História e Linguagens Artísticas / Fato & Versões / 2017

“Antes do desejo de conhecimento, o simples gosto; antes da obra de ciência, plenamente consciente de seus fins, o instinto que leva a ela […]”. (BLOCH, 2001, p. 43.) Quanto a isso, não há como discordar de Marc Bloch: nada melhor do que conciliar o trabalho intelectual ao prazer de executá-lo. Por isso, escolher como objeto de análise uma obra artística requer, sem dúvida, uma paixão; um deslumbramento acerca da capacidade dos homens de se reinventarem, de criar canais de comunicação, promovendo uma troca de sonhos, angústias, certezas e, porque não dizer, esperanças. Abre-se, portanto, diante dos pés do pesquisador, um longo caminho onde ora ele direciona, ora é direcionado pelas questões que seu objeto lhe impõe. Por isso, os artigos aqui apresentados são exemplos desse encontro entre o prazer e o trabalho acadêmico.

Sendo assim, este dossiê tem como eixo central uma proposta interdisciplinar entre História e Linguagens Artísticas, em todas as suas especificidades, levando-se em consideração a relação entre indivíduo e sociedade. Desse modo, pode-se afirmar que o suporte teórico se pauta na vertente da História Cultural, a qual ampliou o campo de possibilidades de investigação, resgatando o papel dos sujeitos na construção dos processos históricos.

Partindo-se desses pressupostos, novas temáticas foram postas no seio das questões históricas. Teatro, cinema, mentalidades e literatura ganharam legitimidade, tornando-se objetos de estudo, uma vez que não há como desvincular as representações culturais das posições sociais de seus agentes. Assim, nesse campo de conhecimento mais amplo, os historiadores:

[…] desencantados com a rigidez e o economicismo de um marxismo ortodoxo, assim como rejeitando as velhas concepções positivistas de uma história factual, política e diplomática, a nova tendência passou afirmar a não existência de verdades absolutas, marcando o recuo de uma posição cientificista herdada do século passado [XIX]. Estimulando novos olhares e abordagens com a realidade, em uma e outra vertente, a história social dos anos 60 e 70 restabeleceu o ‘oficio do historiador’. Como um mestre da narrativa, este é alguém que, munido de um método, resgata da documentação empírica as ‘chaves’ para recompor o encadeamento das tramas sociais. No decorrer dos anos 80, a história social desembocou na chamada ‘nova história cultural’, que passou a lidar com novos objetos de estudo: mentalidades, valores, crenças, mitos, representações coletivas traduzidas na arte, literatura, formas institucionais. (PESAVENTO, 1995, p. 12.)

Sob esse aspecto, os objetos artísticos passam a serem vistos como representações culturais e, consequentemente, uma forma de manifestação das posições social-políticas dos grupos ligados a eles. Assim, parte-se do pressuposto de que as linguagens, tal como qualquer documento histórico, deve ser analisada como uma construção que carrega em si “[…] uma relação com os conceitos, as ideias, a visão que o artista tem do mundo, da realidade e das relações dos homens entre si e com a natureza”. (GARCIA, 1988, p. 13.)

Os estudos aqui apresentados estão circunstanciados por uma frutífera relação passado / presente, direcionada pelas inquietações do nosso tempo. Nesse processo, partese do pressuposto básico de que os objetos artísticos são pensados como documentos representativos de momentos históricos diversos, ou seja, carregam as marcas indeléveis do momento em que foram elaborados, afinal, “[…] o que entendemos efetivamente como documentos senão um ‘vestígio’, quer dizer, a marca, perceptível aos sentidos, deixada por um fenômeno em sim mesmo impossível de captar?”. Sendo assim, como todo documento possui sua particularidade, cabe ao “historiador de ofício” respeitá-la e valorizá-la de acordo com modos específicos de leitura.

Da mesma forma, Adalberto Marson se mostra esclarecedor ao intuir que o documento:

Não é espelho da realidade, mas essencialmente representação do real, de momentos particulares da realidade; sua existência é dada no âmbito de uma prática determinada […], é um ato de poder […], um código de relação social; age no presente; e, em sendo representação, é a fala da prática e parte do real. (MARSON, 1984, p. 53.)

Por isso o documento, tal como o historiador, não é e nunca será neutro. Ele carrega todos os sentidos do passado como ele se apresenta ao sujeito histórico no momento em que ocorre, exatamente como a constituição de uma identidade que as pessoas de determinada época construíram em relação ao fato. Dessa maneira, a falta de neutralidade do documento permite, também ao pesquisador, obter a partir das suas estratégias a sua própria interpretação daquele, fazendo da História um campo repleto de possibilidades.[1]

Sob esse prisma, o encaminhamento geral, no nível teórico e temático deste dossiê, envolve preocupações com o impacto social da Arte, com o intuito de observar a intenção e a disponibilidade, por meio de quem cria, em estabelecer conexões. Dessa forma, quando remetemos ao diálogo “História e Linguagens Artísticas”, verifica-se que as opções dos diferentes artistas / obras abordados são direcionadas tanto por seus interesses estéticos, como também são permeados pelos debates que se estabeleceram na conjuntura da sua formação e / ou criação.

Acredita-se, portanto, que a Arte tem uma importante função social, possuindo a capacidade não de transformar a realidade de uma época a qual se apresenta, mas, de acordo com Fernando Peixoto, de agir “[…] diretamente sobre os homens, que são os verdadeiros agentes da vida social”. (PEIXOTO, 1981, p. 13.) Por isso, toda e qualquer linguagem artística pode ser considerada uma forma de expressão política de um determinado período.

Nesse sentido, o presente dossiê apresenta diferentes contribuições ligadas à área da História Cultural, buscando, a partir do diálogo com seus leitores, apresentar as inúmeras possibilidades de estudos possíveis, a partir do olhar especifico de cada pesquisador. Assim, parte-se do pressuposto de que a História é um campo múltiplo, que possibilita uma infinidade de abordagens e temas, bem como de perspectivas teóricometodológicas. E é justamente essa diversidade e interdisciplinaridade, bem como o rigor intelectual e interpretativo, as marcas que o leitor pode esperar dos textos que compõem o dossiê História e Linguagens Artísticas.

Abrindo os trabalhos, Fábio Leonardo Castelo Branco Brito e Francimary Alzira Cavalcante analisam canções consideradas “bregas” ou “cafonas”, escritas por Amado Batista, Odair José, Reginaldo Rossi e Waldik Soriano ao longo dos anos 1970-80. Em “Eu vou tirar você desse lugar”: Amores dançantes na música “cafona” dos anos 1970 e 1980, o leitor terá a oportunidade de ser (re)apresentado, sob um novo olhar e perspectiva, à letras e melodias que fazem parte do imaginário musical brasileiro e, por vezes, consideradas por muitos como um gênero menor. A proposta dos autores é demonstrar a existência de aproximações e distanciamentos entre as composições denominadas “bregas” e as produções da chamada Música Popular Brasileira, a fim de evidenciar que ambas dialogam, cada qual à sua maneira, com determinadas temáticas que insurgem no cenário brasileiro das referidas décadas.

Posteriormente, o leitor poderá apreciar os diálogos estabelecidos entre História e Teatro através das reflexões de Leilane Aparecida Oliveira e Talitta Tatiane Martins Freitas, especialmente no aspecto que tange à recepção de textos teatrais e encenações produzidas na década de 1990 e no início dos anos 2000. Em Historicidade e análise temática – “O Devorador de Sonhos”:– ‘Oleanna’ (1992) e o mito da busca pela felicidade (o mito do capitalismo) Leilane Aparecida se propõe a analisar o dramaturgo norte-americano David Mamet, percebendo de que maneira a imagem de um “autor pessimista” é construída pelos seus críticos e biógrafos. Ao mesmo tempo, se propõe analisar algumas temáticas presentes em suas obras, especialmente em Oleanna, a fim de perceber de que maneira Mamet materializou nos palcos suas experiências, ideologias e visões acerca da sociedade estadunidense.

Já no cenário brasileiro, Talitta Freitas toma como objeto de análise a recepção teatral da peça Sete Minutos, escrita e protagonizada por Antonio Fagundes entre os anos de 2002 e 2004. No seu processo de reflexão, a autora se propõe a evidenciar os aspectos constitutivos dos textos jornalísticos publicados sobre a referida encenação, a partir de um profícuo diálogo entre os documentos elencados e a teoria da recepção. Sendo assim, em “Isso não é pra ler, não te ensinaram, não? É pra forrar gaiola de passarinho”: aspectos sobre a recepção crítica de ‘Sete Minutos’ (Antonio Fagundes, 2002-2004), o leitor não deve se prender apenas aos conteúdos da recepção, mas especialmente sobre as ferramentas analíticas utilizadas pela autora no campo da História Cultural, as quais podem servir de inspiração para outros estudos que se proponham a fazer o diálogo entre o palco e a crítica teatral.

A relação entre críticos e autor está presente também no trabalho de Thales Biguinatti Carias, todavia pelo viés da literatura. Em Como ler um cânone? ou de escritas sobre Alencar que apagam suas ambiguidades o autor faz um instigante exercício de análise do consagrado autor brasileiro José de Alencar a partir das leituras distintas de dois de seus críticos, a saber Antonio Dimas e João Roberto Faria. Ao longo do texto, são apresentadas ao leitor perspectivas e imagens concebidas a respeito do trabalho do romancista e dramaturgo oitocentista, com o objetivo de compreender de que maneira se construiu uma ideia de integridade do cânone.

Abrindo os trabalhos sobre cinema, Julierme Morais nos apresenta uma interessante discussão teórico-metodológica sobre como os filmes são elencados e pensados como objeto de estudo por diversos pesquisadores da História, bem como os desdobramentos desse diálogo no campo da Nova História Cultural. Em Os estudos históricos e os filmes: chaves teórico-metodológicas o leitor terá contato com as perspectivas de importantes pesquisadores que se propuseram refletir sobre o binômio Cinema / História, a partir de analises cinematográficas e de cunho teórico, especialmente à luz de conceitos como representação, recepção cinematográfica e memória.

Fechando os trabalhos, Grace Campos Costa nos apresenta uma reflexão sobre a relação existente entre a moda e o cinema, mostrando-nos a existência de um intrínseco diálogo entre essas diferentes áreas de atuação. Assim, em Discussões entre cinema e moda: da alta-costura ao prêt-à-porter, o leitor poderá acompanhar a análise de diversos filmes que incorporam a indumentária não apenas como figurino das personagens, mas como eixo norteador de suas narrativas. O leitor se surpreenderá com as possibilidades de diálogos possíveis entre as películas cinematográficas e as tendências de vestuário, percebendo como há um processo de retroalimentação entre essas distintas áreas ou, em outros termos, como a moda influência a construção dos filmes, bem como eles influenciam a sociedade na maneira de se vestir.

Sendo assim, convido a todos para desfrutar dessa proposta de enlace entre a História e o campo das Linguagens Artísticas, percebendo a riqueza de possibilidades que esse dialogo interdisciplinar pode propiciar. Tenham todos, uma boa leitura!

Nota

1. Sobre o assunto, conferir: VESENTINI, 1997; e CERTEAU, 2002.

Referências

BLOCH, M. A observação histórica. In: ______. Apologia da história ou o oficio do historiador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.

CERTEAU, M. de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

GARCIA, S. Teorias e práticas do teatro. São Paulo: Hucitec, 1988.

MARSON, A. Reflexões Sobre o Procedimento Histórico. In: Repensando a História. São Paulo: Marco Zero, 1984.

PEIXOTO, F. O que é Teatro? In: ______. O que é Teatro. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.

PESAVENTO, S. J. Em busca de uma outra História: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 29, p. 9-27, 1995.

VESENTINI, C. A teia do fato. São Paulo: Hucitec, 1997

Leilane Aparecida Oliveira – Doutoranda em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Integrante do NEHAC – Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura.


OLIVEIRA, Leilane Aparecida. Apresentação. Fatos e Versões. Campo Grande, v.9, n.17, 2017. Acessar publicação original [DR]

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