O legado das ditaduras civis-militares / Cantareira / 2014

O que o recente ciclo de ditaduras latino-americanas legou às nossas democracias?

Na esteira das comemorações dos 50 anos do golpe civil-militar no Brasil, a Cantareira, revista discente de História da Universidade Federal Fluminense, optou por preparar um número que contribuísse para aprofundar os debates que ocorreram ao longo deste ano. Escolhemos um viés que ajuda compreender a herança da ditadura no Brasil, em perspectiva comparada com outros países da América Latina, que passaram por experiências semelhantes. Nossa questão aqui é pensar sobre o que o recente ciclo de ditaduras latino-americanas legou às nossas incipientes democracias.

Há que se ponderar que parte considerável dos legados deixados pelas ditaduras civis –militares na América Latina estão intrinsecamente ligados à forma como ocorreram os processos de transição e como se construíram as relações entre civis e militares após o fim destes regimes. Há uma vasta literatura que trata deste tema e quem vem sendo revisitada, principalmente para que se possa tratar de outro tema: a Justiça de transição, campo de estudo interdisciplinar, cujo número de pesquisadores aumenta no Brasil.

Existem várias especificidades que diferenciam o modo como estas transições ocorreram em cada um destes países. Na perspectiva de uma literatura clássica sobre as transições, na Argentina, o processo de transição teria se dado “por colapso”, ou seja, o regime passava por um processo de desgaste por crise econômica, divergências internas dentro das três Forças Armadas e o ápice da crise, que levou ao fim do regime, foi a derrota para a Inglaterra na Guerra das Malvinas. Dentro deste quadro, a saída dos militares se deu sem uma organização ou tutela das próprias Forças Armadas. Por outro lado, os civis não assumiram de imediato esta situação de crise e se dividiram sobre como deveria ser tratado o poder militar e como seriam tratados os crimes cometidos pelo regime.

Alguns pesquisadores questionam esta visão clássica do “colapso”, e consideram a transição como “contingencial”, tendo em vista que o governo permaneceu por mais 13 meses no poder, tempo suficiente para definir uma agenda política para o país, assegurando os rumos da transição e as eleições em 1983, evitando uma saída do poder desqualificada [2].

O governo Alfonsinista limitou-se, de acordo com Marcelo Saín, à revisão judicial das violações aos direitos humanos, sem que se reformasse e democratizasse as Forças Armadas. A lógica presidencial era de punição dos militares de alta patente envolvidos em violações de direitos humanos e de livrar a maioria dos outros participantes, dentro da lógica da obediência devida. O governo seguinte, de Carlos Menen, caracterizou-se, neste campo, por haver sucateado as Forças Armadas, tirando a obrigatoriedade do alistamento e cortando os investimentos. Com a transição, desenha-se um novo tipo de relação civil-militar: o histórico protagonismo militar cedeu espaço a um outro papel, do militar subordinado, passivo e perdido dentro da burocracia do Estado[3].

O caso uruguaio se configura como uma transição tutelada pelos militares. Tutela esta, exercida em vários âmbitos da vida política: os partidos políticos foram proscritos, e antigos desafetos do regime continuavam proibidos de voltar ao país. A censura não foi desarticulada e as prisões continuavam com presos políticos. Das peculiaridades deste processo, estão a falta de influências externas, ou seja, não houve, como no caso argentino, uma “aventura militar” internacional, tampouco houve grande pressão internacional para o fim da ditadura [4]. Há três hipóteses levantadas acerca do processo de transição uruguaio:

a)As forças armadas eram permeáveis à cultura democrática precedente, pelo que a posição oficial não aceitou um discurso autoritário e continuísta. b) O processo autoritário não foi capaz de dar soluções aos problemas estruturais do país e teve cada vez mais dificuldades de conduzir o Estado e a sociedade. c) As forças armadas foram perdendo seu poder de distribuição, na medida em que sua política econômica foi revelando seu fracasso [5].

Mesmo assim, no apagar das luzes do governo civil-militar, foi aprovada a Lei de Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado, que propunha a não punição dos delitos cometidos por militares e policiais até março de 1985 por mando do governo. Somente em 2011 o Congresso aprovou uma lei que considera delito de lesa-humanidade os crimes ocorridos na ditadura, viabilizando a punição dos agentes do sistema repressivo.

Já no caso brasileiro, tivemos a “transição por transação”, ou transação compactuada. Como muito bem apontou Maria Celina D´Araújo, um dos legados da ditadura civil-militar brasileira, que a distingue de outras ditaduras como a Argentina foi, sem dúvida, a não punição de agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade, devido à lei de Anistia de 1979, que contemplou tanto os crimes cometidos pelos opositores do regime, mas também os agentes torturadores e envolvidos em desaparecimentos. A forma em que a Lei de Anistia foi cuidadosamente articulada pelos setores governistas, criou uma outra situação também atípica nos demais países do Cone Sul: o Brasil é o país em que estes mesmos agentes de Estados que cometeram crimes de lesa-humanidade tiveram mais sucesso como veto players, quando o assunto em questão se relacionava à revisão do passado. Isto pode ser comprovado pelo fato de até o corrente ano sermos o único país da região que não julgou algum policial ou militar envolvido neste tipo de crime. Segundo a autora, isto se deve à existência de uma autonomia militar que vem de antes da ditadura e se mantem até os dias atuais, aliada à baixa cultura de respeito aos direitos humanos na sociedade brasileira e ainda ao desinteresse dos governos, em geral, pelo tema das Forças Armadas.

Parte-se da premissa de que desde 1979 as Forças Armadas fizeram da Lei da Anistia um assunto tabu e atuaram com poder de veto sempre que o tema entrou na agenda política. Contaram para tanto, com o apoio velado ou explícito do Poder Executivo, com a morosidade da Justiça, a inapetência do Legislativo para com os temas dos militares e dos direitos humanos. Tiveram a seu favor, especialmente, o fato de que a sociedade brasileira nunca se mobilizou em defesa de uma política de direitos [6].

Este protagonismo dos militares como veto players pode ser percebido sensivelmente se observarmos a nossa Comissão Nacional da Verdade. Criada em 2012, após uma série de negociações, estabeleceu-se que não teria caráter punitivo. Mesmo uma vez identificados os crimes e seus autores, eles não seriam passíveis de punição. Em toda demanda por justiça dentro desta perspectiva de crimes cometidos por militares, a autonomia castrense veta qualquer avanço.

Mas o problema não se restringe à atuação dos militares. Maria Celina D´Araujo e Sue Ellen Souza realizaram um balanço da posição da imprensa em relação à CNV, quando da sua criação [7]. Entre 2011 e 2012, o argumento mais forte era o da conciliação. De certa forma, como conclui D´Araújo, evidenciava-se um temor de risco do processo democrático e “não raro a Comissão é tratada como ação extemporânea, desprovida de sentido prático, e movida por ação raivosa”. Já a ação militar no combate à violência é vista positivamente. Ou seja, uma baixa cultura de direitos humanos aliada a esta visão “nos colocam num patamar vergonhoso nos rankings internacionais” [8]

Às vésperas do encerramento do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que será realizado em dezembro próximo, foi noticiado que a Comissão defenderá a responsabilização criminal de agentes da ditadura acusados de tortura e morte de militantes de esquerda. Falta decidir se pedirão abertamente a revogação da Lei de Anistia, que protege os acusados, ou se deixará esta tarefa para os partidos e movimentos sociais [9].

Tendo em vista estas considerações sobre relações civis-militares pós-ditaduras e as consequências das transições no modo como se trata este passado presente, buscamos uma leitura dos artigos aqui reunidos, desenhando um panorama da questão: Quais os legados das ditaduras no Brasil e na América Latina?

Optamos pela interdisciplinaridade, para termos uma amostra de como determinados temas são tratados em outras áreas que dialogam com a História. Assim sendo, o artigo que abre nosso dossiê é: “O que resta das ditaduras e o que havia de nós: história e memória nos mecanismos de justiça de transição no Brasil”, de Pedro Ivo Teixeirense. O autor faz algumas reflexões sobre História e Memória quando se trata da temática da justiça de transição no Brasil, bem como apresenta algumas reflexões acerca dos limites que a configuração de dado gênero narrativo impõe a quem produz narrativa inserida nesse contexto. Ainda, Teixeirense apresenta o processo de configuração do gênero narrativo mencionado, que surge por meio da definição de um modelo para a apresentação das demandas de justiça, história e memória no Brasil, em análise restrita ao modelo adotado pela Comissão de Anistia criada no ano de 2001.

O segundo artigo, “Ditadura militar brasileira e produção ideológica: Um estudo de caso com militares que atuaram no período ditatorial”, de Thiago Vieira Pires, analisa a produção ideológica da ditadura civil-militar brasileira, a partir de um estudo de caso. O autor busca compreender como os militares produzem e reproduzem uma determinada ideologia – a da segurança nacional –, que de modo algum os exime das responsabilidades dos crimes por eles cometidos em nome do Estado. Por meio de depoimentos, o autor evidencia a atualidade deste pensamento em determinados setores militares e como persiste uma cultura de desconfiança e monitoramento da sociedade.

O terceiro texto traz novamente a perspectiva comparada. “Fuerzas Armadas y gobierno en Argentina y Brasil: Tres décadas en perspectiva comparada”, de Gregorio J. Dolce Battistessa e María Delicia Zurita problematizam o papel delegado / assumido pelos militares após o fim das ditaduras. Passaram a ser convocados não para ir contra a população, ao contrário, passaram a ser convocados em momentos de tragédias, trabalhos de assistência, desenvolvimento tecnológico e luta contra o tráfico de drogas. Claro que esta mudança no papel das Forças Armadas não ocorreu sem tensões, sobretudo no que diz respeito ao passado ditatorial.

Na sequência, “Do banimento à luta pela Anistia: a Associação dos Anistiados Políticos e Militares da Aeronáutica– GEUAr”, de Esther Itaborahy Costa, traz outro estudo de caso, dos integrantes que lutam por direitos políticos suspensos, por terem perdido suas funções militares na instituição que serviram, perda esta que se deu a partir de uma portaria de 12 de outubro de 1964. Esses ex-militares alegam em seus processos, enviados à Comissão de Anistia, que essa portaria teve caráter exclusivamente político, já que com dez anos de serviço o militar alcançava estabilidade e poderia progredir na carreira chegando a postos superiores. O artigo mostra uma batalha pela memória e por direitos e os limites da justiça para casos como estes.

Por fim, Maria Soledad Lastra contribuiu com o artigo: “Semillas de la recepción a los retornados del exilio argentino y uruguayo”, que analisa as formas de criação de redes de solidariedade e auxílio aos exilados retornados à Argentina e Uruguai. O artigo evidencia as distintas formas de recepção em ambos países, as distintas formas de atuação dos organismos de direitos humanos em torno das agendas criadas no pós-ditadura. A análise comparada mostrou como os processos de transição e o tema do retorno foram inscritas de forma diferente em cada caso: no Uruguai se tornou um dos pilares políticos centrais, que permitiram que se confluísse em partidos políticos e movimentos de direitos humanos, já na Argentina, esta questão foi atendida por organizações muito próximas às de direitos humanos, mas apesar disto, esta questão se tornou politicamente isolada. Ou seja, houve maior integração dos exilados à política no Uruguai e maior exclusão na Argentina.

Ainda visando aprofundar a questão da luta por direitos humanos e exílio, temos: “Explorando las redes transnacionales de derechos humanos en América Latina: los orígenes de la Federación de Latinoamericana de Familiares de Detenidos Desaparecidos. Una entrevista con Patrick Rice”. Mario Ayala apresenta o primeiro secretário da Federacion Latinoamericana de Familiares de Detenidos Desaparecidos (1981-1985), localizada na Venezuela.

Agradecemos aos pareceristas que ajudaram a viabilizar este trabalho e desejamos uma boa leitura!

Notas

  1. Cf. BRANDÃO, Priscila. Argentina, Brasil e Chile e o desafio da reconstrução das agências nacionais civis de inteligencia no contexto no contexto de democratização. Tese de Doutorado. Ciências Sociais. UNICAMP. 2005.
  2. Cf. SAIN, Marcelo. Democracia e Forças Armadas: entre a subordinação militar e os “defeitos civis”. In: D´ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro. FGV, 2000. P.21-55; D´ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. Apresentação. In: D´ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro. FGV, 2000.
  3. CABRAL, João Pedro. A recuperação democrática uruguaia, 1982-1984: Transição via concertação tutelada. http: / / www.historia.uff.br / estadoepoder / 7snep / docs / 026.pdf . Acesso em 21 / 10 / 2014.
  4. AGUIAR, Cesar citado por CABRAL. op.cit. p.2.
  5. D´ARAÚJO, Maria Celina. O estável poder de veto Forças Armadas sobre o tema da anistia política no Brasil. In: Varia História. Vol.28 no.48. UFMG. Belo Horizonte. Jul / Dez 2012. Retirado de: http: / / www.scielo.br / scielo. php?pid=S0104-87752012000200006&script=sci_arttext .Acesso em 25 / 10 / 2014
  6. SOUZA, Sue Ellen. Forças Armadas, Transição e “Verdade”: Brasil e Cone Sul. Departamento de Ciências Sociais. PUC / RJ. 2012. http: / / www.puc-rio.br / pibic / relatorio_resumo2013 / relatorios_pdf / ccs / SOC / CSOCSue%20Ellen%20de%20Souza.pdf . Acesso em 20 / 10 / 2014.
  7. D´ARAUJO. op. cit. 2012.
  8. Comissão defenderá responsabilização criminal de agentes da ditadura. Painel. Folha de São Paulo. 02 / 11 / 2014

Isabel Cristina Leite – Doutoranda em História Social pela UFRJ. Bolsista FAPERJ nota 10. Co-organizadora dos livros: À sombra das ditaduras: Brasil e América Latina. (Mauad, 2014) e Questões da América Latina contemporânea. (Fino Traço. No prelo.)


LEITE, Isabel Cristina. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n. 20, jan / jun, 2014. Acessar publicação original [DR]

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