

O artigo localizado no período da Antiguidade é de autoria do Dr. Osvaldo Luiz Ribeiro (Faculdades Unidas – Vitória/ES) denominado “Yahweh como um deus outsider: duas hipóteses explicativas para a introdução do culto de Yahweh em Israel”, que analisa as fontes escritas e a cultura material e direciona a reflexão para a hipótese de que o deus de Israel e Judá seja um outsider, importado de povos vizinhos.

Antiguidade Tardia

O artigo que abre este período é de autoria do Dr. Ronaldo Amaral (UFSL – Sete Lagoas/MS) denominado “As raízes platônicas do Mal como princípio moral e antropológico no cristianismo da Antiguidade Tardia”, que analisa as concepções do mal no mundo tardo-antigo e a construção da presença do Diabo no mesmo período.

O segundo artigo é de dupla autoria, sendo escrito por Dra. Renata Rozental Sancovsky e sua doutoranda, Cristiane Vargas Guimarães (ambas da UFRRJ – Seropédia/ RJ), denominado “O estranho: a construção da marginalização judaica na narrativa de De fide catholica de Isidoro de Sevilha”. As autoras analisam a construção de um preconceito relativo ao judeu na obra isidoriana e direcionam a reflexão para o estabelecimento de um fenômeno de longa duração, que seria o antijudaísmo medieval e especificamente ibérico.

O terceiro artigo, de autoria de Dra. Raquel de Fátima Parmegiani (UFAL – Maceió/ AL), denominado “Jeronimo de Estridão: vida à margem?”, analisa a vida e a obra do exegeta e tradutor da Bíblia, enfocando os problemas desta tradução e as críticas desta no seu contexto e na posteridade.

O quarto artigo é de autoria de um recém-doutor, José Mário Gonçalves (Faculdades Unidas/Ufes – Vitória/ES), e intitula-se “O conflito entre católicos e donatistas no Sermo ad Caesariensis ecclesiae plebem de Agostinho de Hipona”. No texto, o autor analisa as relações entre o bispo Agostinho e os hereges donatistas no âmbito do Norte da África, no Baixo Império, sob o signo de intensa repressão imperial aos outsiders.

O quinto artigo, de autoria de um doutorando, Fabiano Souza Coelho (UFRJRJ), denominado “Testemunho de Agostinho e Jerônimo sobre as mulheres na Antiguidade Tardia a partir de missivas cristãs” analisa as representações do feminino na obra destes dois Padres da Igreja no período tardo-antigo e a influência destas percepções no medievo.

O sexto artigo, denominado “A celebração de um novo tempo: o ideal unitário na Crônica de João de Bíclaro”, é de autoria de um doutorando, Luís Eduardo Formentini (Ufes/PPGHis – Vitória/ES), o qual analisa a obra do Biclarense e enfoca os ideais de unidade entre a monarquia e a igreja no reino visigótico de Toledo, no período próximo ao III concílio de Toledo (589), sob o prisma deste clérigo e cronista.

O sétimo artigo é de autoria de uma mestra, Cynthia Valente (NEMED/UFPR – Curitiba/PR) e intiula-se “O judeu, outsider no reino visigodo de Toledo”. O texto aborda a construção da representação negativa do judeu no reino visigótico de Toledo, com um recorte no período que sucede o III concílio de Toledo (589), a partir de obras do episcopado e da legislação canônica ou monárquica.

O oitavo artigo, de autoria de um mestrando, Raphael Leite Reis (Ufes/PPGHis – Vitória/ES), denominado “O epistolário agostiniano e os concílios de Cartago e de Mileve (416 d.C.): uma polêmica sobre identidade e diferença, heresia e ortodoxia” analisa as relações de poder entre o cristianismo católico e uma das vertentes, definidas pelos “estabelecidos”, como heréticas: o pelagianismo em suas diversas manifestações no século VI.

Este conjunto traz uma diversidade de temas com ênfase nas relações entre estabelecidos, em especial a Igreja e outsiders, a saber, judeus, hereges, e outros.

Período medieval

Este conjunto traz seis artigos, também variados e multifacetados sobre as relações entre estabelecidos e outsiders no período medieval.

O primeiro artigo, de autoria da Dra. Ana Paula Tavares Magalhães (USP – São Paulo/SP), denominado “A ordem franciscana e a sociedade cristã: centro, periferia e controvérsia” analisa a transição da ordem franciscana, da condição de outsider e motivadora de crítica ao poder papal e pontifício, para ser inserida no sistema e se tornar estabelecida e defensora da hierarquia, da ortodoxia e do sistema.

O segundo artigo, de autoria da Dra. Adriana Zierer (UEMA – São Luís/MA) denominado “Religiosidade, perdição da alma e salvação na sociedade portuguesa medieval (séc. XIV-XVI)” analisa a lenta evolução dos conceitos de pecado, desvio e danação na sociedade medieval portuguesa e que herdamos através de nossas raízes portuguesas.

O terceiro artigo é de autoria da doutoranda Kellen Jacobsen Follador (Ufes/PPGHis – Vitória/ES) e intitula-se “Os judeus como a personificação do mal: a relação entre os judeus e os pecados capitais no medievo cristão”. Este artigo dialoga de maneira interessante com o segundo artigo, ao refletir sobre a forma que os estabelecidos, estigmatizam uma minoria, neste caso os judeus, espelhando nestes um amplo rol de pecados e catalisando uma imagem ou representação negativa destes na sociedade castelhana.

O quarto artigo, de autoria da doutoranda Ludmila Noeme Santos Portela (Ufes/ PPGHis – Vitória/ES), denominado “Estigma e tolerância: Afonso X e os judeus em Castela (séc. XIII)” analisa as relações de poder entre o monarca letrado e culto com a minoria judaica no reino de Leão e Castela, no período que seguiu as amplas conquistas de Fernando III e de seu filho e herdeiro Afonso X. Reflete, também, sobre as contradições da lei e da justiça, da necessidade dos judeus na administração do reino ampliado pelo avanço na Andaluzia, e a mescla de estigma e tolerância.

O quinto artigo, de autoria da mestranda Anny Barcelos Mazioli (Ufes/PPGHis – Vitória/ES), denominado “Corpo, sexo, pecado e condenação no baixo-medievo: o papel das confissões na efetivação do domínio clerical sobre a vida dos casados” reflete sobre o controle do corpo, do desejo e da sexualidade dos casados leigos pelo estamento clerical. Analisa as políticas de controle e repressão efetivadas sob o signo de que o sexo é permitido apenas entre os cônjuges, se tiver a intenção da reprodução.

O sexto e último artigo é de autoria do Dr. Sergio Alberto Feldman (Ufes/ PPGHis – Vitória/ES), coordenador e editor deste dossiê, denominado “Contaminação: a lenta construção do estigma judaico numa análise de longa duração”, que analisa a percepção dos judeus como uma minoria estigmatizada e que gera contaminação na sociedade majoritária cristã, através de uma reflexão de longa duração.

Sergio Alberto Feldman–  Organizador.

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