História e Futebol / Revista de História / 2010

Como o Brasil entra em campo Como o Brasil entra em campo

Fascínio. Excitação. Obsessão. Ilusão. O comportamento de milhões de homens e mulheres diante do futebol e das mais diversas modalidades lúdicas revela uma situação que beira o paradoxo. A rigor, o futebol não produz nada, opõe-se ao trabalho e é essencialmente estéril. No entanto, ocupa lugar privilegiado nas sociedades industriais, regidas pela ideologia do trabalho e da produtividade. Trata-se de uma inutilidade saborosa, manifestação da frivolidade humana disseminada em todas as classes sociais. Uma inebriante sedução vinculada a uma sociedade lúdica.

Como conjunto de símbolos, gestos e ritualizações, o futebol tornou-se uma linguagem compreensível em quase todas as partes do mundo contemporâneo. Pode ser identificado como uma criação humana que estabelece um universo temporário inserido no mundo habitual, com regras, tempos e espaços específicos: um verdadeiro microcosmo. Se de um lado provoca a suspensão temporária da rotina cotidiana, de outro se abre em janelas reveladoras das características e tensões de uma dada formação social num determinado momento histórico. Como ocorre com as festas, o futebol (e os jogos em geral) também estabelece relações de reiterações e negações da ordem social.

No interior desse complexo fenômeno, a economia de rivalidades simbólicas, a constituição de alteridades a serem enfrentadas estabelece-se pari passu às disputas simbólicas pelos significados do torcer no interior de um mesmo grupo identitário (isto é, de uma determinada torcida) e revela um conjunto variado de sociabilidades que se estabelece a partir do universo do futebol, que vive nele e fora dela. Nessa intricada dinâmica, muitas vezes salta aos olhos a questão da violência entre as torcidas, pertencente ao tema mais amplo da violência social, mas ritualizado no âmbito das disputas esportivas e da constituição das identidades clubísticas. Essa problemática da condição torcedora e seus meandros sociais, culturais e psicológicos tem sido preocupação de diversos estudos acadêmicos, alguns deles apresentados a seguir neste dossiê.

Na realidade, essas investigações têm apresentado um quadro temático bastante diversificado e extenso que provavelmente já indica a formação de um território historiográfico específico. Transcorridos pouco mais de vinte anos desde as primeiras investidas acadêmicas, as pesquisas sobre futebol no Brasil começam a ocupar lugar de destaque na lista dos temas mais visitados pelas ciências humanas. Não é exagerado afirmar que, nos dias de hoje, os pesquisadores, finalmente, aceitaram entrar em campo e encarar tais questões.

Um dos maiores desafios enfrentados pelos investigadores brasileiros ainda tem sido o de obter o reconhecimento da validade e da legitimidade de tais estudos. Tema fartamente utilizado como matéria-prima para o feitio de identidades e essencializações nacionais e visto como ingrediente do senso comum, o futebol constitui-se como um poderoso operador cultural, símbolo flutuante, dotado de determinadas ambivalências que precisam ser avaliadas e problematizadas pelos investigadores. E que, sobretudo, requer o cuidadoso exame de suas práticas historicamente circunstanciadas e analisadas no jogo de suas relações sociais.

Afastados da gangorra interpretativa impulsionada por frustrações e projeções de um pretenso caráter nacional, eles procuram pensar no futebol também como uma chave privilegiada para a compreensão da nossa sociedade e para desconstruir determinados estereótipos e idealizações insistentemente reiteradas. Nesse sentido, o Brasil não é “o país do futebol” mais do que Argentina, Inglaterra, Espanha e Itália, onde sua prática é também capaz de potencializar e expressar determinadas tensões sociais. O estilo brasileiro não se diferencia do “jogo duro dos gringos” por uma predisposição natural, uma prontidão coletiva, nem tampouco devido à sua miscigenação étnica. O drible – insulto gestual sem violência, criativo domínio da bola, do corpo, do tempo e do espaço para iludir o adversário – não é uma prerrogativa exclusiva da “genialidade brasileira”. A existência hoje de um “estilo brasileiro de jogar”, entendido como o manejo particular de um repertório de habilidades técnicas e táticas individuais e coletivas, deve ser posto em xeque devido à diversidade regional do país e ao embaralhamento provocado pela globalização. Ao mesmo tempo, ele indica uma forma muito singular do jogo que precisa ser compreendida nas suas especificidades diferenciadoras. Há uma dinâmica cultural própria que ainda precisa ser criticamente desvendada, fora dos limites da exaltação e das mitificações usuais, para compreendermos melhor nossa sociedade. Não é tarefa fácil, mas muitos investigadores têm participado dessa construção e este dossiê pretende ser mais uma colaboração nessa direção.

Assim, a partir das últimas décadas, aos atores sociais mais frequentemente identificados no campo esportivo futebolístico, como profissionais (jogadores, técnicos, preparadores físicos e dirigentes), especialistas (jornalistas, cronistas e memorialistas) e torcedores (organizados, uniformizados e vips), deve ser acrescentado agora um conjunto extenso de pesquisadores universitários. A organização de grupos de pesquisa, debates, seminários, encontros e simpósios têm permitido a circulação de reflexões, conhecimentos e práticas. Sem dúvida, do ponto de vista acadêmico, a convivência entre profissionais de formações diversas imprimiu um estimulante caráter transdisciplinar, como poderá ser observado no conjunto de textos que seguem.

Ainda que o quadro aponte para essa salutar interdisciplinaridade, o artigo que abre o dossiê, De alma lavada e coração pulsante, é escrito pelo historiador Bóris Fausto. Intelectual experimentado e com obra historiográfica reconhecida, já há algum tempo procura certa aproximação com a temática do futebol, seja de maneira incidental – como no universo da memória em Negócios e ócios (1997) – ou de forma mais manifesta, como em O crime do restaurante chinês. Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 (2009). Pois o texto que apresenta tem definição clara: discutir o universo do futebol na perspectiva do torcedor convicto – como ele é! – e não dos torcedores de circunstância. Sendo assim, ele transita pelas sinuosidades psicológicas desse sujeito, suas subjetividades e os conflitos que sua paixão produz. O texto cruza elementos da memória individual e da coletiva, com problematizações de caráter sociológico e historiográfico. Assim, ele funde, na linha do horizonte da interpretação, suas experiências pessoais – de torcedor e historiador – com reflexões que indicam caminhos e análises interpretativas.

A entrevista realizada com o economista Luiz Gonzaga Belluzzo de certo modo segue ritmo semelhante: a do intelectual reconhecido que revela sua condição torcedora, mas sem abrir mão do instrumental intelectual para refletir sobre o mundo da bola. No entanto, sua trajetória carrega uma singularidade mais vigorosa e intrigante, já que também presidiu importante clube paulistano: a Sociedade Esportiva Palmeiras (biênio 2009-2010). Desta maneira, seu depoimento mostra as tensões existentes entre o intelectual que tende “a agir mais racionalmente” e o torcedor que “age pela emoção” e por “atitudes irracionais”. Acontece que justamente essa condição torcedora o tornou presidente do clube que, por sua vez, o obriga a práticas administrativas racionalizadoras, mas, antiteticamente, impõe a defesa intransigente do seu time em todos os espaços (imprensa, federações etc.). Em meio a essas tensões e dilemas humanos, de resto quase impossíveis de superar, Belluzzo nos mostra também um pouco dos bastidores do universo clubístico e das relações políticas e interesses econômicos que envolvem o futebol nacional e internacional.

A questão torcedora também aparece, com outros enfoques e abordagens, em mais dois artigos: Torcer: a metafísica do homem comum, de Luiz Henrique de Toledo, e A babel do futebol: atletas interculturais e torcedores ultras, escrito por José Paulo Florenzano. Os autores, pesquisadores vindos da antropologia, área das ciências humanas que acolheu o tema de maneira precursora, têm o futebol desde sempre como objeto de suas investigações acadêmicas e das reflexões sobre as dinâmicas sociais. Florenzano realiza intricada articulação entre os processos abrangentes e globais do futebol, com as conjunturas e casos mais específicos. Assim ele mostra como o futebol contemporâneo impõe a circulação de atletas (no caso do artigo, os jogadores africanos) e como ela gera mitos raciais (da destreza simbólica dos jogadores negros) e práticas racistas de certas torcidas. O cenário em que transcorre a ação é formado pela conjuntura social e política polarizada da Itália do fim do século XX, associada ao futebol empresarial do calcio italiano e à formação das “torcidas ultra” com suas práticas violentas e racistas. Neste panorama tenso, ele discute como os jogadores africanos procuram superar as representações negativas e articular novos significados sociais para o jogo e suas vidas.

Toledo, por sua vez, faz uma análise com perfil histórico-antropológico, já que procura recuperar as principais etapas de formação e transformação da experiência torcedora ao longo do século XX. Ele revela como houve neste longo processo mudanças significativas da “socialidade torcedora”, desde a prática da “assistência” das massas dos anos 1930 / 40 na cidade de São Paulo, à formação das torcidas organizadas em meados do século, seguida de sua repressão e o aparecimento, nos anos 1990 do “torcedor individual” e “cliente”. Deste modo, ele mostra o caráter múltiplo e descontínuo dessa prática torcedora, impossível de ser enquadrada em caracterizações monolíticas e essencializações do tipotorcedor. Para o autor essas transformações determinaram alterações evidentes nas práticas mais plásticas das torcidas e nas experiências coletivas nos estádios, mas, sobretudo, repercutiram nas elaborações das “relações lúdicas” presentes no cotidiano urbano, foco central de suas análises.

As múltiplas relações entre o cotidiano urbano e o futebol são retomadas também do ponto de vista historiográfico por Plínio Labriola no artigo A luz do lampião e a cidade invadida. O eixo para discutir essas relações é a história do Sport Club Corinthians Paulista. No longo arco temporal centenário do time, o autor escolhe dois momentos chaves para reflexão: a fundação do clube de bairro em 1910 e a conhecida “invasão corintiana” do Maracanã em 1976. No primeiro recorte, são salientadas as origens populares do clube e sua gradativa identificação com a cidade de São Paulo, onde os torcedores aparecem nas suas especificidades, mobilizando-se nos espaços urbanos. Neste lento processo de construção, difusão e ampliação da torcida, o clube aparece como “o time do povo”. No segundo momento, a metáfora da “conquista urbana” se dá em outra dinâmica, que é a do “tempo curto” mais pontual e que cria intenso impacto: a invasão da cidade do Rio de Janeiro e do estádio do Maracanã. O autor apresenta o quadro multifacetado do episódio de 1976 e sua importância para a construção da memória do time e da suposta “alma corintiana”, indicando também a presença dos anseios reprimidos de uma liberdade que começava a ser reivindicada no país. Atento às armadilhas da memória instituída pelo marco da origem e do evento representativo, Labriola articula de modo crítico essas construções da rememoração.

As problemáticas da construção da memória do futebol e das “identidades” também estão presentes no artigo de Fábio Franzini, Da expectativa fremente à decepção amarga: o Brasil e a Copa do Mundo de 1950. Muitos intérpretes consideram esse evento como dos mais importantes da história do futebol brasileiro, incluídas as conquistas e vitórias posteriores. Por isso o autor revela com cuidado como ele foi projetado, desde a escolha da sede até sua condição para se tornar ato de consagração nacional. O resultado foi o conhecido fracasso, amargo e traumático do ponto de vista da memória coletiva, e tratado à época como revelador de certo traço de nossa singularidade que Nelson Rodrigues cunhou como “complexo de vira-lata”. Baseado em fontes documentais sólidas e diversificadas, Franzini reconstrói os processos políticos em torno do acontecimento, a participação da seleção brasileira de futebol e as tensões da memória, para discutir os dilemas da sociedade brasileira da década de 1950. Certamente por essa condição o evento é constantemente relembrado por memorialistas e jornalistas, tornou-se foco de dezenas de análises, críticas e interpretações, e até serviu de tema de romances e produções cinematográficas.

Embora alguns filmes abordem a derrota na Copa de 1950 (como o documentário Copa do Mundo de 1950, dirigido em 1950 por Milton Rodrigues e produzido por Mário Filho, ou o documentário-ficção Barbosa, dirigido por Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, de 1988, baseado na obra de Paulo Perdigão, Anatomia de uma derrota), o sociólogo Mauricio Murad em seu artigo, Futebol e cinema no Brasil: um enredo procura outros roteiros para discutir as relações entre o cinema e o futebol. Em primeiro lugar, ele identifica certa sintonia nas dinâmicas históricas e sociais dos dois fenômenos culturais (como chegaram ao país, os espaços sociais que ocupam, sua popularização) e o papel que ambos tiveram na formação de nosso ethos coletivo e nossa “modernidade”. Nesse sentido, traça paralelos entre a história da apropriação, popularização e ressignificação do futebol, com os ciclos da cinematografia nacional, desde o início do século XX passando pelos ciclos da Chanchada e do Cinema Novo. Mas sua questão central parece ser o alerta de que há muito filmes nacionais sobre o tema “mas ainda é muito pouco, considerando-se a importância sociológica e estética de nosso futebol e de nosso cinema”. Por isso ele conclui que “o futebol não se consolidou ainda como argumento para o cinema brasileiro” e, por extensão, “para todas as nossas expressões artísticas”.

Já o artigo A patrimonialização do futebol: notas sobre o Museu do Futebol, das antropólogas Clara Azevedo e Daniela Alfonsi, destaca como o fenômeno já está integrado ao imaginário da cultura nacional, a ponto de merecer um museu específico que reúne e consagra parte de sua memória. Mas além de pesquisadoras, elas são também diretoras do Museu do Futebol, inaugurado em 2008, e localizado no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Essa dupla condição permite que apresentem uma interessante radiografia do funcionamento da instituição, suas características integradoras e inovadoras. Além disso, discutem os dilemas em torno da seleção daquilo que pode e deve ser musealizado e preservado, os aspectos simbólicos desta dinâmica e até o comportamento dos visitantes e suas relações com o acervo exposto. Por fim, elas não se recusam a refletir sobre os desafios da patrimonialização de um fenômeno muito dinâmico que atravessa diferentes áreas da vida social do país.

Pois bem, é possível perceber por meio dos artigos que compõem esse dossiê, como o tema tem despertado uma série de reflexões e abordagens criativas. Mas é no artigo A produção das ciências humanas sobre futebol no Brasil: um panorama (1990-2009), escrito pelos pesquisadores Sérgio Giglio e Enrico Spaggiari, que verificamos empiricamente esse quadro de crescimento e diversificação da produção acadêmica. Os autores apresentam um panorama esclarecedor e muito bem informado, ao mesmo tempo abrangente e minucioso, a ponto de identificar e quantificar a produção em cada programa de pós-graduação. Já o quadro geral mostra que a maior parte dos trabalhos acadêmicos está concentrada no Sudeste, mais especificamente em São Paulo (32,86%), ecoando assim o cenário geral oblíquo da produção nos programas de pós-graduação existentes no país. Revela também que o período de inflexão se cristaliza por volta de 1998, quando ocorre evidente crescimento quantitativo de dissertações, teses e artigos, formando um grande arco temporal ascendente até 2008, quando aparentemente a produção se estabiliza. E, finalmente, mostra que, no quadro das ciências humanas, a história é superada apenas pelas ciências sociais (que, no entanto, inclui antropologia, sociologia e ciências políticas), revelando certamente a dinâmica das mudanças historiográfica em curso desde o início daquela década e o vivo interesse dos historiadores pelo tema.

As discussões apresentadas nas seções Ensaio bibliográfico e Resenhas ampliam e reforçam essa avaliação sugerida pelo artigo. O ensaio apresentado pelo historiador Hilário Franco Júnior – ele mesmo autor da importante obra A dança dos deuses. Futebol, sociedade, cultura – abre debate direto com o livro escrito por José Miguel Wisnik Veneno remédio. O futebol e o Brasil. O fato extraordinário e raro – mas que felizmente tem se tornado comum – é a presença de dois intelectuais da mesma geração, com sólida produção em suas carreiras específicas, que escrevem os livros no mesmo período e procuram compreender o país, cada um a seu modo, fazendo do futebol chave interpretativa para pensar nossa cultura. As resenhas dos livros seguem na mesma linha. Elas apresentam parte da produção acadêmica transformada em livro e também discutem os temas, opções teóricas e reflexões metodológicas de seus autores. Assim, apresentam um breve painel de obras que percorrem temas como as relações do futebol com o Estado brasileiro e as classes trabalhadoras; os bastidores da produção dos novos atletas no Brasil e exterior; o papel do discurso nacionalista na construção da ideia de um mítico futebol-arte; e as relações entre futebol e música, elementos importantes e repletos de estereótipos na formação de nossa “identidade nacional”.

Ao percorrer todos esses artigos e as reflexões que carregam, desejamos que ao final da leitura deste dossiê História e Futebol, o leitor tenha em seu horizonte tanto um atual “estado da arte” da produção acadêmica que envolve o futebol, como a notável possibilidade de temas, abordagens e discussões que ela apresenta na formação desse novo território do conhecimento. Marc Bloch disse certa vez, para indicar a satisfação que a investigação científica lhe proporcionava, que “pessoalmente, tão longe quanto me lembro, a história sempre me divertiu muito. Como todos os historiadores, eu penso”. Assim, esperamos que essa alegria apontada pelo historiador francês não se limite a esse componente muito humano sempre presente na “inebriante sedução” do futebol, e se transporte também às formas de conhecê-lo e desvendá-lo.

Flávio de Campos – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

José Geraldo Vinci de Moraes – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.


CAMPOS, Flávio de; MORAES, José Geraldo Vinci de. Apresentação [Como o Brasil entra em campo Como o Brasil entra em campo]. Revista de História, São Paulo, n. 163, 2010. Acessar publicação original [DR]

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