Jogos teatrais no Brasil: 30 anos | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2010

Quando todos forem

iniciadores

Quem ficará para ser o

seguidor?

Quando todos forem

seguidores

Quem ficará para ser o

iniciador?

Quem ficará para ser

iniciador e seguidor

Quando todos forem

iniciadores e seguidores?

Viola Spolin

Viola Spolin é conhecida internacionalmente por sua contribuição metodológica tanto para o ensino do teatro nas escolas e universidades como para a prática da arte cênica, principalmente para o teatro improvisacional. A “avó do teatro improvisacional norte-americano”, cunhou o termo theatre game, traduzido entre nós como jogo teatral. Os jogos teatrais acentuam a corporeidade, a espontaneidade, a intuição e a incorporação da platéia, indicando como princípios da linguagem teatral podem ser transformados em formas lúdicas, criando um acesso criativo para a atuação no teatro com leigos e profissionais

Na sistematização da prática do jogo teatral é possível divisar a construção de um método no qual, longe de estar submetido a teorias, técnicas ou leis, o jogador se torna artesão de sua própria educação no processo da prática teatral, produzido por ele mesmo ao articular essa linguagem. Como disse um especialista, o jogo teatral está para o teatro como o cálculo para a matemática.

Imigrante russa nos EUA na década de trinta, Viola Spolin recebeu influência de Stanislavski a quem faz uma dedicatória em Improvisação para o Teatro. Tive poucos contatos com Viola em vida, restritas a via postal. Mas soube uma história contada por seu marido Kolmus Greene, ao conhecê-los em Los Angeles (Viola já havia sofrido um derrame). Ela estava coordenando um workshop de jogos teatrais na sala contígua onde Brecht ensaiava o Galileu com Charles Laughton. Ao tentar adentrar a sala para acompanhar o ensaio, foi impedida de ver o “grande” ator. E ela teria exclamado: Eu queria ver Brecht, não Laughton (But I didn`t want to see Laughton, I wanted to see Brecht!). A proximidade entre o jogo teatral e Brecht é maior do que imaginamos inicialmente. Paul Sills, filho de Viola e criador do Story Theater fez estágio no Berliner Ensemble. Viola Spolin e Paul Sills eram contemporâneos de seu tempo.

Ao lado de outras abordagens sensório-corporais, desenvolvidas principalmente na década de sessenta nos EUA e na Europa, o jogo teatral vem se revelando de grande atualidade. Em Texto e Jogo (Perspectiva, 1999) 1 o texto de Bertolt Brecht Lehrstück/Learning Play (jogo de aprendizagem) é utilizado para avaliar o jogo, enquanto, ao mesmo tempo o jogo é utilizado na apropriação do texto pelo atuante.

O princípio do meta-teatro brechtiano, presente em seus textos poéticos exige uma abordagem através da consciência lúdica, promovendo o estranhamento de gestos e atitudes. O jogo teatral iniciado por Viola Spolin tem em seus ramos folhas das principais metodologias de teatro do século XX.

Lembro-me, quando ao experimentar os jogos teatrais com alunos do Curso de Licenciatura na ECA/USP, em 1978, nasceu a descoberta de um método diferente daquele que encontrava na maioria dos livros sobre teatro na educação. Eduardo Amos, então aluno do departamento, tornou-se parceiro de inestimável valor. Vínhamos pesquisando a bibliografia nacional e a matriz do Child Drama de Peter Slade, quando a atriz Maria Alice Vergueiro, docente do então Departamento de Teatro, tendo participado, do III Congresso Internacional de Teatro para a Infância e Juventude, nos EUA, trouxe em sua bagagem um exemplar de Improvisação para o Teatro de Spolin. A leitura do livro e a vontade de entender melhor como se daria a prática a partir deste manual levou à formação do Grupo Foco. A pesquisa prática foi sendo depurada através da encenação de Genoveva Visita a Escola, um relatório para pais de uma escola de Educação Infantil, escrito por Madalena Freire (1979).

Em meu livro Jogos Teatrais (Perspectiva, 1984) descrevo parte desta prática, desenvolvida inicialmente nos anos 1978 e 1979, assim como os trabalhos realizados na APTIJ – Associação Paulista de Teatro para a Infância e Juventude junto a artistas de Teatro Infantil profissional paulistano. No prefácio escrito por Tatiana Belinky ela afirma que esta foi “a primeira dissertação em Teatro-Educação no país, o que veio conferir status acadêmico a um campo entre nós bastante marginalizado”. 2 Originalmente escrito em função de meu Mestrado na ECA/USP, com orientação de Sábato Magaldi, nele Belinky destaca ainda que “na época o sistema de Viola Spolin não era conhecido no Brasil”.

Outros resultados dessa pesquisa foram a tradução de Improvisação para o Teatro, em 1979 (Ed. Perspectiva, tradução Eduardo Amos e Ingrid Koudela). Seguiram-se depois outras traduções e edições, O Jogo Teatral no Livro do Diretor (2004), Jogos Teatrais: O Fichário de Viola Spolin (2001) e Jogos Teatrais na Sala de Aula (2007) também pela Perspectiva.

Inicia-se aí um processo, ao longo destas décadas, em que o sistema de jogos teatrais vem sendo experimentado e adaptado a realidade cultural brasileira por professores-artistas e pesquisadores em todo o país, em distintas realidades culturais, abrindo diferentes abordagens deste sistema de ensino e aprendizagem do teatro e de sua aplicação tanto na área da educação como na da encenação. Esta trajetória configura um entendimento e prática brasileiros.

A múltipla aplicação dos jogos teatrais, direcionada pelo contexto do grupo de jogadores e pela abordagem critica utilizada durante as avaliações, sugere que o sistema oferecido por Spolin, ao mesmo tempo em que regula a atividade teatral, traz em si a possibilidade de sua própria superação como método.

Com o objetivo de refletir sobre a prática dos jogos teatrais entre nós, foi organizado o presente dossiê junto com Robson Corrêa de Camargo, para a revista virtual Fênix – Revista de História e Estudos Culturais.

Robson Corrêa de Camargo, docente da Universidade Federal de Goiás e Ana Paula Teixeira, mestranda na Universidade Federal de Uberlândia analisam intersecções entre Spolin e Stanislavski para o ensino e a prática do teatro. Argumentando a partir de autores como Richard Courtney e Vygotsky aproximam o método das ações físicas de Stanislavski com o sistema de jogos teatrais, visando à formação de profissionais de teatro e professores no Curso de Graduação em Artes Cênicas da UFG.

Beatriz Cabral, docente da Universidade do Estado de Santa Catarina, traz o seu histórico de pesquisa no qual analisa as possíveis interações entre o sistema de jogos teatrais e o método do drama inglês. As aproximações e diferenças são observadas entre significação e contexto; aquisição da linguagem e convenções teatrais. Apontando para as influencias das práticas teatrais pós-modernas, que também se refletiram na sala de aula, demonstra que os métodos não são excludentes, podendo haver inúmeras combinações entre ambos.

Alexandre Mate, docente do Instituto de Artes da UNESP – SP traz apontamentos bibliográficos sobre jogos teatrais entre nós, recuperando material bibliográfico produzido sobre o teatro na educação desde a década de setenta.

Contribuindo para que a dimensão lúdica e artística seja introduzida como campo de conhecimento e formação nos cursos de pedagogia, Lucia Lombardi, doutoranda na Faculdade de Educação da USP, traz os resultados da sua pesquisa na qual os jogos teatrais se revelaram produtivos na formação de educadores de creches da rede pública de ensino em São Paulo. Focalizando a avaliação através do protocolo (instrumento proposto por Bertolt Brecht) aponta para a importância da reflexão sobre a experiência do professor em formação.

Mariana Tagliari, licenciada em Artes Cênicas pela Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, traz a sua reflexão sobre o jogo na Educação Infantil, na experiência de jogos com crianças até quatro anos.

Marina Miranda de Carvalho, Iara Fátima Fernandes e Davi de Oliveira Pinto são coordenadores de Jogos Teatrais no Curso de Teatro na Educação do Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado de Belo Horizonte. Ressaltando a relevância e atualidade dos jogos teatrais como abordagem metodológica no trabalho de teatro com jovens, ao longo dos dez anos em que este projeto vem sendo desenvolvido no Palácio das Artes, o artigo reporta a depoimentos de educadores

Apontando para a importante função da Instrução do coordenador de jogos teatrais, Vicente Concilio, docente na Universidade do Estado de Santa Catarina, destaca sua relevância como procedimento artístico e pedagógico, estabelecendo pontos de contato entre o jogo teatral, a formação do professor de teatro e a criação teatral na contemporaneidade.

A Instrução no jogo teatral também é analisada como prática dialógica no processo de montagem do espetáculo Chamas na Penugem (2008). O relato de Raymon Aires, formado pelo Curso de Licenciatura em Teatro da UNISO – Universidade de Sorocaba – SP, investiga o processo de experimentação dos atuantes e a parceria que se estabelece com a coordenação dos jogos.

Apresentando a experiência do modelo espetacular denominado Teatro de Figuras Alegóricas, realizado na UNISO – Universidade de Sorocaba – SP, José Simões de Almeida Junior, encenador com Doutorado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo traz a fundamentação do jogo teatral aliado à leitura de imagens no processo de construção da montagem teatral. Sua reflexão tem como ponto de partida a discussão do espaço teatral, os procedimentos de espacialização da cena e os seus vínculos com as narrativas visuais na criação espetacular.

Joaquim Gama, doutorando na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e docente na Universidade de Sorocaba, analisa o princípio da Fisicalização no sistema de jogos teatrais como possibilidade de conciliação entre a imaginação dramática e a corporeidade, fazendo com que o atuante tenha a experiência do aqui/agora no jogo improvisacional.

Introduzindo a discussão acerca do jogo teatral como indutor à construção de dados a serem utilizados em investigações de recepção teatral, Tais Ferreira, Coordenadora do Curso de Teatro Licenciatura da Universidade Federal de Pelotas – RS narra uma experiência empírica desenvolvida durante um processo de investigação com crianças espectadoras.

Alessandra Ancona de Faria, docente na Universidade Paulista traz uma análise do livro O Jogo Teatral no Livro do Diretor de Spolin tendo em vista como o jogo teatral pode contribuir na encenação com grupos de alunos em escolas de Ensino Fundamental, a partir da experimentação que realizou com um grupo de adolescentes de uma escola pública na cidade de São Paulo.

Maria Lucia Pupo, docente no Departamento de Teatro da Universidade de São Paulo faz uma resenha de Jogos Teatrais na Sala de Aula, enfatizando a importância do jogo de regras no processo de aprendizagem do teatro, alertando para a recepção ingênua que poderia indicar o subtítulo ¨manual¨. Acentua o mérito que reside em apontar perspectivas para o fazer teatral numa ótica lúdica, no âmbito das contradições inerentes à instituição escolar.

Por fim, fechando este dossiê, Robson Corrêa de Camargo apresenta uma breve resenha – intitulada O Jogo Teatral e sua Fortuna Crítica…. – em que analisa a recepção dos jogos teatrais em nosso país no artigo.

É possível identificar no pensamento pedagógico contemporâneo brasileiro alguns eixos de discussão recorrentes na área de Arte. Do ponto de vista epistemológico, uma das possibilidades é a articulação metodológica entre o fazer artístico, a apreciação da obra de arte e o processo de contextualização histórico e social. Através do ensino da história e do exercício critico na leitura da obra de arte, o processo expressivo da criança e do jovem é ampliado e inserido na história da cultura e na cultura da história.

No âmbito da Arte na educação vários são os temas que vem sendo discutidos como a concepção polivalente no ensino da arte x interdisciplinaridade. O eixo do conhecimento em uma das linguagens específicas (Artes Visuais, Música, Teatro e Dança) é mantido como norteador de projetos, estabelecendo-se parcerias com outras linguagens, processo enriquecedor da aprendizagem. Outro tema que surge de forma recorrente é a concepção do professor-artista, ou seja, além de mediador esse professor desenvolve projetos com seus alunos na perspectiva da construção e experimentação de formas artísticas.

Os eixos de aprendizagem em Arte levaram, na última década, a uma reflexão e experimentação com a leitura e fruição de obras de arte, notadamente através dos setores educativos dos museus e outros espaços culturais. O mesmo fenômeno pode ser verificado na área de Teatro, estabelecendo pontes entre o teatro para a infância e juventude e platéias em escolas e outras, que até então não tinham acesso aos espetáculos apresentados em teatros nas cidades. A Lei de Fomento da cidade de São Paulo, por exemplo, vem neste sentido modificando o panorama cultural, ao exigir a contrapartida social dos projetos nela inscritos.

O exercício da linguagem artística vem sendo ressaltado em grau crescente na formação do professor de Arte. Na área do Teatro, a tematização do espaço acompanha os processos criativos contemporâneos. A leitura de imagens e/ou textos poéticos, como deflagradores do processo pedagógico e material para a construção da cena, amplia a perspectiva de aprendizagem e do exercício artístico.

Como se vê são muitos os caminhos trilhados. Por meio das oficinas de jogos teatrais é possível construir liberdade dentro de regras estabelecidas por acordo grupal. A matéria do teatro, gestos e atitudes, é experimentado concretamente no jogo, sendo que a conquista gradativa da expressão física, corporificada, nasce da relação estabelecida com a sensorialidade.

Na escola não se aprende normalmente através da experiência, mas por meio da didática (técnicas de organização do aprendizado). No entanto, o aprendizado estético é momento integrador da experiência humana. A transposição simbólica da experiência assume, no objeto estético, a qualidade de uma nova experiência. As formas simbólicas tornam concretas e manifestas, novas percepções a partir da construção da forma artística. O aprendizado artístico desenvolve-se como processo de produção de conhecimento.

Outra tendência verificada nas pesquisas apresentadas é o teatro como ação cultural. Problemas sociais contemporâneos têm surgido como temas privilegiados nos trabalhos realizados com crianças e jovens. Esse trabalho teatral, muitas vezes desenvolvido no âmbito de ONGs, de projetos de pesquisa e extensão nas universidades e através de apoio da iniciativa privada, propõem o tratamento de problemas sociais.

Nos ensaios apresentados no presente dossiê da Revista Fênix essas tendências podem ser reconhecidas, abrangendo os vários campos profissionais da Pedagogia do Teatro e as várias vertentes de pesquisa ora em curso. Os jogos teatrais de Viola Spolin revelaram-se altamente produtivos nas diferentes abordagens, acima de tudo ao promoverem habilidades no processo de aquisição da linguagem do teatro. As reflexões sobre o jogo teatral dentro de nossa realidade nacional certamente abrem novos caminhos para o método de Viola Spolin, ampliando e até mesmo transformando a proposta inicial.

Boa leitura!

Notas

1 KOUDELA, Ingrid D. Texto e Jogo. São Paulo: Perspectiva, 1999.

2 KOUDELA, Ingrid D. Texto e Jogo. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 10.


Organizadores

Ingrid Dormien Koudela – Livre Docente pela Universidade de São Paulo. Docente do Curso de Pós-Graduação em Artes Cênicas na ECA/USP e do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade de Sorocaba. Autora de Jogos Teatrais (Perspectiva, 2002) é tradutora e introdutora do método no Brasil. Pesquisadora de Brecht, com ênfase na Peça Didática, publicou vários volumes de sua autoria propondo uma abordagem alternativa para o ensino/aprendizagem da linguagem teatral e do texto literário.  E-mail: [email protected]

Robson Corrêa de Camargo – Encenador e crítico teatral. Doutor em Artes Cênicas e professor da Universidade Federal de Goiás. Cópias gratuitas de alguns dos trabalhos de sua autoria podem ser acessados em http://ufg.academia.edu/RobsonCamargo  E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

KOUDELA, Ingrid Dormien. Apresentação. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v.7, n.1, jan./abr. 2010. Acessar publicação original [DR]

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