Intolerância Religiosa, Laicidade e Política / Projeto História / 2020

O presente dossiê, intitulado “Intolerância Religiosa, Laicidade e Política”, traz um assunto muito atual no mundo político e na sociedade brasileira, o aumento das mais variadas formas de intolerância religiosa, racismo religioso, fundamentalismo religioso e questionamento da frágil laicidade do nosso país.

Com o findar da Ditadura Civil-Militar, novos atores religiosos entraram no cenário político brasileiro, impondo uma lógica concorrencial à Igreja Católica no campo político e social. O número de evangélicos cresceu exponencialmente e, também, os intitulados “sem religião”, enquanto o catolicismo perdeu fiéis. O Brasil passou de uma “hegemonia católica” para uma maioria de católicos. O campo religioso brasileiro pluralizou-se, inclusive com a ampliação de propostas religiosas não cristãs.

Nesta nova radiografia do perfil religioso brasileiro, novos formatos de intolerância surgiram. No campo político partidário, as bancadas evangélicas e católicas trabalham em conjunto na defesa de projetos de “escola sem partido” para impedir o debate das questões de gênero nas escolas, defendendo um ensino religioso confessional e a perseguição aos aspectos religiosos e culturais das religiões de matriz africana. Ou seja, há uma atuação política que impede que a laicidade do Brasil seja vivenciada conforme aponta a Constituição de 1988.

A laicidade consiste na não perseguição a qualquer forma de religião ou religiosidade, pelo contrário, é o direito do indivíduo, em seu aspecto particular, escolher ter ou não uma religião. O Estado precisa ser neutro em matéria de confessionalidade. Não cabe às autoridades beneficiar instituições religiosas autorizando o funcionamento de feriados religiosos, partidos confessionais, bancadas religiosas, concessão de rádio e TV para grupos religiosos, investimento de dinheiro público em empreendimentos de instituições confessionais, dentre outras atividades. O Brasil precisa de um projeto de governo que lute pelos direitos humanos e a laicidade é um dos pontos principais que precisa de uma revisão.

A capa1 que escolhemos, tomando os devidos cuidados com as associações, dialoga no sentido figurativo com o atual momento do Brasil. A cada dia muitas pessoas são mortas, presas, violentadas, estigmatizadas, recriminadas, ou ridicularizadas pela sua opção religiosa ou por não ter religião. Quanto mais o exercício da fé se afastar dos valores judaicocristãos, mais o fiel sofrerá intolerância religiosa.

Dito tudo isso, o presente dossiê apresenta textos de alta qualidade que discutem essa relação entre laicidade, política e intolerância religiosa, nos mais plurais temais atuais e ao longo da História do Brasil. São nove artigos do dossiê, três artigos da sessão livre, duas resenhas, uma entrevista e uma notícia sobre as pesquisas em andamento no Programa de História da PUC SP.

Abrimos o dossiê com o texto intitulado “A falsificação do jornal católico O São Paulo: Uma análise da reação midiática à edição Mea Culpa (1982)”, escrito pelos pesquisadores Fábio Lanza, José Wilson Assis Neves Júnior e Raíssa Regina Brugiato Rodrigues, todos estudiosos ligados à Universidade Estadual de Londrina. Este artigo analisa o processo de falsificação de uma edição do jornal católico O São Paulo (1982). Usando instrumentos teóricos e metodológicos das ciências sociais, os referidos autores utilizam a análise do discurso para entenderem como foram desenvolvidas as falsificações dos artigos do jornal analisado, e como e de que forma a intolerância religiosa aparece nos conteúdos.

Em seguida, temos o artigo ““A milícia dos remidos marcha impoluta”: Campanha de evangélicos assembleianos ao legislativo paranaense em 2018”, no qual foram analisadas dezenas de candidaturas, coletando informações nas redes sociais dos candidatos. A Assembleia de Deus é a maior instituição evangélica do Brasil. De forma descentralizada e plural, está presente em todos os territórios do país. Em termos políticos, é a instituição religiosa que consegue eleger o maior número de representantes dos poderes executivos e legislativos. Os autores nos mostram como este fenômeno da presença da AD na política ocorreu no ano de 2018 no processo eleitoral.

O artigo nomeado “A “Modernização” Política da Igreja Católica no Brasil (1850-1930): Uma aproximação a partir da teoria crítica de Jürgen Habermas”, discute de forma profunda as questões relacionadas à Igreja Católica e o Estado Brasileiro entre 1850-1930, período muito conturbado na história política do Brasil. Neste período, nosso país muda de regime político, passando da monarquia para o regime republicano, e ainda ocorreu a subida de Getúlio Vargas à presidência do Brasil. Independente dos episódios históricos, a Igreja Católica participou ativamente nas questões políticas, ora se aproximando como parceira do Estado, ora se posicionando contrária a algumas medidas.

O texto “Entre o Trono e o Altar: A questão religiosa em Portugal e no Brasil, notas para uma laicidade à brasileira” é fruto de uma pesquisa de pós-doutoramento pensando a questão da secularização e da laicidade em Portugal e no Brasil. O interessante deste texto é a apresentação de uma relação bem diferente estabelecida no Brasil, no tocante à intercessão entre religião e política no espaço público ocorrida em Portugal. A pesquisa, de certa forma, mostra aspectos próximos e distantes da construção histórica entre Igreja e Estado no Brasil e em Portugal.

O debate sobre a identidade do componente “ensino religioso” nas escolas públicas e como os grupos religiosos e não religiosos desenvolvem estratégias, negociam, discursam e articulam a defesa da sua visão sobre a existência ou não do ensino religioso na década de 1930, consiste a discussão do seguinte artigo, denominado “Laicidade e educação: O Pe. Leonel Franca S.J. e o debate sobre o decreto do Ensino Religioso na escola pública brasileira (1931)”. Com o advento da presidência do Getúlio Vargas, a Igreja Católica retoma o status de instituição religiosa mais beneficiada pelas autoridades brasileiras.

O artigo “O ensino religioso e a escola José Bonifácio: um estudo de caso da prática pedagógica desenvolvida no quilombo do Cria-ú no Amapá” discute a proposta didático-pedagógica da escola José Bonifácio, que se localiza no maior Quilombo do Estado do Amapá. O texto alerta para a necessidade de quebrar a resistência do corpo docente da escola e da direção em trabalhar os aspectos religiosos e culturais do quilombo. Há parteiras, benzedeiros, festas populares, rezas, ladainhas, missas, e outros aspectos da cultura afro-ameríndia que fazem parte do cotidiano do quilombo e não são pensadas pela escola como forma de ensino às crianças.

O texto intitulado “O ultraje a religião tradicional da família paraense: A separação Igreja-Estado no Brasil República e a prisão de Justus Nelson em Belém do Pará. (1889-1925)”, desvela como foi este rompimento e suas consequências na sociedade paraense, além de problematizar a prisão de Justus Nelson.

O historiador Ipojucan Dias Campos, ligado à Universidade Federal do Amapá, com o artigo “Políticas laico-religiosas: Casamento, família e divórcio na fabricação do Código Civil Brasileiro (Belém-PA, 1915)” discute as características do casamento, concepção de família e divórcio na sociedade paraense no início do século XX. A problematização se dá a partir do Código Civil Brasileiro aprovado na República Velha.

O artigo “Religiões, Laicidade e Ensino de História: Diálogos culturais para o trabalho em sala de aula”, discute aspectos fundamentais da necessidade da História das Religiões estar presente nas aulas de ensino de História, tendo como contribuição os aspectos teóricos e metodológicos da História Cultural. Com a pluralidade do campo religioso brasileiro, professores e pesquisadores precisam desenvolver estratégicas de transposição do conhecimento para que os alunos entendam, nos mais variados tempos históricos, a influência das religiões e religiosidades nas sociedades.

Iniciando a sessão de artigos livres, o artigo intitulado “Dilemas da propaganda socialista em Manaus no alvorecer do século XX”, escrito pelo pesquisador Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, apresenta como a propaganda socialista foi feita em Manaus no século XX. De acordo com o autor, houve periódicos que se posicionaram a respeito da falta de leis trabalhistas e da exploração que os empregados eram sujeitos em seus postos de trabalho.

Os historiadores argentinos Laura Cucchi e Leornardo Hirsc assinam juntos o artigo “Conflicto político, diseños electorales y el problema de las minorías en la Argentina de fines del siglo XIX”, no qual dissertam a respeito dos conflitos políticos entre as minorias e as autoridades públicas na Argentina no início do século XIX. Os autores mostram as limitações da legislação vigente no período da participação política de grupos minoritários no contexto argentino.

A historiadora Flávia da Cruz Santos contribui para este número com o título “O conceito de divertimento na cidade de São Paulo (1828- 1867)”, no qual ela problematiza o conceito de divertimento na cidade de São Paulo no século XIX. As fontes utilizadas foram os jornais: A Phenix, Correio Paulistano, Diário de S. Paulo, Ensaios Literários, O Acayaba, O Farol Paulistano, e O Novo Farol Paulistano, além da literatura produzida por viajantes estrangeiros.

Passada a sessão temática e a sessão de artigos livres, o presente número publica duas resenhas. A primeira intitulada “Memórias da juventude na Rua Maria Antônia”, escrita pelo autor Gustavo Hatagima, sobre a obra “ABDALA JUNIOR, Benjamin. (org.) Um mundo coberto de jovens. São Paulo: Com-Arte, 2016”, e a outra resenha denominada “Religiosidade em trânsito. Práticas cotidianas do sagrado no Brasil da Primeira República, escrita pela autora Elena Pajaro Peres, sobre a obra “WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Práticas Religiosas, Errância e Vida Cotidiana no Brasil (Finais do Século XIX e Inícios do XX), São Paulo: Intermeios; USP-Programa Pós-Graduação História Social, 2018”. Ambas as resenhas trazem excelentes análises das obras supracitadas.

Na presente edição trazemos ainda a “Entrevista com Durval Muniz de Albuquerque Júnior: As Veredas Subjetivas de um Historiador”, feita pela historiadora Valéria Barbosa de Magalhães Daisy Perelmutter. A entrevista explora aspectos da sua vida particular, sua visão sobre diversos temas da historiografia, dentre outros assuntos.

E para findar esta edição, trazemos a notícia da pesquisa de doutoramento da estudante Adriana Bastos Kronemberger com o título “Vozes da militância – Nova Iguaçu nas décadas de 1970 e 1980”. A estudiosa objetiva compreender as particularidades das lutas do povo da cidade de Nova Iguaçu nas décadas de 1970 e 1980 ao lado de seu bispo, Dom Adriano Hypólito.

Boa leitura,

Nota

1Sobre a capa, o autor Claudinei Cássio de Rezende, explica que “A tela representa o momento exato em que a Santa Engrácia de Saragoça, mártir da Igreja Católica, é morta no ano 303 d.C. Antes de ser executada padeceu de castigos violentos da tortura. A ordem de sua execução partiu de Diocleciano (244 – 311 d.C), então imperador romano que promoveu a maior perseguição aos cristãos. Esta situação foi bem tratada historiograficamente por Edward Gibbon em sua obra escrita entre 1776 e 1778, “Declínio e queda do Império Romano”, em seu sexto capítulo. No que se refere à questão iconográfica, a escolha da pintura se alinha à temática da intolerância religiosa e da política. Bertolomé Bermejo (c. 1440 – 1500) foi um dos mais importantes artistas pré-renascentistas espanhóis, cujo estilo foi profundamente influenciado pela pintura flamenga quatrocentista. Seu retábulo tríptico “A Virgem de MontSerrat”, de 1485, guarda uma marca indubitável do estilo dos irmãos Van Eyck e de Rogier van der Weyden, o que atesta a informação biográfica de suas viagens para Flandres para conhecer a técnica do óleo – que viria a chegar no renascimento italiano por Antonello da Mesina e Hugo van der Goes nesta mesma época. Podemos dizer que o patrimônio pictórico barcelonês deve muito à obra de Bertolomé Bermejo, para quem ora prestamos a homenagem desta capa num tema tão importante quanto este, da tolerância e da misericórdia religiosa.”

Luiz Antonio Dias – Professor do Departamento de História da PUC / SP Orcid: http: / / orcid.org / 0000-0001-8834-442X

Marcos Vinicius de Freitas Reis – Professor da Universidade Federal do Amapá. Líder do Centro de Estudos Políticos, Religião e Sociedade – CEPRES.


DIAS, Luiz Antonio; REIS, Marcos Vinicius de Freitas. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.67, 2020. Acessar publicação original [DR]

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