Literatura Religiosa na América: Circulação e Recepção / História, Histórias / 2014

Apresentação

Importantes estudos sobre livros, leitores e leituras já foram realizados pelo historiador Roger Chartier desde a década de 1980. Na Europa, publicações sobre práticas de leitura não são temas novos. Além de Chartier, Daniel Roche, AnthonyGrafton, Reinhard Wittmann, Martyn Lyons, Fernando Bouza, Robert Darnton e Jean-François Gilmont também se dedicaram ao tema, com diferentes objetos e enfoques. Sobre a literatura religiosa, vale destacar os trabalhos de Dominique Julia, Ana Cristina Araújo e Olímpia Maria da Cunha Loureiro. No Brasil, historiadores como Luiz Carlos Villalta, Lúcia Bastos Pereira Neves, Márcia Abreu, Marisa Deaecto e Ana Paula Megiani também têm se dedicado ao estudo das práticas de escrita e de leitura, enfocando o período colonial e o imperial. Contudo, o estudo das práticas de leitura, de circulação e de recepção da literatura religiosa produzida na Península Ibérica nas distintas regiões da América Portuguesa ainda é tema pouco explorado no Brasil, mas aos poucos vem ganhando espaço e atenção de pesquisadores, como se pode constatar nos trabalhos de Leila Mezan Algranti, Evergton Sales, Lígia Bellini, Célia Maia Borges e William de Souza Martins.

Na Europa dos séculos XVII e XVIII, profundamente marcada pelo espírito contrarreformista, difundiu-se a produção de literatura religiosa, com destaque para manuais de devoção, catecismos, missais, compêndios, breviários, obras edificantes, vidas de santos e livros de orações, cuja intenção era a de orientar moralmente seus leitores, ensinando-os também a se preparar para a morte.

Sabe-se que durante os séculos XVI, XVII e XVIII cabia à Igreja a autorização da publicação e também o incentivo à leitura de obras de teologia moral pelos fiéis, que não deveriam ficar restritas aos padres. Esta função recebeu incremento significativo durante o papado de Pio IX (1846-1878), que se caracterizou pela republicação de obras de cunho religioso. Na América portuguesa do Seiscentos e do Setecentos, as obras eram adquiridas tanto por leigos, quanto pelo clero secular e pelas ordens religiosas, com destaque para os jesuítas. Tal literatura poderia fazer parte de acervos de igrejas, seminários, irmandades, bibliotecas de ordens religiosas, favorecendo a propagação de instruções católicas para uma vida santa. No século XIX, com a vinda da Corte e a instalação da Imprensa Régia, a publicação e divulgação de obras com conteúdos religiosos foi bastante ampliada.

A circulação dos textos, como nos lembra Chartier, não se reduz a sua difusão impressa, estando especialmente ligada a sua divulgação, que por estar condicionada, muitas vezes, a imposições e expectativas, determinará usos plurais e, consequentemente, graus distintos de imitação e apropriação. A leitura –em sua dimensão coletiva –, segundo este mesmo autor, pode ser pensada como uma relação dialógica entre os “sinais textuais” emitidos pela obra e o “horizonte de expectativa”, coletivamente partilhado, “que governa sua recepção”.

A recepção de tais obras está, portanto, associada à avaliação dos efeitos socioculturais que elas tenham produzido na sociedade. Se a leitura pode ser compreendida a partir da “atualização” do texto, um processo no qual o leitor opera a compreensão, reconstrói e traduz para si, a recepção –a atribuição de significado e construção de sentido –depende do contexto em que o texto está inserido, bem como da forma em que se apresenta disponível para a leitura.

Para Michel de Certeau, as possibilidades de recepção estão relacionadas ao espaço e ao tempo, implicando distintos interesses, criações e significações. O texto permanece o mesmo, mas seus sentidos, certamente, mudam ao longo do tempo e das republicações. Nesta perspectiva, a literatura religiosa produzida –e reeditada –pode ser percebida como resposta às demandas de seu tempo e, portanto, associada à recepção esperada em cada contexto.

O presente Dossiê contempla trabalhos de pesquisadores que vêm se dedicando ao estudo das práticas de escrita e de leitura, privilegiando a análise de obras que podemos enquadrar nacategoria de literatura religiosa, produzidas tanto na Europa, quanto na América ibérica, no amplo período que abarca os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX.

Em “El desarrollo del género biográfico entre los jesuitas del Paraguay antes de la expulsión de España”, o pesquisador argentino Carlos Page discute, a partir da análise de obras inéditas e publicadas pela Companhia de Jesus no Seiscentos e no Setecentos, a diversidade de textos produzidos [hagiografias, martirológios e menológios], as influências e as orientações metodológicas, bem como os objetivos que subjazem à produção de biografias sobre determinados religiosos jesuítas, cujas vidas foram tidas como exemplares –quer tenham sido martirizados ou não –, para a construção de uma memória sobre a atuação do Instituto na América.

No artigo “Quomodo legis? A leitura à luz do método inaciano na novela do jesuíta Alexandre de Gusmão História do Predestinado Peregrino e de seu irmão precito (1682)”, Marina Massimi se propõe a evidenciar a veiculação de conteúdos e métodos dos Exercícios Espirituais, propostos por Inácio de Loyola, e a adoção das orientações presentes na Ratio Studiorumna novela alegórica escrita pelo jesuíta Alexandre de Gusmão, durante o período em que atuou na América portuguesa. Para a autora, além de importante veículo de difusão dos Exercícios, a novela escrita por Gusmão apresenta evidente sentido pedagógico, ao propor um método de leitura orientado pelos Exercícios inacianos.

Já Eliane Cristina Deckmann Fleck e Mauro Dillmann, em “Escrita, práticas de leitura e circulação de manuais de devoção entre Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX”, apresentam evidências da circulação de manuais de devoção entre a metrópole e a colônia e, especialmente, de sua larga utilização por clérigos e fieis católicos portugueses e brasileiros, através de um levantamento das obras que foram reeditadas ao longo deste período junto à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, ao Memorial Jesuíta da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, à Biblioteca Nacional Portuguesa, em Lisboa, e à Biblioteca Joanina, em Coimbra. Muitos desses manuais, dentre os quais, se encontram Gritos das Almas do Purgatório, escrito pelo padre Joseph Boneta, Desengano dos Pecadores, de autoria do padre Alexandre Perier, e Mestre da Vida que ensina a viver e morrer santamente, do padre João Franco, receberam inúmeras reimpressões entre o século XVIII e o XIX e integraram acervos eclesiásticos e particulares, o que parece apontar para sua aceitação entre os leitores católicos e o reconhecimento de sua importância pela Igreja Católica.

Em “Os livros da Ordem Terceira de São Francisco entre Portugal e a América portuguesa nos séculos XVII e XVIII”, Juliana de Mello Moraes não apenas avalia a produção e a utilização de obras direcionadas às Ordens Terceiras de São Francisco entre as comunidades de fieis católicos da América portuguesa, nos séculos XVII e XVIII, como também destaca o papel relevante que elas desempenharam, visto que sua leitura e uso ultrapassaram os círculos eclesiásticos, sendo utilizadas pelos leigos vinculados à agremiação em distintas capitanias, incluindo a cidade de São Paulo.

Daniel Luciano Gevehr, em “Um jesuíta alemão no Brasil meridional conta a história dos Mucker: o cenário e sua protagonista através da narrativa de Ambrósio Schupp”, apresenta-nos uma análise da obra Os Muckers, escrita pelo padre jesuíta alemão Ambrósio Schupp, que iniciou suas atividades no Brasil justamente em 1874, ano em que o conflito, que abalou certa região do Rio Grande do Sul, chegou ao fim. Gevehr se debruça sobre as representações presentes na obra –publicada originalmente na Alemanha, em 1900 –, apontando para o papel que desempenhou na produção e difusão de uma memória tanto sobre o conflito, quanto sobre Jacobina –a mulher que liderou os revoltosos instalados no morro Ferrabraz –, e para as concepções de ciência e de história que fundamentaram a narrativa do religioso jesuíta.

Finalizando o Dossiê, no artigo“Literatura religiosa nas trincheiras: o Manual de Orações do Soldado Brasileiro”,Adriane Piovezan analisa oManual de Orações do Soldado Brasileiro, compilação de orações distribuída aos soldados que integraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) e foram enviados ao front italiano na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), detendo-se,sobretudo, nas manifestações de religiosidade e nas atitudes dos combatentes face à iminência da própria morte, dos seus companheiros e da dos seus inimigos.

Rio Grande do Sul, dezembro de2014.

Profa. Dra. Eliane Cristina Deckmann Fleck(UNISINOS)

Prof. Dr. Mauro Dillmann (FURG)

ORGANIZADORES

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