Manifestações Culturais: perspectivas da diversidade / Antíteses / 2010

Ao ler o conjunto de textos que compõem este dossiê intitulado Manifestações Culturais: perspectivas da diversidade, lembrei-me de Machado de Assis. Quando reuniu uma série de contos num volume que foi publicado por B. L. Garnier em 1882, ao qual denominou Papéis Avulsos, Machado acrescentou uma advertência à edição. Nela, ele lembrava a seus leitores que o título da obra poderia levar à idéia de que o livro carecia de uma unidade, por reunir escritos de ordem diversa, concluindo: “Avulsos são eles, mas não vieram parar aqui como passageiros que aceitam entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma mesma família, que a obrigação do pai fez sentar à mesa”.1

As palavras de Machado bem poderiam servir de epígrafe a este dossiê cujo subtítulo nos remete a uma imagem de fragmentação que pode sugerir ausência de unidade a um conjunto de artigos que abordam temas diversos ligados a diferentes temporalidades, espaços geográficos e vieses teóricos. Mas esta falta de unidade é apenas aparente, pois os textos nele presentes fazem parte de uma mesma “família” que agrega historiadores os quais trabalham com a intenção partilhada de procurar traduzir o mundo a partir da cultura através de manifestações tais como discursos, palavras, práticas, representações e imagens. De uma “família”, poderíamos acrescentar, muito parecida com uma família de carne e osso, na qual existem discussões e desentendimentos constantes, uma vez que a História Cultural é capaz de abrigar pesquisas de naturezas diversas associadas a diferentes (e por vezes antagônicos) modos de conceber o fazer historiográfico, de formular questões e de abordar a documentação, ligados a tradições historiográficas distintas, sem que isto as impeça de “sentar à [mesma] mesa”.

Sem dúvida que esta diversidade tem sido, dentre outros fatores, um dos pontos polêmicos que a ela tem atribuído o fato de a História Cultural ter ido longe demais, do que decorreria sua fragilidade e um patente “ecletismo e inconsistência teóricos” cujos desdobramentos seriam “uma série de desacertos e incongruências” tais como generalizações imprecisas e insustentáveis construídas a partir de relações conjecturais que seriam menos analíticas e mais descritivas.2 Como decorrência, e ainda a partir deste ponto de vista, a História Cultural seria um rótulo opaco e sem significado consistente, que acabaria por abrigar, “tal qual as mentalidades, histórias pitorescas, de grande apelo público, porém supérfluas, sem qualquer chance de desvendar as forças propulsoras, explicativas do movimento da História”,3 dela podendo-se esperar um desgaste definitivo e um fim próximo.

Cultura é uma palavra que ganhou espaço significativo em estudos elaborados por historiadores nas últimas duas décadas, na maior parte das vezes querendo dizer coisas diferentes. No Brasil, particularmente, cultura é uma palavra recorrente em estudos, pesquisas e análises históricas, sem contar que em vários títulos de cursos de graduação, linhas de pesquisa de pós graduação de diferentes universidades, núcleos, centros de pesquisas revistas acadêmicas e… dossiês! Esta presença aponta para a vitalidade da História Cultural sugerindo que seu fim parece não estar tão próximo assim, ainda que para alguns tal vitalidade seja vista como um sinal da propagação de certos “modismos” que de tempos em tempos assaltam a comunidade de historiadores.4

Não vou me ater a estas e outras críticas, uma vez que melhores penas já se incumbiram de respondê-las com propriedade e competência, e também porque seria evidentemente impossível aprofundar nas poucas páginas de uma apresentação todas as questões levantadas em torno da História Cultural nos últimos tempos.5 Para nossos objetivos, creio ser mais importante sublinharmos que o leitor terá oportunidade de constatar, nos trabalhos aqui reunidos, que esta tão propalada diversidade não é neles sintoma de fragilidade nem tampouco explicitação de “modismos”. Ainda que voltados para preocupações múltiplas, que são a de cada autor, estes artigos baseiam-se em pesquisas empíricas sólidas que objetivam compreender as marcas e as mudanças permeadas por conflitos e tensões construídas no campo de debates e embates culturais travados pelos homens em outras épocas. Deste movimento configura-se um rico painel em que a cultura é vista como algo dinâmico e em constante mutação e reconfiguração reconhecendo-se, simultaneamente, a diversidade como uma característica positiva de um campo de estudos que, apesar dos limites e problemas que apresenta, tem trazido uma contribuição imprescindível para a historiografia mundial.

Estes são alguns dos pontos que os artigos que compõem este número da Antíteses apresentam, os quais evitamos resumir para com isto não diminuir o prazer do leitor na sua jornada. Com este número a revista procura mostrar, mais uma vez, graças à colaboração de autores, pareceristas e de todos os envolvidos em sua produção e edição, seu desejo de abordar com qualidade algumas das facetas dos recentes debates travados na historiografia. A todos que participaram deste processo ficam, aqui, nossos sinceros agradecimentos. E de você, caro leitor, despedimo-nos desejando que a viagem proporcionada por esta leitura faça jus às suas expectativas e que a partir dela você possa criar sua própria leitura dos temas enfocados, pois, afinal, esta capacidade autoral pertence a todos que se acercam de um texto.

Silvia Cristina Martins de Souza e Silva.

Coordenadora do Dossiê

Londrina, junho de 2010

Notas

1 ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008, p. 236.

2 PESAVENTO, Sandra J. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário, Revista Brasileira de História, vol. 15, nº 29 (1995), pp. 9-27.

3 Apud AZEVEDO, Cecília. Identidades compartilhadas: a identidade nacional em questão. IN: ABREU, Martha e SHOIET, Rachel (orgs). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 40.

4 VAINFAS, Ronaldo. História Cultural e Historiografia Brasileira, História: Questões e Debates, Curitiba, nº 50, 2009, p. 233

5 Ver para tais críticas, dentre outros, VAINFAS, Ronaldo, op. cit. ; PESAVENTO, Sandra J. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008; BURKE, Peter, O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2005 e LARA, Silvia Hunold. História Social e História Cultural, Diálogos, UEM, vol. 1, nº 1, 1997.

Acessar publicação original desta apresentação

Acessar dossiê

[DR]