As NTICS e a escrita da história no tempo presente / Revista Transversos / 2017

No início deste século, refletindo acerca das mutações pelas quais passava o mundo da escrita, Roger Chartier afirmou que a “resistência” e o “estranhamento” do historiador à utilização ou a interveniência das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs) no seu fazer pareciam-lhe “lamentações nostálgicas”. Por outro lado, completava, outros olham para esse novo espaço de interação e produção textual com “entusiasmos ingênuos”.

Passada quase uma década dessas palavras, o que mudou na discussão sobre essa questão no Brasil e no mundo? Com certeza, muitos escritos já se somaram às ideias apresentadas pelo historiador francês na 10ª. Bienal Internacional do Livro. Mas, basta uma rápida visita aos trabalhos produzidos no país e verifica-se que a maioria discute formas de utilização das NTICs, relatam experiências, principalmente em sala de aula, mas, poucos se arriscam a romper o limiar de pensar a utilização dessas tecnologias por um viés funcional e auxiliar à escrita da história no tempo presente.

A proposta do presente dossiê pela linha de pesquisa Escritas Contemporâneas de História, do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades – LEDDES / UERJ, pretende dialogar com aqueles profissionais – acadêmicos ou não – que ousam romper o “estranhamento” dessa fronteira e compreender, sem o objetivo de profetizar, lembrando mais uma vez Chartier, que a história se escreve no e para o presente, refletindo seus problemas e incorporando as tecnologias e as ferramentas existentes para essa escrita. Compreendendo, acima de tudo, “os significados e os efeitos das rupturas que implicam os usos” das NTICs nas escritas da história nos dias de hoje, seja a escolar, a pública, ou a historiográfica.

Convidamos historiadores e demais profissionais que pensam a escrita da história ou a produção de narrativas, fundamentais para a materialidade do conhecimento histórico, a enviarem suas reflexões acerca do tema. Rompendo com a perspectiva apresentada acima, temos certeza que os trabalhos que passamos a apresentar (re)significaram a demarcação estabelecida há quase vinte anos para esta discussão e buscaram interpretar fronteira como um lugar de encontro e não apenas de limites.

O artigo que abre o dossiê é de autoria do jovem historiador digital Ricardo Pimenta. Sua reflexão problematiza os desafios do historiador contemporâneo mergulhado em uma época na qual o processo de produção do conhecimento, mesmo que de maneira transversal, está sendo intermediado pelas novas tecnologias de informação e comunicação. Além de ter que ampliar sua capacidade transdisciplinar, um limite antigo do profissional da área que se complexifica neste novo século, a pesquisa científica e sua divulgação são certamente atravessadas pela consciência de que para “a massa de ‘visualizadores de informação’, saber sobre um assunto, sobre um fato histórico, ou sobre qualquer informação ordinária, resume-se em consultar os motores de busca dispostos na internet”.

Pimenta nos lembra que a cultura digital, característica do presente e na qual estamos todos mais ou menos mergulhados, para além de nos exigir o desenvolvimento de novas competências, modifica estruturalmente pressupostos conceituais com os quais trabalhamos. Será que os regimes de historicidade serão sobrepostos por um ”regime de informação”?

Uma cultura marcada pela atuação e expressão de uma techné marcadamente multimodal e pela práxis da convergência dos registros / escritas / produções existentes no espaço eletrônico onde a relação com a representação do passado, enquanto prática informacional, é plenamente “atravessada” pelos suportes e plataformas mediadoras da informação, convidando-nos a refletir sobre nós mesmos e nossa relação com o tempo e espaço na era digital.

Outra porta abre-se acerca da influência da cultura digital na produção de sentido para informação / conhecimento histórico nos dias de hoje com o artigo O portal Metapedia: revisionismo histórico e negacionismo no tempo presente. Neste trabalho, Diego Leonardo Santana e Dilton Maynard analisam a criação de uma enciclopédia digital – o portal Metapidia – por grupos de extrema direita negacionistas. O portal, segundo os autores, apresenta conceitos e biografias, construídos a partir do revisionismo negacionista, oferecendo versões diferentes para os acontecimentos e conceitos históricos, sobretudos aqueles ligados à Segunda Guerra Mundial.

A análise de verbetes do Metapidia permitiu a Santana e Maynard problematizar um tipo de reescrita da história sendo desenvolvida na e pela rede mundial de computadores e o fato da internet servir de suporte na produção / divulgação pedagógica de posicionamentos intolerantes: “No Metapedia a história tem papel importante, ela colabora sensivelmente para legitimar uma visão fascista de mundo. Se tudo é uma farsa criada pelos adversários, cabe revisar a história e demonstrar o verdadeiro significado das coisas”.

O caráter pedagógico do espaço digital também é explorado por Raone Ferreira de Souza. Mas, seu artigo O podcast no ensino de história e as demandas do tempo presente: que possibilidades? discute a potencialidade das NTICs para o ensino de história escolar. O autor entrelaça História Pública e o campo do Ensino de História para, partindo de questões candentes no tempo presente, pensar a constituição do saber histórico escolar a partir do desenvolvimento de uma oficina de podcast.

Dialogando com a História Digital, Souza afirma que a hipertextualidade, característica das redes digitais, alterou os modos de produção historiográfica. O professor deve estar atento, portanto, às narrativas históricas produzidas a partir desta influência e, mais do que tolerar a sua presença na cultura escolar, utilizar-se delas como ferramenta para a história escolar fazer sentido para os aprendizes. O projeto “Histórias na podosfera”, oficina desenvolvida para que professores de história pudessem utilizar a mídia Podcast como meio de produção de narrativas históricas no espaço escolar, foi a fonte fundamental da reflexão de Souza.

Nosso dossiê também flana pelas vias mais públicas da história sob a guia de Daniel Carvalho Pereira, que nos oferece uma leitura saborosa da historiografia alemã recente para pensar interfaces possíveis entre Ensino de História e como diz no título de seu artigo a Didática da História Pública. Pereira, em diálogo com autores como Jeisman, Bergman e Rüsen nos fala da importância de concebermos uma literacia da História mais alargada, que dê conta de outras (novas) formas de estar no mundo, o que, para o autor, necessariamente, deve ultrapassar as paredes da sala de aula.

Argumentando em favor de uma postura autoreflexiva da didática, ou da Geschichtsdidaktik, que no alemão refere-se especificamente à Didática da História reconectada à Teoria, Pereira poderia parecer sugerir um retorno à teoria que nos encerraria mais uma vez entre os muros da Torre de Marfim da Academia, entretanto, costura caminhos mais híbridos, ou porosos, por assim dizer, ao amarrar a teoria a uma visão fundamental de consciência histórica que se engaja inexoravelmente com uma agência do público inconcebível se permanecemos entre os muros da escola e / ou da universidade. Assim, seguindo as indicações de Pereira, a História Pública parece ser a chave mestra para abrir as portas da sala de aula a práticas que nos permitam reelaborar a Geschichtsdidaktik numa roupagem de Didática da História Pública, e as tecnologias digitais, também aí, parecem ser grandes aliadas.

Com um objeto bastante distinto dos demais artigos vistos até aqui, Igor Lemos Moreira dá o play para outra faixa do dossiê – onde a música pop e ícones efêmeros desse universo particular se encontram com conceitos historiográficos do porte de espaços de experiências e horizonte de expectativas, de Kosseleck. Noutro registro, porém, daquele de Pereira, aqui a historiografia alemã dá “pano para manga” na discussão de outro espaço de importância nesse dossiê que não é a sala de aula, mas o vasto mundo da World Wide Web, neste caso como arena para disputas narrativas no Tempo Presente. Ao analisar um artigo em um portal da web como fonte histórica para se pensar regimes de historicidade e modelos biográficos, Moreira nos alerta para a importância de, na Era Digital, repensarmos o estatuto das fontes históricas e nos lançarmos na, de certa forma, melindrosa, atividade de fazer a crítica histórica de um “documento” completamente novo (born digital) que, pelo seu inerente contexto (a Web) tem dinâmicas bastante distintas das fontes que costumamos encontrar bem guardadas em arquivos.

Se a discussão da influência da tecnologia digital nas mudanças do regime de historicidade contemporâneo parece ser um eixo recorrente, mesmo que indiretamente, na análise de parte dos artigos desta coletânea, a pesquisa que fecha o dossiê aprofunda tal discussão com aportes da ciência da Comunicação.

O trabalho de Marialva Carlos Barbosa – Comunicação: uma história do tempo passando – se debruça sobre quatro décadas de pesquisas de pós-graduação desta área do conhecimento e conclui sobre a especificidade presentista destes estudos. Para a autora, o esfacelamento da articulação entre passado, presente e futuro que caracteriza os nossos dias é também uma consequência da forma como a mídia, seja a tradicional ou a informacional, realiza sua construção temporal.

Interessante pensar como em um tempo marcado pela hegemonia da pauta midiática, onde os meios de comunicação e suas narrativas exercem papel estratégico e se apregoam como produtores de uma história imediata, a escrita da História pode ser influenciada. Afinal, como diz Barbosa: “A temporalização do presente contida nas premissas do olhar comunicacional caracteriza-se pelo agora mesmo, isto é, percebe a ação humana, sobretudo, num tempo presente que passa durando”.

Fazem parte também da temática proposta para o presente dossiê a entrevista com a professora e pesquisadora em Ensino de História Marcella Albaine e a resenha de seu editado livro Ensino de História e Games: dimensões práticas em sala de aula realizados respectivamente pelas responsáveis por esse número da TransVersos, Anita Lucchessi e Sonia Wanderley. Nada como valorizar o trabalho de uma jovem profissional que leva a sério a proposta de refletir / trabalhar a partir do diálogo entre saberes e narrativas de diferentes origens, incluindo aí aqueles que chegam à cultura escolar por conta da massificação da cultura digital, o saber histórico escolar e a teoria da história.

Por fim, o mesmo frescor corajoso que identificamos nos trabalhos que fazem parte do dossiê temático, encontramos no artigo livre que fecha este número da revista. Guilherme Moerbeck e Luciana Velloso discutem como utilizar o conceito de cidade, em suas múltiplas possibilidades – temporais, espaciais, territoriais, simbólicas, de pertencimento e identitárias – como ferramenta na construção das noções de cidadania e de urbano para alunos do Ensino Fundamental de uma escola da região metropolitana do Rio de Janeiro, o município de Duque de Caxias.

Inquietos didaticamente, os professores visitam recentes discussões teóricas do campo historiográfico e de outras ciências sociais para planejarem uma aula como um texto autoral que reflita as especificidades do saber histórico escolar e produza sentido para o cotidiano de seus alunos, sujeitos que, como lembram, vivem em uma cidade que está dividida e divide.

Anita Lucchesi

Sonia Wanderley


LUCCHESI, Anita; WANDERLEY. Sonia. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.11, set. / dez., 2017. Acessar publicação original [DR]

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