História, Racismo e Religiosidades Negras / Crítica Histórica / 2012

O sexto número da revista Crítica Histórica participa organicamente das reflexões no ano de 2012 sobre “História, Racismo e Religiosidades Negras”, apresentadas durante o IV Encontro Nacional de História, promovido pelos Cursos de Bacharelado e Licenciatura em História da UFAL, ocorrido em outubro último. Tais reflexões e debates possuem uma importância estratégica de levar para a academia as discussões dos problemas e avanços de uma série de lutas específicas da população negra brasileira, por direitos plenos de cidadania. Principalmente, no âmbito da história local de Alagoas. Ao rememorar criticamente o evento conhecido como Quebra de Xangô, ocorrido em 1912, no Estado, está-se estabelecendo uma análise dos processos históricos que verificam as continuidades e mudanças das condições de vida material e cultural na sociedade brasileira e alagoana. Neste caso, este dossiê, mas também as comunicações apresentadas nos Grupos de Trabalho, durante o evento, confirmam o aumento da produção historiográfica sobre as relações étnico-raciais, a história da cultura negra, dos movimentos de emancipação, da atuação dos sujeitos históricos em processos variados ao longo da história nacional, dos problemas em torno da educação étnico-racial; além, das graves dificuldades que as religiões afro-brasileiras ou de matriz africana, enfrentaram e enfrentam em todo o território nacional. De fato, o que se percebe no âmbito desta nova produção, é a tentativa de trabalhar de modo inter e multidisciplinar a complexidade do campo social e cultural afro-brasileiro. Pode-se afirmar, por outro lado, que na última década a área de História adentrou de modo mais sistemático nos estudos sobre o negro no Brasil, buscando a superação das teorias racistas e racialistas que permearam por muito tempo certas interpretações sobre a identidade brasileira.

Os artigos apresentados neste número expressam, portanto, elementos dessa nova realidade da historiografia e dos estudos multidisciplinares, ao trazer resultados parciais ou totais de pesquisas sobre a temática em diferentes locais e temporalidades. O primeiro texto do dossiê, “Auto-Afirmação e Valorização como Perspectivas Projetivas para as Religiões Afro-brasileiras” de Irineia Maria Franco dos Santos abre com uma breve discussão sobre o processo histórico de valorização da etnocultura negra, dado especialmente no ambiente das comunidades-terreiros no período contemporâneo. Tal processo apresenta-se articulado com outros movimentos de emancipação da população negra em África e na Diáspora. O aspecto da auto-afirmação e da atuação dos sujeitos históricos negros é também perceptível nos artigos seguintes. Em “Trabalho, Política e Distinção Social em Três Organizações com Gente Preta e Parda: Recife, década de 1840”, Marcelo Mac Cord discute o processo das “estratégias políticas e sociais de determinados grupos de homens pretos e pardos, indivíduos livres e libertos, que estavam organizados em duas irmandades religiosas e em uma mutualista”. Para Mac Cord, essas “três entidades permitiram a construção de solidariedades vinculadas ao mundo do trabalho”. O que nos permite inferir a diversidade de estratégias de superação da discriminação no século XIX. Também o artigo de Solange Pereira da Rocha, “Cardoso Vieira, um Homem Negro na Composição das Elites da Paraíba Oitocentista: Biografia, Memória e História”, têm-se outra perspectiva dessas estratégias, ao utilizar os estudos biográficos na análise da atuação de Cardoso Vieira na sociedade paraibana. Interessa para Rocha entender “como um homem negro integrante das elites imperiais e também um sujeito multifacetado e controverso que teve uma trajetória de vida marcante na complexa sociedade escravista no final do Império brasileiro”. Já Ulisses Neves Rafael, no artigo ““Mulheres de Vida Livre” e “Feiticeiras” na Imprensa Alagoana: Representações Acerca da Participação Feminina na Vida Social no Começo do Século XX”, realiza “uma reflexão acerca das representações das mulheres negras em Alagoas a partir de documentação histórica, mais especificamente, dos jornais publicados no Estado entre os anos de 1900 e 1912, período este, escolhido por se tratar de um dos mais sintomáticos da história alagoana, o qual ficou conhecido como “Era dos Maltas” e que coincide com um dos momentos mais violentos de que foram vítimas as casas de culto religioso de natureza afro-brasileira e que ali convencionou-se chamar de xangô”. A importância da discussão de Rafael, além de auxiliar na construção de uma teoria explicativa sobre a formação e experiência das religiões negras em Alagoas, oferece também um estudo multidisciplinar em que História e Antropologia são utilizadas de modo exemplar. Mantendo o espírito integrado dos estudos sociais, o artigo no original em inglês, “Diaspora Africa-Brazil & Space of Candomblé: Some References” do geógrafo Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, aborda “aspectos historiográficos e geográficos da formação, distribuição e resistências no espaço e da população de ancestralidade na África do território brasileiro”. Os mapas e dados trazidos pelo especialista proporcionam novos olhares para a discussão da presença das comunidades-terreiros nos espaços urbanos. Também compõem este dossiê, a seção Documentação que, especialmente, traz neste número o roteiro do importante documentário “1912: o Quebra de Xangô”, produzido pelo antropólogo Siloé Amorim. Ao disponibilizar para os estudantes e pesquisadores este roteiro, Amorim possibilita a análise de uma tipologia pouco utilizada como fonte histórica, mas que é fundamental para a fortificação do campo de estudos interdisciplinares, nos debates a respeito da memória e de sua construção ao longo da história. Como afirmado, em outros momentos, o chamado “Quebra de Xangô” marcou profundamente as transformações históricas para as religiões e a cultura negra em Alagoas. Construir análises e diferentes elementos para a pesquisa social deste evento e de outros fomenta aquele objetivo geral apontado, qual seja, o de auxiliar na construção de uma historiografia nacional antirracista, o que contribuirá para a educação étnico-racial e para o fim da intolerância em diferentes níveis.

Para a seção de artigos do fluxo contínuo, o sexto número da Crítica Histórica contribui ao democratizar o acesso à produção historiográfica em temáticas variadas cobrindo uma temporalidade que vai do século XVIII ao XX, em diferentes espaços no território nacional. O artigo de Izabella Fátima Oliveira de Sales “Economia das armas no Termo de Mariana: 1713- 1736” discute “parte da dinâmica de distribuição das armas no termo de Mariana, utilizando como base a análise de 145 inventários existentes no Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, referentes ao período compreendido entre os anos de 1713 e 1736”. A autora ao utilizar essas fontes buscou “mensurar a distribuição das armas entre as freguesias que compunham o Termo de Mariana, se havia uma concentração desses armamentos sob o poder de uma determinada camada da população, o valor apresentado por esses instrumentos, a relação entre a posse de armas e o nível de riqueza e também em relação ao número de escravos”. Em “Hugh Wilson: um capitalista britânico na Bahia oitocentista”, Marcos Guedes Vaz Sampaio e Felipe Amorim Campos pretendem discutir a participação inglesa no setor de transporte da Bahia do século XIX, destacando a atuação do engenheiro e capitalista Hugh Wilson. Fecha a seção, a discussão teórico-metodológica de Nathaniél Dal Moro no artigo “Os Memorialistas e a Edificação de um Passado Glorioso”, na qual faz uma reflexão sobre a utilização, por parte dos historiadores, das fontes memorialistas, em especial aquelas que constituem parte da documentação da história do Mato Grosso.

Ainda encerram este número as resenhas de Rafael Pereira da Silva sobre o livro de Russel Jacoby, Os últimos intelectuais: a cultura americana na era da academia, editado pela: Edusp em 1990. E a de André Mendes Salles sobre o livro Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai de Francisco Doratioto, editado pela Companhia das Letras em 2002.

Aproveitamos para agradecer mais uma vez a todos os participantes do IV Encontro Nacional de História, palestrantes, comunicadores, ouvintes, monitores, participantes enfim que fizeram as contribuições excelentes para o sucesso do evento. Estamos convencidos de que a História se constrói num processo coletivo de trocas de informações, debates e reflexões que encaminham (ou busca encaminhar) proposições críticas sobre o passado, o presente e o futuro da sociedade humana. Que nossas contribuições possam fazer parte, mesmo que modestamente, deste processo amplo e democrático.

Irinéia Maria Franco dos Santos – Coordenadora do Dossiê


SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 3, n. 6, dezembro, 2012. Acessar publicação original [DR]

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