História Marítima e Portuária / Almanack / 2019

História Marítima e Portuária, temas propostos para este dossiê de Almanack, são ao mesmo tempo clássicos e pouco explorados. As perspectivas abertas pelos textos aqui reunidos indicam um longo caminho a percorrer a fim de adensar as temáticas e suas muitas abordagens possíveis.

A rigor, portos seriam os lugares modernos de movimentação de gentes e mercadorias, aparelhados com equipamentos mais sofisticados do que os simples atracadouros. Porém, tendo em vista que gentes e mercadorias circulavam desde antes de uma definição contemporânea calcada no desenvolvimento capitalista, acostumamo-nos a chamar de portos os lugares onde navios de diferentes tamanhos e procedências atracavam. Em torno dos portos desenvolveram-se especificidades urbanas, culturais e econômicas, fazendo com que as cidades portuárias tivessem e, ainda hoje, tenham características quase sempre resultantes de sua condição de elo de comunicação com sua hinterland, com lugares mais ou menos próximos, ou então com as rotas de longo curso que as ligavam ao mundo todo.

Ofícios, culturas profissionais, formas de organização, trânsito intenso, paisagens diversificadas, línguas e etnias diversas em convívio: tudo isso aproxima a história dos portos e das cidades portuárias. Fenômeno similar pode ser observado a bordo: também os navios são lugares sociais da diversidade e do movimento, embora o isolamento e as constantes tentativas de impor a disciplina em pleno mar tenham feito com que historiadores observassem a vida dos embarcados como um fenômeno semelhante ao que ocorria nos ambientes da prisão ou da fábrica.

Por isso, o diálogo entre História Portuária e História Marítima[5] é estimulante. Se a História Portuária vincula-se à terra firme, à economia e à sociedade, a História Marítima é seu espelho. Os homens não habitam o mar, ainda que tripulantes passassem boa parte de suas existências a bordo. A chegada em terra, para cumprir seus destinos e obrigações, sempre se dava em portos e impactava a sociedade local: os navios traziam mercadorias, demandavam abastecimento, portavam informações escritas e orais, introduziam epidemias, carregavam passageiros, podiam ser meios de fuga da justiça, de contrabando de bens, de invasão militar e de resistência.

Ao dizermos “homens”, estamos nos referindo à humanidade e também ao gênero masculino. Os trabalhos marítimos e portuários eram masculinos por excelência, muito embora as mulheres não estivessem totalmente afastadas do ambiente dos navios. Todavia, sua incorporação era, quase sempre, na condição de passageiras ou, no caso portuário, de familiares daqueles que embarcam e que viviam à espera. Portanto, a História Portuária e a História Marítima também comportam análises nas quais o gênero é uma categoria relevante, à espera do interesse dos historiadores.

Se a História Portuária dialoga mais fortemente com as histórias nacionais, a História Marítima pode distanciar-se dessa perspectiva. Na verdade, alguns autores têm proposto a superação das histórias imperiais e nacionais nos estudos de História Atlântica – e podemos ampliar suas preocupações para oceanos, mares e cursos d’água diversos. Os oceanos são espaços geográficos e ao mesmo tempo uma categoria. Com os Estados, os oceanos compartilham essas e outras características: ambos têm fronteiras definidas e seus sujeitos constroem lealdades políticas entre si e em relação aos poderes institucionais. Ao mesmo tempo em que sugere isso, David Armitage observa, nos Estados, fronteiras mutantes e “conjunções imperfeitas entre lealdades políticas e limites geográficos”. Os oceanos são obras da natureza, mas o uso desses espaços é histórico e sobre eles podemos nos debruçar como sobre qualquer outro objeto. O autor ainda indica uma cronologia para a História Atlântica, de Colombo à era das revoluções. Com espaço e tempo próprios, a História Marítima pode transcender a abordagem estrita (e eventualmente estreita) dos Estados nacionais para não ser reduzida a uma forma palatável de estudar os impérios marítimos. Em sintonia com Armitage, Bernard Bailyn pontua que uma história das gentes do / no mar não pode se traduzir na somatória das histórias dos povos que habita(va)m suas margens, se quisermos ir além do caráter imperial e nacional. É importante acrescentar que, se não é uma somatória, essa abordagem também não pode simplesmente deixar de lado a história dos povos da Europa, África e América, como eventualmente ocorre.

Muitas abordagens poderiam surgir a partir da conjunção entre História Portuária e História Marítima, inclusive uma visão integrada. Neste dossiê, os textos e seus autores compõe um inventário em andamento, que está a merecer uma ampliação e um fortalecimento do campo.

Os textos do dossiê lidam com o arco temporal situado entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do século XX. Todos eles referem-se ao Atlântico Médio e Sul – espaços que, no âmbito de uma historiografia atlântica, têm tido muito menos destaque. Historiadores do Brasil, da Argentina e da Espanha, reunidos na empreitada proposta pelos organizadores, falam, leem e escrevem em português e espanhol. As fontes produzidas nesses idiomas são nossa força para intervir no debate que, visivelmente, tem privilegiado o Atlântico Norte anglófono e francófono, transformado no parâmetro para estudos mais abrangentes.

Todo sumário é um pouco arbitrário, e nesta apresentação isso também pode ocorrer. Observamos, entre outras possibilidades de arranjo, três abordagens exemplificadas pelos textos do dossiê. A primeira, focada em historiografia e fontes da História Portuária e Marítima, está representada nos artigos de Cezar Honorato e Jaime Rodrigues. O primeiro nos brinda com sua ampla experiência ao construir um balanço sobre a historiografia de portos e cidades portuárias, com maior densidade para o caso emblemático do Rio de Janeiro, mas sem descuidar da produção sobre outros lugares do Brasil. Além de apontar as grandes linhas gerais pelas quais a historiografia dos portos vem se desenvolvendo há décadas, Honorato tem um amplo domínio dos estudos e dos núcleos mais ativos e relevantes de produção historiográfica sobre a temática portuária. Seu domínio do tema provém da longa experiência docente e da coordenação, em conjunto com Miguel Suarez Bosa, da Universidade de Las Palmas, do projeto “Puertos y Ciudades del Mundo Atlántico”, do qual participam pesquisadores de diversas partes do mundo. Por sua vez, Jaime Rodrigues explora preliminarmente o potencial dos registros de matrículas como fontes para a História Marítima na perspectiva da História Social e dos homens comuns que foram, eles também, construtores do império. Além de permitir um vislumbre da circulação das gentes livres e pobres entre a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas de século XIX, as fontes viabilizam estudos sobre cargos e funções a bordo; tempo de experiência e faixa etária dos embarcados; as eventuais possibilidades de ascensão profissional; a relação entre os tipos de navios, rotas marítimas e o tamanho das tripulações; e a variedade de lugares de origem, condição social e treinamento profissional dos marinheiros e oficiais.

A segunda abordagem contida nos textos do dossiê remete aos estudos de casos de portos. Alejandro González Morales e Antonio Ramón Ojeda trabalham com um espaço mais amplo – a chamada Macaronésia, composta pelos arquipélagos atlânticos incorporados ao território de suas antigas metrópoles, a saber: Açores, Madeira e Canárias. Sua condição insular é determinante para a existência de tantos portos e de tantas escalas feitas por embarcações de diferentes tipos em seus portos. A natureza como condicionamento é o ponto de partida do estudo que os autores nos apresentam sobre o desenvolvimento portuário desses arquipélagos, considerados em perspectiva comparativa.

Demografia e sociedade na região portuária do Rio de Janeiro são o objeto de Thiago Mantuano. Seu olhar para a cidade no século XIX se constrói desde as freguesias portuárias, sua dinâmica e evolução urbana. Com foco em espaços exíguos e de alta densidade demográfica, o autor os insere na região, no Brasil e no mundo por meio do porto carioca e de seu movimento. A riqueza que por ali circulou nos tempos em que a cidade era a capital do Império não impediu que a região portuária do Rio fosse, no decorrer no tempo, uma área de concentração da pobreza.

Mas não são apenas grandes volumes o sustentáculo dos portos. Flávio Gonçalves dos Santos vem, há anos, dedicando-se ao estudo de Ilhéus, na Bahia, e do impacto de seu porto na vida da cidade. O autor lida com temas como composição social e ocupações profissionais sendo transformadas em razão da atividade portuária. Todos os indícios interessam ao historiador e Santos deixa isso claro ao lidar, com desenvoltura, com fontes seriais e literatura de ficção para compor uma abordagem demográfica que não descuida da sociedade em processo de transformação.

Laila Brichta atravessa o Atlântico para focar um espaço colonial ainda pouco estudado entre nós: Moçâmedes no século XIX. O local vai ganhando importância entre os domínios portugueses na medida em que ali se viabilizam atividades comerciais com outros portos africanos e com a metrópole portuguesa. Diferentemente do que previam os planos de colonização, será na pesca e no comércio dos produtos dela derivados que se construirá a relevância dessa região ao sul de Angola.

Por fim, o dossiê traz uma perspectiva inescapável: a construção de circuitos atlânticos por meio da circulação de pessoas, da vigilância, da repressão e das ideias que, não fossem por esse caminho, não teriam se disseminado tão amplamente entre fins do XIX e início do XX. Três artigos foram dedicados a esse exame. Martín Albornoz e Diego Antonio Galeano dividem a autoria do estudo sobre anarquistas em pleno movimento pelo Atlântico Sul, sobretudo na rota que ligava o Rio de Janeiro a Montevidéu e Buenos Aires. Policiais, diplomatas e outros agentes da repressão ao anarquismo na América do Sul deixam claro que as fronteiras nacionais são, por vezes, limites que os historiadores criam para seu próprio conforto. Diante das estratégias internacionais de controle dos movimentos espaciais, os anarquistas foram capazes de construir suas próprias estratégias de proteção e escape por mar e nos portos do continente.

Álvaro Pereira do Nascimento revisita a história de João Cândido como personagem emblemática da vida marítima em um momento de transformações muito pronunciadas. O esforço não é simplesmente biográfico, mas sim o de entender Cândido como o guia para uma análise do impacto tecnológico na nova realidade, na qual a Armada continuava a recrutar um contingente amplo de homens negros e egressos da escravidão recém-extinta no Brasil. Cor, tecnologia, relações de trabalho e disputas ideológicas no novo regime são questões que Nascimento mobiliza e às quais dá um tratamento que raramente se vê em abordagens que não a da História Social por ele praticada.O dossiê encerra-se com o texto de Rodrigo Faustinoni Bonciani, que analisa um conto do brasileiro Machado de Assis e um romance do estadunidense James Weldon Johnson, expoente da Renascença do Harlem. Ambos os literatos são oriundos de sociedades escravistas e viveram o pós-abolição, expressando na literatura as repercussões da diáspora africana nas relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos. Bonciani concentra-se na virada dos séculos XIX e XX para interpretar diferentes abordagens existentes nos estudos sobre o Atlântico negro.

Poderia haver muito mais. O dossiê deixa claro que o campo é amplo e pode ser aumentado. Trouxemos para este número de Almanack abordagens diferentes que poucas vezes dialogam entre si. Evidenciamos possibilidades de estudos considerando fontes conhecidas e outras nem tanto. Analisamos os portos e o mar em diferentes períodos e perspectivas. Trouxemos para o palco a História Econômica, a História Social e os Estudos Culturais. Tudo isso ainda é pouco, o que não nos desanima: portos e mares são objetos sedutores e continuarão a sê-lo para as gerações de estudiosos que virão.

Nota

5. LINEBAUGH, Peter. “Todas as montanhas atlânticas estremeceram”. Revista Brasileira de História,6: 7-46, set. 1983.

Referências

LINEBAUGH, Peter. “Todas as montanhas atlânticas estremeceram”. Revista Brasileira de História, 6: 7-46, set.1983. [ Links ]

Jaime Rodrigues – Professor na Unifesp e doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). http: / / orcid.org / 0000-0002-9893-7365

Flávio Gonçalves dos Santos – Professor na Uesc e doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). http: / / orcid.org / 0000-0003-4241-8870


RODRIGUES, Jaime; SANTOS, Flávio Gonçalves dos. História marítima e portuária em revista. Almanack, Guarulhos, n.21, jan / abr., 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê