40 anos de independência em África / Estudos Ibero-Americanos / 2016

Quatro décadas de independência: da cartilha ideológica às contingências políticas e sociais nos PALOP

Em nosso texto de chamada de artigos para esse dossiê [1] destacamos o fato de que, decorridos 40 anos das independências de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, estes países enfrentaram profundas mudanças em seus regimes políticos, assumindo colorações ideológicas diversas, quando não antagónicas, e uma acelerada e, em alguma medida, imprevisível, transformação social. Por tudo isso, tais países assumem hoje perfis muito diferentes das sociedades colonizadas de outrora, mas também dos ideais de dirigentes nacionalistas e, ainda, das análises de vários estudiosos que se lançaram a interpretar as dinâmicas dos processos independentistas.

Mais do que um balanço exaustivo da vida política desses países ao longo dos quatro decénios de independência, os textos a seguir propõem posicionamentos e perspectivas diversas quanto à observação de suas múltiplas vivências. Reflexões sobre as trajetórias políticas, económicas, sociais e culturais, mas também acerca do saber histórico elaborado em relação a estes países.

Ainda assim, apesar dos olhares diversos presentes no dossiê, alguns temas serão recorrentes, mesmo que nem sempre explicitados, dadas as abordagens originais e singulares. Exatamente por isso acreditamos ser importante destacar alguns deles e estabelecer um diálogo inicial, com questionamentos e aproximações que podem ajudar o leitor a perspectivar novas abordagens e a refletir a partir de ângulos que o tempo e o processo histórico sugerem ou permitem. Dessa forma, nossa proposta é a de nos debruçarmos, nesse momento inicial, em três temas que atravessam a maior parte das discussões que serão travadas a seguir. São eles o nacionalismo, o Estado e o socialismo.

O nacionalismo, no caso dos países contemplados nesse dossiê, tem dois momentos: o da luta de libertação nacional e o da sua concretização em políticas atinentes à construção das entidades políticas. É sobre este segundo momento que os textos a seguir irão se deter. De fato, o caminho da vinculação entre a edificação da nação e a construção do Estado foi trilhado demasiadas vezes. E é preciso ter atenção a essa postura de sobreposição. Embora a construção do Estado possa albergar um forte nacionalismo, em determinadas circunstâncias, o nacionalismo ou estratégias políticas também nacionalistas podem assumir posições de confronto em relação ao Estado em questão. Portanto, não devemos confundir o processo de construção do Estado com o forjar de uma identidade nacional, política e cultural entre populações amiúde heterogéneas [2].

Por outro lado, passados 40 anos das independências é possível admitir que alguns elementos centrais da ideologia do Estado colonial passaram para o seu sucessor [3], como é o caso das prerrogativas de mando dos europeus, presumidamente superiores porque portadores de uma qualquer ideia de ‘civilização’, e que foram transferidas para os africanos letrados da geração nacionalista, a quem – pela vitória das armas, quando foi o caso, ou pela ausência de concorrentes ou fragilidades desses – coube governar os seus concidadãos iletrados.

A vitória na guerra, ou na diplomacia, resultou numa ocupação do espaço político, que passou a ser definida por seus detentores como o equivalente da legitimação popular aos movimentos independentistas. O acesso ao poder ficou resolvido mas, apesar da reivindicada liderança política e da (arrogada e, ao tempo, pouco questionada) consonância de objetivos com o povo, o mesmo não sucedeu com a representatividade política e social, sobretudo com o passar do tempo e o fim da alegria prenhe de esperança que as independências inauguraram. Os anos subsequentes às independências alargaram o fosso entre as intenções políticas e as percepções populares acerca da sua segurança, dos seus sonhos e até mesmo da sua sobrevivência.

Uma vez decretada a adopção do socialismo, este, rapidamente, se traduziu num rebaixamento das expectativas e na aplicação voluntarista de preceitos inadequados às diversidades sociais existentes. Não se verificou um processo de construção de novos horizontes, mas, sim, a imposição de metas e normas concebidas nos distantes gabinetes governamentais. A antevisão ou a intuição da possibilidade do fracasso estiveram presentes desde o início, como confirmam as fissuras nos partidos únicos e os malabarismos intelectuais, tentando teorizações sobre transições políticas heterodoxas, a fim de dar conta do socialismo africano.

Não por acaso, todo o esquema interpretativo da luta de classes subjacente à luta contra a opressão colonial foi abandonado. Não se considerou mais existir nem a desigualdade nem a divergência ou a colisão de interesses, em razão da nova determinação quanto a uma suposta homogeneidade social. Só o estrangulamento da expressão da dissenção pela ampliação do único partido auxilia no entendimento do baixo volume do descontentamento por mais de uma década nas zonas territoriais sobre o alcance dos governos. Vale lembrar que Angola e Moçambique enfrentariam ainda uma prolongada guerra civil, que apesar de ser uma demonstração da insatisfação interna, precisa ser compeendida também, e de forma incontornável, como fruto da lógica perversa da Guerra Fria.

Porventura, apenas se preservou, mesmo que formalmente, a ideia do suicídio da pequena burguesia – implicitamente tida como aliada do Estado colonial – que deveria renascer pela adesão aos fins do povo. Tal tese, conveniente para a tomada do Estado, articulava-se a ideia de desenvolvimento económico e a necessária transformação sociocultural. Porém, o Estado logo passou a estar sujeito à discricionariedade dos mandantes. Assim, e de modo ambíguo, a pequena burguesia citadina, mais próxima ao Estado e respectivas ramificações, acabou beneficiada em detrimento dos camponeses a quem supostamente se destinava a revolução – em grande medida, mesmo se forçadamente, os obreiros das lutas. Numa síntese simplista, prevaleceram as alianças dos partidos históricos da libertação com os quadros urbanos necessários para a gestão de um Estado.

Para assegurar a unidade nacional fortaleceu-se a figura do povo, assim mesmo, no singular, atropelando os particularismos, transformados em demandas regionalistas ou étnicas [4], quando não, obscurantistas. Desejos, vivências, ritos e línguas anteriormente cantadas em verso como africanas e, por isso, anticoloniais e libertárias, passaram a ser exemplos de posturas tribais, antinacionalistas. Previsivelmente, cerceava-se o espaço para se discutir sobre qual nacional se estava falando.

Os movimentos triunfantes enjeitaram as clivagens étnicas. Mas esta rejeição – alavancada na retórica e nos propósitos socialistas – não equivaleu à supressão de fronteiras internas, por vezes, claramente percebidas como tal por segmentos de governados. Na Guiné Bissau, por exemplo, a indicação de juízes para sectores com os quais não tinham nenhuma relação podia corresponder a uma salutar tentativa de homogeneidade e equidade por parte do novo Estado. No entanto, não deixava de ser entendida como intrusiva e fonte de arbitrariedade por aqueles a quem o juiz se dirigia.

Os princípios do “socialismo científico”, como era pregado nos Palops, eram estranhos para as populações rurais, a esmagadora maioria da população dos novos países, e, por isso mesmo, seu coletivismo e sua forma impositiva e centralizada quanto à distribuição dos produtos lembravam tanto a arregimentação quanto a violência do tempo colonial. A adesão aos projetos e aos planos de produção agrícola seria pequena. Em resposta, o caminho mais fácil para os dirigentes era o de acusarem os camponeses de serem reacionários.

Por outro lado, a política de viés urbano e nacionalista, assim como o socialismo, não eram de todo estranhos aos jovens das gerações citadinas, com acesso ao pequeno crescimento da educação formal na última fase colonial. Sobretudo, se tivermos em consideração que alguns desses jovens passaram por um período de intensa agitação política a partir do 25 de abril. Travaram contato com algumas correntes e tendências políticas, quase sempre de orientação socialista, apresentadas até mesmo pelas forças militares portuguesas que se preparavam para regressar a Portugal. Essa efervescência prolongou-se, pelo menos até que se proclamasse a independência, quando, então, os horizontes políticos começam a se reduzir rapidamente.

É preciso referir ainda que apesar das independências dos Cinco terem ocorrido mais de uma década após a grande onda de 1960, quando 18 países africanos ficaram independentes, a lógica política permanecia polarizada entre socialistas e capitalistas. Mais do que isso, apesar das evidências quanto à crescente distância entre discurso político e prática política, o contexto de enfrentamento presente no continente não favoreceu o surgimento de sinais de alerta acerca de possíveis correções de rota. Os regimes africanos, que não só os dos Palops, aspiravam ao desenvolvimento e afirmavam que esse seria alcançado pela mão forte do Estado, conduzido pelo partido único, fosse qual fosse a linha ideológica. Noutros termos, a ênfase no Estado não foi um atributo dos que se apresentavam como socialistas.

Em especial na década de 80, os erros internos e as alterações na arquitetura das trocas comerciais internacionais foram minguando sonhos e capacidades. Os Estados não conseguiam mais dar conta das necessidades elementares de seus cidadãos. Nos anos 90, a crise política e econômica desses países resultaria numa maior liberdade para os indivíduos, primeiro, insinuada e, depois, confirmada com a institucionalização de eleições regulares, ainda que não em todos os níveis, mais do que com uma observância estrita do Estado de direito democrático.

Ora, o processo de institucionalização da democracia representativa aprofundou a apartação dos Estados, apropriados por pequenos grupos, relativamente às sociedades. Dessa forma, a relação entre governantes e governados, mediada pelo Estado, tornou-se rala, quando observada na lógica da representação e da imagem de defensores eleitos para a defesa de determinadas práticas e ideias. Mas, ao mesmo tempo, é esse Estado o ente que divulga, mais do que promove, o sentimento de unidade e é ele que concentra o principal da renda nacional. Podemos assim melhor entender o disperso sentimento na população de raiva e atração em relação a esse Estado e aos políticos que se assenhorearam dele.

Como persuasivamente o demonstrou Messiant [5], o curso da política em Angola pautou-se pela construção de um Estado que, graças às rendas do petróleo, logrou sobreviver independentemente da falência ou precarização da restante economia e do empobrecimento social. Mais do que a ideologia socialista depreciadora de idiossincrasias culturais, ditas tribalistas e étnicas, foi a extrema concentração de poder escorada nessas rendas e justificada pelo conflito militar, que fez com que o MPLA não se pautasse pela clivagem étnica, apontada de forma simplista por alguns estudiosos como estando na origem das divergências entre as correntes nacionalistas antes da independência e da guerra civil que lhe sucedeu. De resto, finda esta guerra em 2002, as eleições não comprovaram a existência de uma fidelidade étnica, ao invés, tenderam, a atenuar a respectiva importância [6]. A descompressão política e social e o desafogo dos réditos do petróleo levaram a amplas vitórias eleitorais do MPLA, concretamente nas eleições de 2008.

Na esteira de outras análises sobre a atomização dos indivíduos e da dificuldade de afirmação da sociedade civil, pressionados pelo poder político [7], o texto de Nuno Vidal foca-se na rigidez e na relação hierárquica que parecem fazer parte da estrutura de poder construída pelo MPLA, independentemente dos oportunos e inteligentes enunciados do partido quanto a uma necessária humildade no reconhecimento dos erros, sempre mirando com tal estratégia futuras vitórias eleitorais [8].

A coberto do centralismo democrático, a consolidação e a centralização do poder nas figuras dos dois presidentes – Agostinho Neto e Eduardo dos Santos – cingiram os procedimentos decisórios a um núcleo assaz restrito, no qual, todavia, se evidenciou uma tensão entre duas perspectivas sobre as opções políticas para o país. Desde praticamente os primórdios da independência, ao mesmo tempo que se proclamavam os objectivos socialistas, abdicava-se de tais políticas, abrindo-se espaço à informalidade que se tornaria a norma das práticas não só dos diversos actores sociais como dos agentes públicos, corroendo decisiva e definitivamente o ideário socialista. Poucos anos após a independência, já a ambiguidade se tornava corriqueira.

O caminho foi o da construção de um poder personalizado, baseado, entre outras práticas, na exemplar punição dos agravos à figura do Chefe, como é mister num sistema hegemonizado pela racionalidade patrimonial, como assinala VIDAL.

Com o apoio involuntário da ameaça externa e da guerra movida pela UNITA, assistiu-se a uma trajectória de crescendo de poder de Eduardo dos Santos. Em diferentes fases, o acúmulo de poder pela sua pessoa passou pela submissão dos próximos do MPLA – que se digladiavam entre si em nome de lemas ideológicos que o tempo tornaria irrelevantes para o devir da hegemonia política em Angola –, pela cooptação de dissidentes e adversários e, ainda, pelo “apertado controle [d]os novos espaços de liberdades civis e políticas” formalmente criados nos anos 90.

Para os defraudados com os trilhos dos países por cuja independência lutaram ou a que aderiram de forma exaltada, quatro décadas, que correspondem a uma vida, são mais do que suficientes para um balanço.

Relativamente a Moçambique, considerando o lapso temporal desde 1975 como suficiente para uma avaliação do caminho percorrido e tendo presentes as promessas da luta pela independência, Sheila KHAN pergunta acerca da concretização das esperanças, começando pela conclusão de que o país se traiu a si mesmo, citando os que perguntam se quem traiu a nação não foram aqueles que por ela lutaram.

Não só as promessas de equidade e de progresso não se realizaram como o país esteve sujeito a uma atroz guerra civil, cujo espectro ressurgiu ao cabo de cerca de 20 anos para, em 2014, parecer ser arredado e de novo aflorar em 2015.

Neste ambiente, ao mesmo tempo que se cultiva a memória da heroicidade no tempo da luta contra o colonialismo [9], os silêncios sobre a guerra civil são ainda pesados e muito mais facilmente se fala do recurso às armas do que das soluções para se lhes colocar um termo. Refira-se, as hostilidades parecerão à Renamo a única forma de se fazer ouvir e, em última análise, à Frelimo um meio de se manter no poder. A avaliar pelos episódios bélicos desde 2013, dir-se-ia que ambos pretendem ou só aceitam negociar em função da avaliação das vantagens da situação militar.

A propósito das actuais negociações para sanar o conflito entre a Frelimo e a Renamo [10], Sheila KHAN refere a incapacidade que a Frelimo tem demonstrado no tocante ao processo de descentralização do poder [11] e, em especial, à governação das províncias, com isso criando obstáculos à integração política da Renamo e avolumando as tensões políticas e sociais.

Dir-se-á que nenhuma democracia pode brotar destes expedientes tácticos. De resto, é possível pensar numa democracia de que um dos integrantes é a guerra intermitente ou de baixa intensidade, em todo o caso, de intensidade bastante para transmitir insegurança e levar as pessoas a escolher, não programas políticos, mas os chefes mais poderosos, de quem esperam protecção e auxílio?

Se quatro décadas bastam para um balanço, então, para as conclusões a retirar do caso de Moçambique, importa pensar que o povo mudou e que para parte significativa desse povo o ideário nacionalista ou os pergaminhos da luta não dizem nada. Já no campo dos governantes, pouco mudou, por vezes só a retórica com que se justificam no poder, o qual tendencialmente opera à margem dos mecanismos institucionais de tomada de decisão, mormente, os da democracia representativa adoptada na década de 1990.

Relativamente a Cabo Verde, Cláudio FURTADO revê as quatro décadas desde a independência da perspectiva da disputa pela imposição de um sentido para a história recente do arquipélago, sentido a inscrever numa memória histórica nacional. Aludir a essa disputa pelo triunfo na imposição de um sentido para a história de Cabo Verde corresponde, afinal de contas, a uma outra forma de falar das divergências em torno da independência, desdobradas seja na incomum mudança da bandeira, seja na pugna pela regionalização reivindicada pela ilha de S. Vicente, ilha que, após 1975, perdeu protagonismo para o centralismo da capital. Em parte, as divergências do momento da independência ficaram por resolver até ao presente.

A independência de Cabo Verde acabou por ser negociada com o PAIGC, tendo as outras organizações sido preteridas em vista da sintonia entre o Movimento das Forças Armadas e o PAIGC, em parte resultante da conjuntura e do reconhecimento internacional do PAIGC.

De resto, independentemente do acordo de Lisboa em 1974 não prever a transferência do poder para o PAIGC, preconizando, antes, a preparação as eleições para o futuro parlamento cabo-verdiano, com poderes constituintes e a quem incumbiria a declaração da independência de Cabo Verde, dificilmente se poderá pensar que não estivesse no horizonte das partes signatárias a assunção do poder pelo PAIGC, considerada inevitável mas para a qual, a dado passo, também o MFA contribuiu.

Ainda assim, no dizer de Cláudio FURTADO, desde a revolução de Abril em 25 de Abril de 1974 à independência, em 5 de Julho de 1975, assistiu-se a intensa movimentação política, a disputas por hegemonia de projetos políticos e de sociedade. Cumpre dizê-lo, tal não era o desígnio do PAIGC, como, aliás, não era de nenhum dos movimentos de libertação das colónias portuguesas. Anos de guerra e a conjuntura internacional, com eco num Portugal exaurido pela guerra colonial, ditaram a edificação de regimes monolíticos como o modelo mais apropriado para a reconstrução política e social nos Cinco. Seus dirigentes quiseram crer que tal processo seria diverso do histórico de conflitos e tensões que atravessara o continente desde as independências.

Nem o tendencial monolitismo sobrevindo à independência, nem os progressos económicos e sociais fizeram calar as diferenças, as divergências e a multiplicidade de visões de mundo e de projetos políticos para a sociedade cabo-verdiana. FURTADO elenca o affair trotskismo, a progressiva dissonância do monolitismo do regime entre a diáspora, a disputa geracional em finais da década de 1980 que, por efeito da conjuntura internacional pautada pelo desabamento a Leste, levou a que Cabo Verde enveredasse pela implementação da democracia representativa [12], depois generalizada pelo continente africano. No caso de Cabo Verde, a democracia inaugurou-se com a emergência do debate em torno da configuração política do arquipélago, debate que a hegemonia do PAIGC cerceara em 1975.

Dos Cinco, Cabo Verde era o país potencialmente mais pobre, razão, aliás, para que, entre camadas populares e mais vulneráveis de Cabo Verde, grassar a ideia de que a independência constituía um risco desnecessário, atenta, ademais, a disposição do colonizador em não deixar voltar a repetirem-se as tragédias das fomes dos anos 40. A tal pessimismo de parte da população, a elite política impôs a sua certeza voluntarista no desenvolvimento que, alcançável com a independência, vergaria a pobreza crónica. Na realidade, as apreciações sobre Cabo Verde padeciam de um erro, a saber, o de não considerar o avanço que o arquipélago levava no domínio da instrução e do que, vagamente, se definiria como um substrato cultural sedimentado por décadas de emigração pelas várias partes do mundo. Tenha sido, ou não, por causa da criteriosa aplicação dos recursos ditada pela pobreza, a verdade é que Cabo Verde alcançou indicadores impensáveis ao tempo da independência. Menos por via da evolução política do que pelo curso dos debates parecerá que a independência está em causa. Ou, segundo Cláudio FURTADO, pelo menos o seu questionamento estaria subjacente aos dilemas cultural-identitários [13] que, no plano político, constituem os desafios para o presente e o futuro de Cabo Verde.

O texto de Victor MELO fala-nos de realizações do pós-independência num domínio menos conhecido, o do desporto, encarado como manifestação cultural na qual se espelha o percurso do país. Ele foca o caso do golfe que, levado para a ilha de São Vicente por ingleses, aí se pratica até aos dias de hoje, depois de um processo de adopção e de apropriação pelos nativos. Como foi encarado o golfe, desporto de contornos elitistas, pelos dirigentes do PAIGC? Na resposta a esta questão inscrevia-se a aplicação do projecto político do PAIGC e, ainda que de forma subliminar, o confronto entre uma nova capital política e uma ilha considerada avessa aos propósitos de homogeneização social do PAIGC triunfante em Cabo Verde em 1974-1975.

A despeito do monolitismo ideológico e do consequente viés classista à luz do qual se encaravam as manifestações desportivas, as mudanças na política desportiva começaram ainda na vigência do partido único, no início da década de 1980, e, como assinala Victor MELO, elas prenunciavam a renúncia à modelação ideológica pelos dirigentes de todas as vertentes socioculturais e de todas as solidariedades horizontais no arquipélago. Basicamente, tal mudança consistia em deixar renascer o golfe, na esteira do que, argumentando com o enraizamento popular da modalidade, os defensores da modalidade ensaiavam dignificá-la, considerando o golfe como uma prática de afirmação do cabo-verdiano forçosamente contra o colonizador. Deste modo, e ainda que de forma circunscrita, relativizavam-se os feitos na guerra na Guiné-Bissau.

A implementação da democracia representativa trouxe maior abertura para o mundo e, associada à maior liberdade de expressão e de identificação com referentes do mundo – sobretudo, clubes do país outrora colonizador – acarretou debates sobre o enraizamento da identidade cabo-verdiana. Diferentemente do futebol, o golfe, mormente na ilha de S. Vicente, seria o campo de afirmação de um desporto local, cabo-verdiano, contra uma projectada alienação de bens ao capital estrangeiro. Tal seria um item de uma discussão mais vasta sobre o lugar do turismo no desenvolvimento e, afinal, de inserção do país no fluxo de capitais e na circulação de pessoas.

Não por acaso, cabo-verdianos de diferentes quadrantes perfilharão a necessidade de inserção do país no mundo pelo que tem de mais singular, a sua vertente cultural, que, como nos diz MELO, constitui “uma forte construção identitária que vem do período colonial, sofre abalos no início do período da independência, se ajusta nos anos 1980, é reconfigurada no momento de adoção do multipartidarismo, entra em crise na primeira década do século XXI, mas, de fato, jamais é abandonada e funciona com um importante esteio para a nação”.

Retornando à relação entre Cabo Verde e a Guiné-Bissau, em que se forjou a independência do arquipélago, não se descarte a sugestiva ideia de Havik de que o projecto de unidade entre Cabo Verde e Guiné Bissau derivou da própria concepção colonial [14]. A admitirmos como possível esta proposta, o pensamento nacionalista e de libertação da África, esgrimido pelo PAIGC, teria servido de nova roupagem para o sentimento de superioridade e o paternalismo dos cabo-verdianos para com os guineenses, atitudes decantadas ao longo de séculos.

Como teria sido a evolução política se em vez de um projecto político utópico conducente à criação de um Estado bi-nacional se tivesse à época da sua emancipação criado um governo de uma entidade política una, Guiné e Cabo Verde? Certamente, a separação não seria tão fácil como a ocorrida com o golpe de Novembro de 1980, em razão do qual o projeto de construção de um Estado bi-nacional conheceu seu termo, pelo que, a partir de então, os cabo-verdianos se sentiram livres para desabafar nas ruas que eles nada tinham a ver com os da Guiné… com o que talvez exprimissem de forma subliminar a sua dissonância em relação ao regime.

Ao tempo, que Estado e que nação se construíam, ou não, no continente, no território da Guiné-Bissau? Para TRAJANO FILHO, a noção relevante de nação na Guiné-Bissau é a da nação crioula em decantação há séculos por força da constante interacção entre os recém-chegados, europeus ou africanos, e os habitantes das praças existentes nos rios das costas do território.

Se a avaliação da construção da ideia de nação ou do fortalecimento e estruturação do Estado na Guiné-Bissau se pautar por critérios funcionais ou pelos critérios político-ideológicos fundadores da luta, para TRAJANO FILHO, a avaliação do tempo transcorrido pelas promessas da era da independência só pode conduzir à constatação de um fracasso. Tal sentença aplicar-se-á aos resultados quer da procura de uma sociedade igualitária e homogénea, deduzida dos pressupostos marxistas da ideologia nacionalista, quer da sucedânea concepção de sociedade liberal determinada pelo mercado, uma e outra conducentes à concentração de riqueza, à desigualdade e à violência. Ora, para TRAJANO FILHO, o polimórfico projecto crioulo (noção distinta de mestiço ou de cabo-verdiano) da nação na Guiné-Bissau refere-se a uma profundidade histórica plurissecular e, sendo assim, por exemplo, a luta de libertação foi um momento e, podemo-lo supor, a ideologia nacionalista foi uma roupagem ou um instrumento.

Sendo a luta pela independência o destino necessário da sociedade crioula, uma vez renascido na década de 1950, o desejo de autonomia, que o avanço colonialista soterrara nos primeiros decénios de novecentos, leva TRAJANO FILHO a afirmar que “uma contradição se consolidou no coração do projeto para a nação do PAIGC ou, o que dá no mesmo, da sociedade crioula desde o início do movimento nacionalista: confronto paradoxal entre o retorno às origens idealizado na utopia de Cabral (1973), que sugeria um devir igualitário e horizontal para a futura nação, e a estrutura verticalizada da sociedade crioula, sempre supondo formas de incorporação da diferença que geravam hierarquias do tipo gerontocrático e patrimonialista”.

A luta trouxe uma quantidade imensa de gente desejosa de incorporação no mundo crioulo, cuja capacidade de absorção era escassa. Assim, nas precárias condições de vida e de escassez de recursos, a incorporação nem sempre passou pela adesão à comunidade de sentimento que é a nação, mas, lembra o autor, a corporações organizadas em redes ralas, encabeçadas pelos novos “homens grandes”, gerando, por exemplo, frustrações e ressentimentos.

Segundo TRAJANO FILHO, o projecto de nação crioulo, polimórfico ao longo do tempo, depende da capacidade de determinação das fronteiras de absorção de elementos europeus e africanos ou indígenas. Se a sociedade crioula perder esse controlo da absorção desses elementos acabará como que descrioulizada, isto é, subsumida a um dos elementos que, durante séculos, a constituíram, a saber, o mundo africano tradicional ou as formas de vida europeizadas. Em todo o caso, da perspectiva da nação construída da base para o topo, com ou sem interferência do Estado, para TRAJANO, a nação, mesmo que não mais a crioula, está em construção na Guiné-Bissau, facto comprovado pelo facto de o crioulo ser cada vez mais a língua nacional. Também formas de sociabilidade crioulas como o carnaval começam a ser celebradas e vividas fora das praças.

Uma das dificuldades na Guiné Bissau traduz-se na incapacidade de falar da clivagem relativamente aos cabo-verdianos. Como se aludiu, enquanto projecto da sociedade crioula, a nação guineense ergueu-se da base para o topo para sacudir os agentes coloniais e os “sempre imprevisíveis cabo-verdianos”, a cuja presença e às clivagens dela decorrentes, TRAJANO FILHO não atribui as dificuldades de desenvolvimento do projeto nacional na Guiné-Bissau.

Como o autor aduz acerca dos balanços possíveis desde a independência, a “resposta com alguma dimensão de razoabilidade passa necessariamente (…) pelos enquadramentos de hipóteses subjacentes, na maior parte das vezes implícitas e, com alguma recorrência, furtivas”. Tal também vale, podemo-lo supor, para a discussão acerca dos cabo-verdianos, cuja presença na Guiné-Bissau era discutida mais abertamente entre os vários movimentos e grupos nacionalistas do que passou a ser depois de o PAIGC se tornar o movimento hegemónico e, naturalmente, desde a independência até aos dias de hoje [15].

Também encontramos cabo-verdianos em São Tomé e Príncipe, descritos por Marina BERTHET, sobretudo como atores de uma história invisível, enquanto trabalhadores agrícolas num arquipélago que, significativamente, passou de uma colónia dedicada à exportação da monocultura do cacau a um país independente que ensaiou impulsionar o seu desenvolvimento económico no acréscimo de produção e de produtividade nessa mesma monocultura.

Nestas circunstâncias, aflora a pergunta: no arquipélago, a independência significou uma rutura com as instituições coloniais? Para responder a esta questão, Marina BERTHET foca a sua atenção na permanência das roças e da monocultura do cacau, segundo ela, um dos fatores da apartação entre os políticos independentistas e o comum dos ex-contratados, após a independência cidadãos – como, sublinhe-se, já o eram no fim do período colonial, por oposição ao pretérito regime de privação de direitos civis e políticos denominado indigenato – mas cuja condição social manteve similitudes com a prevalecente no tempo colonial.

Para o MLSTP, que implementou um regime de partido único de coloração socialista para a governação do arquipélago após a independência, a questão passou a ser a de manter as roças operacionais e de tentar fixar aí a mão-de-obra contratada no tempo colonial [16]. O MLSTP também tentou, no quadro dos trabalhos cívicos, lograr a prestação da mão-de-obra citadina. Após a adesão inicial devida à exaltação da independência, a mão-de-obra citadina passaria a aderir de forma algo contrafeita, pelo que não só se revelaria pouco útil mas até improdutiva ou improfícua. Já em relação aos trabalhadores das roças, ex-serviçais contratados ou seus descendentes, uma vez desmentida a crença na maior entrega ao trabalho em resultado da nacionalização das roças, os políticos recorreriam à coerção através da aplicação de disposições disciplinares arbitradas por directores ilhéus aos trabalhadores.

Assim, em torno da ideia de que a manutenção das roças foi o motivo de desafeição dos trabalhadores importados que ficaram por São Tomé e Príncipe relativamente aos políticos são-tomenses, importa indagar o conteúdo laboral e social da preservação das roças enquanto instituição totalizante. Independentemente da nacionalização ter quebrado uma promessa de acesso à terra, implícita nas palavras de ordem que aludiam à terra a quem a trabalha, os antigos serviçais viram as roças ser destruídas por práticas ruinosas de directores ilhéus que tinham substituído os patrões brancos, práticas que os antigos serviçais não poderiam deixar de considerar dolosas, mesmo se não o podiam dizer publicamente.

Paralelamente à anunciada ruína das roças, desde os anos 80 foram-se esboçando intentos de uma reforma agrária que, alterando a estrutura da propriedade, deveria permitir não apenas a reprodução da cultura cacaueira mas igualmente a diversificação da agricultura, proporcionando uma acumulação interna e diferenciações económicas indutoras de ascensões sociais. Porém, a divisão e atribuição das terras fez-se segundo critérios de conveniência política – e de conveniência económica, de lógica rentista, dos elementos da nomenclatura política –, pelo que, uma vez mais, os antigos serviçais contratados permaneceram como os desapossados de terra numa terra onde, a despeito da proclamada irmandade africana, não deixavam de ser estrangeiros.

Gerhard SEIBERT foca as várias débacles – as da reforma agrária e a do petróleo – com consequências na pobreza tornada endémica e na permanente dependência do país da ajuda externa desde 1975, justamente o oposto da promessa de desenvolvimento anunciada pela independência.

No tocante à evolução política de São Tomé e Príncipe, Gerhard SEIBERT realça as questiúnculas entre os independentistas, antes e depois do 25 de Abril, de que saiu triunfante Pinto da Costa. Após 1975, na senda do acúmulo de poder no quadro do regime de partido único de coloração socialista, Pinto da Costa logrou afastar Miguel Trovoada, sujeito a prisão e a exílio, donde voltaria para arrebatar a vitória na eleição presidencial aquando da adopção da democracia representativa em 1990.

Enquanto factor de insucesso do país, SEIBERT salienta a instabilidade política, que atribui ao continuum de conflitos pessoais, sem conteúdo ideológico ou político, antes derivados das disputas pelas oportunidades e recursos disponibilizados pelo Estado. Daí decorrem a volatilidade dos engajamentos políticos e o permanente rearranjo das alianças e dos antagonismos, materializado no trânsito dos indivíduos pelos vários partidos. Porém, e sem embargo de tentativas abortadas de golpe de Estado, os conflitos vêm sendo resolvidos dentro de uma aparente normalidade institucional. Por regra, os resultados eleitorais têm sido aceites e respeitam-se os direitos humanos e as Frelimos cívicas e políticas.

Enquanto isso, o desempenho económico não podia ser mais frustrante. Ainda que os dirigentes tenham delineado uma política em torno da agricultura, esta não terá concitado muitas esperanças entre os ilhéus, cujas expectativas, na linha da tradicional demarcação dos filhos das roças – também a seus olhos, cidadãos de segunda –, estavam colocadas no Estado.

Por algum tempo, o ‘surgimento’ do petróleo na década de 1990 fez renascer os sentimentos nacionalistas, dada a expectativa de uma rentável exploração petrolífera. Mas até agora a prospecção não conduziu a quaisquer resultados, cerceando uma exaltação nacionalista fundada, já não na promessa da homogeneidade social de há quarenta anos, mas na mirífica riqueza advinda do petróleo.

Em meados da década de 1970, quando as colónias portuguesas lograram aceder à independência, já parecia passar o tempo da euforia das independências africanas. Porém, a luta ideológica reflectida na bipolaridade estava no seu clímax. Também por isso, os Cinco pareciam depositar crença na sua solução socialista.

Com diferença de caso para caso, observaram-se sucessivos distanciamentos dos resultados relativamente aos propósitos iniciais, fossem os do tempo da luta, fossem os dos princípios programáticos. As dificuldades económicas – na década de 1980, sentidas em toda em África mas, em particular, nos países de economia centralizada e de orientação socialista [17] – e a conjuntura internacional levaram à adoção da democracia representativa. Com maiores ou menores dilações e dificuldades, este foi o caminho nos Cinco que trocaram as veredas socialistas pela via da economia de mercado, expectavelmente condicionado à tentativa de preservação e reprodução da posição hegemónica dos políticos.

Como assinalou FALOLA, a razão pela qual líderes africanos responderam positivamente às pressões no sentido da boa governação e da democracia foi, não um sincero desejo de mudança ou progresso, mas o estarem pressionados pelas consequências do fim da Guerra Fria. Porém, atualmente, já se assiste a um movimento no sentido do autoritarismo [18]. Com efeito, parece ecoar em várias partes do continente a via autoritária que, implicitamente, se identifica com o crescimento económico (cujo expoente deixou de estar alojado nas sociedades democráticas). Apesar da salvaguarda formal dos mecanismos democráticos, parecem já distantes os tempos da arrebatada crença na democracia, no respaldo dos anos de sufoco dos regimes ditos socialistas. Entre as liberdades e o crescimento económico, a balança parece inclinar-se para este e para a governação de pulso forte, resignadamente aceite por não se distanciar do comum da experiência de governação das sociedades.

Não sabemos quanto tempo vigorará o actual desenho político em África e no mundo. Mas, onde os Estados (fortes e fracos, falhados ou adaptados) fracassaram na criação das nações ainda em gestação – como o denunciam a angolanidade, a cabo-verdianidade, a moçambicanidade, a são-tomensidade –, nasceram países e nacionalidades que parecem referentes para a vida dos cidadãos.

Notas

1. Além dos textos abaixo referenciados, este dossiê compõe-se da entrevista concedida por David BIRMINGHAM a Alexsander GEBARA, A historiografia de David Birmingham, da entrevista feita por Ana Cristina PEREIRA e Rosa CABECINHAS ao cineasta Licinio AZEVEDO sobre Moçambique, Um país sem imagem é um país sem memória… e, ainda, pela resenha A descolonização portuguesa e as batalhas da memória do livro O Adeus ao Império da autoria de Maria Inácia REZOLA.

2. Cf.: SMITH 1995, p. 33.

3. Cf.: YOUNG 2004, p. 29.

4. Cf.: MAMDANI 1996, p.183.

5. Cf.: MESSIANT 2006, p. 145.

6. Cf.: BITTENCOURT 2015: 244

7. Por exemplo, Vidal 2007.

8. Por exemplo, http: / / expresso.sapo.pt / internacional / 2016-08-17- Eduardo-dos-Santos-exortaMPLA-a-assumir-erros-do-passado-para-ganhar-eleicoes, acesso: 23 ago. 201

9. Em particular em Moçambique, assinale-se a profusão de testemunhos e memórias sobre a guerra colonial.

10. Não será difícil encontrar quem opine pelo fracasso das negociações, mormente após o assassinato de Jeremias Pondeca (cf. http: / / www.verdade.co.mz / destaques / democracia / 59729-jeremiaspondeca-membro-senior-do-partido-renamo-assassinado-na-capital-de-mocambique, acesso: 22 de outubro de 2016), que se segue a outros de que nunca se apuraram os autores. Jeremias Pondeca era conselheiro de Estado e o Presidente Filipe Nyusi esteve presentes nas cerimónias fúnebres (http: / / www.voaportugues.com / a / mocambique-rende-homenagem-jeremias-pondeca / 3547812 html, acesso: 22 de outubro de 2016). Contudo, parte dos moçambicanos inculpará a Frelimo pelo sucedido. Outra parte dos moçambicanos considerará essa responsabilidade como decorrente do exercício de poder que se deve nortear pelas garantias de segurança da população, aliás, corriqueiramente uma das razões de adesão ao partido no poder.

11. Fincando-se no texto constitucional, a Frelimo tem rejeitado entregar à Renamo a governação das províncias onde esta teve uma votação maioritária. Diversamente, encetou um processo de criação paulatina de autarquias locais (de momento, 53), para cujas eleições tem obtido uma esmagadora maioria de vitórias. Assim, de permeio com a observância dos mecanismos de democracia representativa (e independentemente de alegações sobre fraudes, alegações que não encontram respaldo nas missões internacionais de observação eleitoral), a partilha de poder tem-se revelado mínima. Enquanto isso, tem-se verificado a rotação na titularidade dos cargos de poder detidos por elementos da Frelimo, incluindo o de Presidente da República.

12. Após a recusa de tal passo no congresso do PAICV de 1988 e das críticas em Cabo Verde, e não só, às intenções de Pinto da Costa de democratização política em São Tomé e Príncipe, Cabo Verde acabaria por ser o primeiro dos Cinco a realizar eleições democráticas.

13. Não deixa de ser interessante este dilema identitário que percorre cabo-verdianos – sobretudo, os intelectuais – e que parece dividir ilhas, como o indiciam, por exemplo, as movimentações em torno da regionalização. Independentemente do que esta proposta contém de instrumental no tocante à capitalização de dividendos políticos contra a macrocefalia da Praia, ela pode ser também uma forma implícita de negar a vocação africana resultante da ligação ao continente (NASCIMENTO 2016). Porventura, muitos cabo-verdianos anuirão a que a inserção no contexto regional africano e nas estruturas políticas do continente não preenche toda a matriz identitária cabo-verdiana. Apesar da reafricanização dos espíritos coetânea da luta, por conta da qual a africanização parecia incrustar uma matriz identitária autêntica, parte dos cabo-verdianos teria muitas dúvidas quanto a tal africanização dos espíritos. De outra forma, não se entenderia a acrimónia que perpassou nas trocas de acusações entre responsáveis guineenses e cabo-verdianos após o Movimento Reajustador de 1980 na Guiné-Bissau (que TRAJANO elencou como o “outro paradigmático”). Se assim foi, e é, sem se negar uma identificação difusa de parte dos cabo-verdianos com África, poder-se-ia perguntar que África polariza tais sentimentos.

14. Citado por NEWITT 2015: 32. Em todo o caso, para passar de sugestiva a convincente, tal hipótese demandaria uma acurada investigação sobre o curso e a metamorfose de sentidos políticos dos referentes culturais, a começar pela própria memória da presença de cabo-verdianos na Guiné.

15. Opiniões de senso comum defendem com vigor que na base dos problemas da Guiné-Bissau não estão as clivagens étnicas ou socio-culturais, mas a presença do crioulo. Avaliar opiniões de rua como esta requereria profundo trabalho de investigação, desde logo para situar essa figura do mestiço, que, podemos alvitrar, é uma metonímia de “cabo-verdiano” que o pudor académico ou a conveniência política impede de nomear. A este respeito, consulte-se, entre outras obras, DJALÓ 2013.

16. Note-se, algumas das políticas ensaiaram beneficiar os trabalhadores, com destaque, como a autora assinala, para o aumento dos salários logo após a independência. Porém, cumpre dizer que o MLSTP ensaiou igualmente repor o comando autoritário (KEESE 2011) em nome do povo mas exercido por ilhéus a quem os trabalhadores imigrados não reconheceriam nem competência nem idoneidade. Tal gerou a corrosão das relações laborais e o abandono das roças. Para uma perspectiva de conjunto sobre a evolução das roças no pós-independência, veja-se EYZAGUIRRE 1986.

17. Por exemplo, CHABAL 2002: 90.

18. Ver, por exemplo, FALOLA 2004: 273

Referências

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YOUNG, Crawford, The end of the post-colonial state in Africa? Reflections on changing Africa political dynamics. African Affairs, Londres, v. 103, n. 410, p. 23-49, 2004.

Augusto Nascimento – Investigador do Centro de História da Universidade de Lisboa (Portugal). É colaborador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto e do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Foi cooperante em São Tomé e Príncipe entre 1981 e 1987. Doutor em Sociologia na especialidade de Economia e Sociologia História pela Universidade Nova de Lisboa e Agregação em História, na especialidade História Contemporânea, pela Universidade Nova de Lisboa. É autor dos livros O fim do caminhu longi (Ilhéu Editora, 2007); Ciências sociais em São Tomé e Príncipe: a independência e o estado da arte (Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2007); Vidas de S. Tomé segundo vozes de Soncente (Ilhéu Editora, 2008); Atlas da Lusofonia. São Tomé e Príncipe (Prefacio, 2008); Histórias da Ilha do Príncipe (Oeiras, 2010), Desporto em vez de política no São Tomé e Príncipe colonial (7letras2013). Tem como principais áreas de interesse a história recente de África e, em particular, a de São Tomé e Príncipe.

Marcelo Bittencourt – Professor Associado do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador do Núcleo de Estudos Africanos da UFF (NEAF). Possui Graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestrado em Antropologia pela Universidade de São Paulo e Doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense. Suas pesquisas estão relacionadas com os seguintes temas: Angola, África Austral, colonialismo, lutas de libertação e esportes. Publicou, entre outros, Dos jornais às armas. Trajectórias da contestação angolana (Vega, 1999); Estamos juntos! O MPLA e a luta anticolonial 1961-1974 (Kilombelombe, 2008).


NASCIMENTO, Augusto; BITTENCOURT, Marcelo. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 42, n. 3, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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