Mécanique Quantique: Une Introduction Philosophique – BITBOL (P)

BITBOL, M. Mécanique Quantique: Une Introduction Philosophique. Paris: Flammarion, 1996, 471p. Resenha de: SCHINAIDER, Jailson. Principia, Florianópolis, v.16, n.1, p.185–208, 2012.

Tentar responder o que Bitbol chama de “paradoxo quântico”, a saber, dizer sobre o que a mecânica quântica (MQ) trata e o que ela significa “car cela même ne va pas de soi”, é o objetivo do autor em sua obra. Para isso, tenta compreender essa teoria a partir de certas atitudes tácitas que condicionam a vida do cientista, a comunicação entre seus pares e o trabalho no laboratório procurando, até mesmo, reconduzir a ciência aos gestos mais elementares de pesquisa. Todo esse arcabouço teórico e prático refletiria, segundo o autor, as condições de possibilidade para a objetivação dos resultados experimentais, já que até a própria forma de manipulação experimental selecionada pelo cientista depende de critérios de escolha que vão trazer à tona uma ou outra característica do objeto quântico.

Para Bitbol devemos, neste sentido, primeiramente colocar à parte a eficácia da MQ em dizer como a realidade funciona do que se crê ser a natureza dessa realidade.

Com efeito, diz ele, ao dotarmos as partículas quânticas como entidades que possuem propriedades (sejam essas propriedades o que forem), acabamos por tornar esses ‘objetos’ presos ou diluídos nos próprios pressupostos que subsistem na linguagem empregada e às circunstâncias familiares de seu emprego (algo como se os moldássemos, ab initio, a uma pré-concepção). Segundo o autor isto causa, entre outras coisas, paradoxos que aparecem quando se confronta os enunciados experimentais quânticos com a linguagem ordinária que está maculada, às ocultas, pelo uso de substantivos e predicados. É necessário assim trazer à tona este tipo de choque da teoria com esse corpo de pressupostos já tidos de antemão, os quais tem a mecânica clássica (MC) como matriz de sua elaboração: deve-se buscar compreender o desenvolvimento conceitual dos princípios da MQ lá nos últimos fragmentos do “mobilier ontológique” (p. 9) originados em interpretações respaldadas pela física clássica.

O objetivo principal que norteia todo o livro é, assim, responder o que é o objeto quântico. Para isso a obra está organizada da seguinte forma. No cap. 1 é dada uma preparação filosófica para esta tarefa de conceituação (que por sua vez aparecerá, principalmente, no cap. 2). Se procura, entre outros objetivos, responder questões como onde repousam as interpretações do esqueleto teórico encontrado hoje e qual sistema de entidades dirige a pesquisa em física, tendo em conta as restrições operatórias formalizadas pela teoria. No cap. 3, é discutida uma das possíveis resposta a essas questões, comumente encontrada na comunidade científica e filosófica, que afirma que a teoria não refletiria nada mais que manipulações experimentais. Para o autor, esta opção aparentemente muito sóbria ocasiona graves inconvenientes (p. 10), e os próprios autores que partilhavam dessa ideia em parte ou totalmente (p. ex. Heisenberg e Bohr) não tomaram consciência de todas as consequências de tal visão. Em suma, nesse capítulo é feita então uma reflexão sobre os limites do instrumentalismo. No cap. 4 é feita uma análise interpretativa do vocabulário e das representações corpusculares que ainda permanecem respaldadas a despeito das críticas a elas endereçadas. É necessário, diz o autor, ver a que preço elas podem ser mantidas. O conceito de propriedade de um objeto é colocado, já no início, em discussão a partir de duas frentes: as propriedades imediatamente acessíveis e as ocultas, que só se manifestariam indiretamente (através de ‘ações’ experimentais) e que devem levar em conta, de um modo indissociável, a configuração de um aparelho que as modifica. Examinam-se também os conceitos que alicerçam a individualização e reidentificação dos corpúsculos quânticos e, por sua vez, algumas soluções para o caractere não individual desses objetos. A quinta e última parte concerne à análise das novas ontologias que se oferecem como uma (nova) possível interpretação exata dos símbolos da teoria, ao invés que como “survivances de phases atérieures de l’entreprise de connaître” (p. 11). O autor questiona se o enigma que persiste na MQ não estaria relacionado ao fato de exigirmos uma teoria que diz alguma coisa do mundo de um modo representativo e simbólico enquanto que, por outro lado, ‘forçamo-la’ a se concentrar apenas sobre regras operatórias neutras. Para o autor, devemos então tomar consciência não mais do que é o mundo, mas sim do ser no mundo (“d’etre-dans le monde”) que somos, tentando levar em conta todas as possibilidades de nos comunicarmos e de agirmos “au sein du monde” (p. 13, grifos do autor). Em derradeiro, se apresentam três anexos que muito auxiliam as discussões contidas no texto (são eles, (1) o desenvolvimento de uma estrutura lógica de linguagens experimentais que permitam falar de dispositivos ou contextos quânticos, (2) uma demonstração do teorema (ou desigualdades) de Bell e (3) uma demonstração do teorema de Kochen e Specker).

O autor inicia suas discussões no cap. 1 afirmando que, em geral, a MQ apareceria como uma teoria que renuncia a função de explicar os fenômenos, tendo então apenas uma função preditiva. É necessário, desta forma, entender o que é uma explicação e qual a sua relação com os conceitos de descrição e de predição. Uma explicação é tradicionalmente definida como uma assignação causal ligando os acontecimentos através de uma (ou mais) leis da natureza, podendo fornecer assim um esquema dedutivo: antecedentes ! leis ! fenômenos. Para o autor, porém, esta visão não descreve uma ‘verdadeira’ explicação: uma explicação legítima também deve conseguir conectar um fenômeno conhecido às suas causas desconhecidas, tornando-se um instrumento preditivo de novos fenômenos e fazendo-a, assim, se ‘libertar’ da fragilidade indutiva que a edificou. Entre explicar, descrever e predizer existem diferenças que não seriam intransponíveis.

A explicação pressupõe, porém, a possibilidade de uma reversibilidade temporal das leis que somente é conseguida se estas são deterministas e estáveis. Quando as leis são, por sua vez, indeterministas ou os acontecimentos manifestam um comportamento caótico, temos três possibilidades. A primeira consiste em manter intacto o paradigma de irreversibilidade temporal e nos ater a uma lei de evolução de probabilidades.

A segunda se faz em invocar uma autonomia da explicação, no sentido de que se ressalta a atitude de uma teoria em conferir uma certa ‘intengibilidade’ às situações observadas (este modo de ver, afirma Bitbol, é típico das ciências históricas (p. 24)). Por último, temos uma solução que parte de prioridades epistemológicas e conduz à autonomia da predição. Neste caso é suficiente constatar que os cenários parciais ou completos que puderam conduzir a um acontecimento ‘e’ são sempre reconstitutíveis a posteriori e fazem funcionar o formalismo preditivo que esgota a possibilidade de ‘e’. Esta última alternativa pode ter críticas: em primeiro lugar, uma reconstituição não é necessariamente única e, em segundo lugar, podemos ter o caso em que devemos levar em conta as condições de atestação experimental dos processos ocorridos, pois isto altera o modo de funcionamento do formalismo preditivo. Esse é o caso da MQ.

Assim, para o autor, o que faz a especificidade da MQ não é tanto seu aspecto indeterminista, mas exatamente a distância que ela estabelece entre seu formalismo e a ocorrência de um evento: ela é um esquema preditivo condicional dependente de uma interposição instrumental. A determinação dos objetos quânticos é sempre relativa a um tipo de aparelhagem utilizada, de modo que nenhuma determinação absoluta do objeto aparece sem ser resultado de sua interação com a aparelhagem (di-ser-ia que, na microfísica, todas as propriedades dos átomos são derivadas e não existe nenhuma propriedade física imediata e direta). As teorias clássicas, por sua vez, repousam sobre a hipótese de que as coisas têm características próprias e que um dispositivo experimental apenas revela propriedades que já existem. Um resultado, em MC, é invariante pela modificação das sequências e dos tipos de aparelhos experimentais utilizados, podendo ser abstraído das condições de sua aparição e podendo ser associado a um núcleo assumido como a coisa mesma. Na MQ isto não é mais permitido: a não comutatividade dos ‘observáveis’ em MQ traduz a dependência dos resultados experimentais à sequência de utilização dos aparelhos. A perspectiva de uma perfeita invariância dos resultados de medida frente às modificações da sequência de intervenções experimentais não pode mais ser sustentada, pois cada resultado é uma ocorrência singular, determinada pela irreversibilidade dos processos que o trazem à tona e está, indissoluvelmente, ligado a uma história experimental. Nestas condições, afirmarmos que o objeto possui alguma propriedade em si mesmo, independente do contexto experimental (mesmo a teoria não exprimindo, em seu seio, a afirmação da existência ou não existência dessas propriedades) seria muito arriscado. Desta forma, o que será proposto pelo autor nos próximos capítulos consistirá em assumir esse agnosticismo estrutural (p. 30) da MQ, tentando saber quais condições e em quais circunstâncias particulares é possível ultrapassar tal agnosticismo e religar os símbolos da teoria física ao universo de coisas e de determinações próprias.

Porém, sem a representação de um nível subjacente de objetos, como então explicar o que aparece em uma experiência ou até mesmo descrever a sequência de acontecimentos que existe entre a preparação experimental e a detecção? É necessário, diz o autor, um instrumento matemático; um cálculo de probabilidades preditivo, que não se apoie sobre um quadro explicativo e que se crê não ser derivado de nenhum quadro descritivo. O que se quer é um tipo de isolamento da obra preditiva e, a partir disso, reintroduzir a figura familiar da descrição e da explicação. Para o autor, se a MQ descreve algo, é a evolução do instrumento preditivo em si mesma: a evolução do vetor de estado.

O cálculo clássico de probabilidade (CCP), porém, não é aplicável à situação em que se encontra na MQ. Com efeito os postulados aparentemente inocentes dessa teoria probabilística têm em conta vários pressupostos ontológicos como, por exemplo, que os objetos possuem propriedades pré-determinadas. Mas na MQ o conjunto de ocorrências sobre as quais se manuseiam suas valorações probabilísticas permanece indefinido enquanto um observável não é fixado. Soma-se a isso o fato de que a CCP repousa sobre alguns postulados restritivos segundo os quais a gama de possibilidades de cada um dos termos que devem ser assumidos em uma ponderação probabilística é um conjunto de sub-conjuntos de acontecimentos elementares, estruturado pelas operações de intersecção, reunião e complementação. Em MQ, porém, a conjunção é limitada ao conjunto de observáveis dito “compatíveis”. Além disso, como atestam as experiências da fendas de Young, não podemos (neste caso) conjugar os contextos experimentais dessa experiência da mesma forma que conjugamos conjuntos na teoria de probabilidades clássica, por exemplo. Com efeito, um contexto experimental em que temos as duas fendas abertas, nesta experiência, não é equivalente à ‘soma’ do contexto experimental [‘fenda 1 aberta’ + ‘fenda 2 aberta’]: é um outro contexto que possui características próprias e individuais. Neste caso, diz Bitbol, são excluídas as conjunções e disjunções de proposições onde uma experiência determinada (sujeito) seria a mesma mas onde os predicados apareceriam respectivamente a duas gamas (possibilidades) experimentais distintas de resultados possíveis. Nesses casos (da MQ) a pluralidade de contextos experimentais não tem nada de circunstância acessória e deve ser levada em conta.

O autor questiona, em sequência, em quais circunstâncias se é então autorizado a portar uma unidade de predicados para todas as gamas possíveis e/ou em quais condições se pode voltar a ter uma só gama possível, uma só linguagem experimental, e uma só lógica afirmando a unificação do contexto experimental de modo então que seja permitida a conjunção e a disjunção das proposições dessa gama. No caso de uma linguagem descontextualizada (ou seja, onde não importa o contexto), os sujeitos das proposições não precisam incluir os contextos experimentais em sua definição e os predicados operam como dando determinações absolutas dos sujeitos.

Este caso também pode antecipar outras determinações que podem ser atribuídas por outros meios e contextos experimentais a acontecer e podemos ter, assim, uma situação de objetivação que o autor chama de um “conceito transcendental de propriedade” (p. 48).

Todavia, diz ele, a necessidade de recontextualização (que tem como paradigma a MQ) se mostra, de toda a forma, contrária à não contextualidade da própria linguagem que é empregada na própria descrição de ‘contexto’ (que se dá através do uso de termos e predicados descontextualizados) e também — de um modo mais sutil— através de um programa de pesquisa pré condicionado pelo uso de substantivos e predicados já estruturados em uma linguagem que é, como dito, ab ovo descontextualizada.

O nascimento da MQ assinalaria, então, a inadequação de tais linguagens não contextuais? A discussão precedente conduz a pensar que mesmo estando tal inadequação agora já admitida, ela não apareceria claramente no discurso interpretativo formulado na linguagem utilizada para falar das coisas que estão em nosso entorno e dos aparelhos de medida que conduzem nossa forma de ação experimental.

A persistência desta forma, entre os físicos, para se poder falar de objeto de investigação experimental, manteria em estado de sobrevivência artificial as propriedades absolutas, frente à superfície das aparências relativas da utilização dos diversos contextos experimentais. A falha das (ou em se manter as) linguagens não contextuais, diz o autor, só poderia ter então duas consequências ambíguas: um discurso rasgado [“écartelé”] entre a estrutura da linguagem empregada e os sinais manifestos da sua inadequação, e uma controversa confusa e persistente de uma teoria incorporando em seu formalismo a contextualidade das determinações que ela rege. Reconhece-se aqui, diz Bitbol, a situação que tem prevalecido em todos esses anos de debate sobre a interpretação da MQ.

Em sequência, o autor então desenvolve uma linguagem experimental permitindo falar dos contextos correspondentes às diversas variantes da experiência das fendas de Young e das proposições elementares pertencentes às linguagens contextuais correspondentes. Esta linguagem é chamada pelo autor de linguagem metacontextual não distributiva, porque descreve diversos contextos e linguagens contextuais onde as proposições enunciam a implementação de contextos experimentais enumerando os estados de coisas em que estes contextos rendem possibilidades.

Ela se opõe a uma linguagem contextual onde as proposições singularizam certos estados de coisas entre os que são possíveis para um contexto experimental particular.

Esta construção é feita em três etapas (Anexo 1): (a) trabalha-se com apenas um contexto, que pode ser estruturado utilizando-se os axiomas de uma álgebra de Boole e as notações da lógica clássica, (b) extrapola-se o uso dos conectores (ou operadores) lógicos para a formação da combinação de várias linguagens contextuais (obtendo-se assim uma linguagem meta-contextual) e (c) após ter reconhecido a insuficiência destes operadores lógicos face a variedade de linguagens e de contextos experimentais derivados da experiência das fendas de Young, são introduzidos novos operadores, mais gerais, e se prova um teorema de não-distributividade que é uma variante do encontrado na “lógica quântica” de Birkhoff e von Neumann. Mostrase assim que esta linguagem meta-contextual não é, em geral, sustentada por uma lógica booleana e, segundo o autor, este resultado negativo se estende à outras linguagens meta contextuais e famílias de linguagens contextuais em todos os domínios da física, das outras ciências naturais e mesmo nas linguagens cotidianas (p. 65). É mostrado (parág. 2.2.3, p. 160) que a contextualidade das linguagens experimentais, que se manifestam no plano meta-linguístico pela não distributividade da soma e do produto lógico se traduz, nestas linguagens, em um cálculo de probabilidades para a predição de efeitos de interferência, criando um fenômeno ondulatório.

Desta forma, diz Bitbol, o que se faz é colocar entre parênteses a menção de ‘objeto de experimentação’ e introduzir somente termos fazendo referência aos instrumentos utilizados na constituição e na organização da experiência. Com efeito, as linguagens experimentais correspondentes às diversas versões da experiência de Young só fazem uso de nomes como “fonte”, “cartão”, “detectores”, “tela”, e de predicados como “impacto em tal posição” e “ativação de um detector” ou, ainda, de termos mais genéricos como “preparação”, “operação experimental (operação de medida)” e “resultado”. A “fonte” e o “cartão” são reagrupados na categoria “preparação”. Os “detectores” e “tela” na de “operação experimental”, enquanto que “ativação” ou “impacto” são os estados de coisas possíveis para a operação experimental. Um resultado (um fato) enunciado por uma proposição é a ocorrência de um dos estados de coisas ou de uma sequência de estados de coisas se a experiência é repetida a partir de uma preparação dada. Não se questiona se houve uma partícula passando através de uma fonte em preferência a outra, nem de ondas passando nas duas fendas e resultando em uma figura de interferência, e nem mesmo de acontecimentos provocados pela interação de partículas ou de ondas com a tela.

O autor comenta então sobre esta característica da ‘evasão’ do objeto físico. Segundo ele, (p. 72) deve-se diferenciar “ocorrências” que, como os corpos materiais, são ‘alguma coisa no mundo’, de “fatos”: estes últimos são o que as proposições tidas por verdadeiras enunciam. Em oposição à ocorrência, o fato não pretende constituir algo imutável. A atitude de enunciar um fato, ao meio de uma proposição, tem dois elementos: (a) um elemento paradigmático, refletindo o comportamento e as atitudes ao consenso de uma comunidade científica em uma certa época e (b) um corpo de teorias científicas delimitando mais estritamente o que as linguagens naturais podem descrever a partir de uma preparação dada, sendo que o elemento circunstancial que se identifica com um objeto é, a tal momento e sobre um certo ângulo, o resultado de uma interação com um aparelho experimental. Pode-se dizer que o que Bitbol quer é manter a noção de objeto físico, mas imaculá-lo de certos predicados pré-concebidos (como por exemplo o de reidentificação de um objeto físico através do tempo) que vêm, como ele alerta em várias passagens do texto, de uma herança herdada da física clássica. Assim, deve-se tomar cuidado para não assumirmos como qualquer verdade insuperável a pré-condição da ação e da comunicação humanas. Deve-se evitar a atitude de manter um conteúdo metafísico que a congelaria. O ponto fixo da filosofia contemporânea não é mais a “coisa” cartesiana, certa e indubitável, mas somente um conjunto de proposições formatadas de um modo estatutário. Com efeito, diz o autor, os termos designados pelas proposições experimentais (preparação, operação de medida e resultado) só tm a função modesta, mas primeira, de designar por antecipação os lugares nos quais vão se formatar as ações que tenham sucesso e de fornecer o vocabulário de futuros acordos intersubjetivos.

(Apesar disso, ressalta Bitbol, essa discussão não prova a impossibilidade de se criar uma ontologia natural dos objetos corpusculares suportando propriedades regidas pelos fenômenos da MQ.) O autor, em sequência, começa a explorar a questão da manipulação matemática das probabilidades, tanto no conceito clássico (de Kolmogorov), como nas “probabilidades quânticas”. Interessante é a apresentação que faz de cinco formas diferentes de se entender o que é probabilidade encontrada na literatura (algo que, em geral, não é apresentado ou discutido em outros livros sobre a filosofia da MQ). O autor enfatiza que, segundo o determinismo, um conhecimento exaustivo deve se converter em certezas ao invés de apenas valorações otimais de probabilidade. Sendo assim um discurso probabilístico acaba por refletir, forçosamente, um corpo de conhecimento incompleto, que não compensa a ignorância do ser humano e, desta forma, acaba também por refletir algo subjetivo. Mas o autor pergunta se a objetividade, que separa o mundo em unidades (os elementos individuais) e os singularizam em certos subconjuntos (classes de referência), também não seria algo subjetivo? Como justificar esse fracionamento, a não ser introduzido em elemento pré-crítico, subjetivo? Nestas classes, diz o autor, os mesmos elementos objetivos e subjetivos se reencontram e se misturam e, inclusive, a própria atomicidade intrínseca dos acontecimentos microscópicos não é nada de evidente: não advêm da MQ, mas de uma leitura interpretativa de seu formalismo. Resta saber se esse gênero de interpretação é imperativo e, como o autor mostra, esse não é o caso.

Em um caso extremo se tende a substituir a qualificação das probabilidades: elas são ‘subjetivas’ em oposição a ‘objetivas’, são ‘epistemológicas’ por oposição a ‘ontológicas’.

Um enunciado probabilístico poderia traduzir, assim, uma possibilidade de se aperfeiçoar gradativamente este conhecimento. Mas, diz o autor (p. 100), por um lado não existe razão para se aceitar tal posição porque não existe o ‘termo de comparação’ que poderia justificar essa restrição e, por outro, tomar como ontológicas as probabilidades quânticas seria assumir o carácter indeterminista das próprias leis da natureza em si. Todavia, a questão de saber se as leis da natureza são deterministas ou indeterministas é indecidível e inclusive os fenômenos totalmente preditíveis poderiam também ser tomados por regularidades estatísticas. A própria definição de probabilidade como frequência, por exemplo, favorece uma versão da tese da indução. Mas como estimar a probabilidade de algo que nunca aconteceu? Uma das possibilidades é admitir que o resultado de outras experiências possam ajudar a fazer tal estimação mas, neste caso, abandonamos o pensamento indutivo, já que se torna uma análise racional das ligações entre diversos protocolos experimentais.

Disso se conclui, diz o autor, que o que funda uma previsão não é tanto o resultado sequencial das experiências passadas mas o sistema articulado de projeções em direção ao futuro. O problema de Hume passaria ser o de escolher quais, entre as regularidades, ‘engatilham’ tais processos projetivos. Como o feixe de projeções espontâneas, sem regras aparentes, se coloca na perspectiva de uma regularidade de um conjunto de normas racionais por sua vez suficientes para garantir sua antecipação ainda é um problema em aberto. Princípios de simetria, probabilidades determinadas a priori conformando-se as normas racionais em virtude de alguma harmonia pré-estável entre a razão e a experiência, sempre acabam por depender de um alicerce metafísico. Privado de transcendentalidade, porém, o princípio que guia as projeções probabilísticas são falíveis, indutivas. Não obstante, diz Bitbol, uma estimação probabilística oferece uma grande resistência à refutações experimentais e um grande número de experiências ainda vão ter que ser feitas para que exista a possibilidade de mudar o sistema de projeções de onde derivam as probabilidades.

E, além disso, esse novo tipo de sistema ainda deverá dar conta das discrepâncias de resultados que só são explicados via probabilidade.

Uma das últimas questões pontuadas pelo autor com relação à probabilidade se refere ao fato de que uma probabilidade é dita ser a probabilidade de um acontecimento; mas isso quer dizer que é de um acontecimento particular? Para a concepção frequentista de probabilidade, essa questão não se coloca. Essa dissociação completa entre a probabilidade de um acontecimento e a probabilidade de um acontecimento particular é muitas vezes vista, inclusive, como um defeito desta concepção. As teorias que, por esse motivo, não aceitam essa tese frequentista dizem que existe ao menos um sentido de calcular a probabilidade que um acontecimento particular seja produzido. A probabilidade sequencial não pode atribuir probabilidade a um evento pois enunciar um resultado na teoria da probabilidade sequencial é falar algo sobre a probabilidade dos eventos e, neste sentido, a qualidade (ou capacidade) de algo existir é a mesma de não existir. Não existem ‘valorações’ (algo como ‘pesos de existência’) para as probabilidades nessa teoria. A teoria das probabilidades clássica que está apoiada, inclusive, sobre o chamado princípio de bivalência (PB) (anuncia de forma positiva ou negativa a ocorrência de um evento), repousa também sobre uma lógica equivalente à teoria dos conjuntos (que também aceita o princípio da bivalência), onde a disjunção de uma proposição e sua negação cobre exaustivamente o campo da verdade. Bitbol mostra, então, que esse princípio não é respeitado em MQ (p. 121).

Não obstante, para o PB ser determinado, devemos fazê-lo de uma maneira operatoriamente testável. Isto leva a taxar como sem sentido aquelas proposições que, estando presentes como factuais, são privadas da possibilidade de atestação? Para Bitbol, isso não é verdade: o autor afirma que mundo real não é fatiado, em si mesmo, de maneira pré determinada em acontecimentos mutualmente exclusivos (p. 127), mas sim que isso emerge de estruturas aptas a dar aos processos que se desenrolam a forma aproximada de ‘frameworks’ de uma alternativa (ou acontecimento) dentre uma gama de possibilidades. Estas estruturas, que nascem da vontade de sistematizar gamas de acontecimentos, são chamadas de ‘aparelhos experimentais’.

Por isso, uma afirmação enunciando um acontecimento só tem sentido fazendo referência implícita ou explícita ao aparelho experimental utilizado. Aqui as ações e percepções do homem se inscrevem necessariamente nos níveis de organização do mundo de modo a fazer ‘emergir’ (sob certas condições instrumentais ou sensoriais) ocorrências exclusivas que podem ser chamadas (intersubjetivamente) de ‘fatos’ e para os quais vale o PB.

A partir disso, o autor discute uma forma de ‘indeterminismo’: seria impossível se repetir uma dada situação porque para isso deveria ser possível também repetir uma organização particular do universo em dada época específica, a um instante já tido. Particularmente, os acontecimentos de preparar uma experiência determinam aquilo que a experiência irá manifestar. Essa é uma visão que Bitbol chama de externa.

Em uma visão interna, a partir da ação do experimentador, o acontecimento apareceria como um ato de pura intelecção abstrata. Com efeito, o único meio do experimentador testar sua tese é construir, preparar e instalar certa aparelhagem (ou usar seus órgãos de sentido) em certo lugar apropriado. Para Bitbol, estas operações organizam o meio de detecção e participam disso que elas determinam, sendo que o que acessamos através de um instrumento não é a mesma coisa independente do instrumento: a instrumentação x ‘determina’ o que acontecerá. Essa visão de que a estrutura da MQ leva a considerar o valor de verdade das proposições como indissociáveis das condições experimentais de sua atestação vai ao encontro da chamada “interpretação de Copenhagen”, onde um fenômeno não é ainda um fenômeno até que seja observado e onde a definição mesma de fenômeno envelopa as condições instrumentais de sua observação. Este tipo de abordagem (à la Copenhagen) recusa a aplicação do PB em certas ocasiões, negando sua validade universal: se duas medidas sucessivas são efetuadas sobre o ‘mesmo sistema’, as proposições enunciando o resultado dessa medida são verdadeiras ou falsas (valendo o PB); por sua vez, proposições enunciando propriedades que teria o sistema se uma medida fosse feita não são nem verdadeiras nem falsas (e neste caso o PB não vale). O máximo que se pode fazer é definir um critério de ‘confiança’ para essas proposições (embora a MQ autorize mais de uma possibilidade de conjuntos de proposições possíveis/confiáveis). Além disso, esta ideia de proposição confiável usa a concepção de que uma variável já possui um valor de verdade (V ou F) antes da medida, o que também é ‘desautorizado’ pela MQ (na interpretação de Copenhagen), como dito.

Assim, nos restam três opções, diz o autor, para o uso da probabilidade clássica e do princípio de bivalência em MQ: 1) aceitar a lógica quântica de Birkhoff e von Neumann e desta forma recusar a lei da distributividade da conjunção e da disjunção; 2) aceitar a tese de Friedmann e Putnam, a saber, afirmar que o cálculo clássico das probabilidades não tem aplicabilidade aos fenômenos da física quântica e construir uma probabilidade quântica; 3) recusar o PB para proposições que descrevem acontecimentos em que não se faz referência ao instrumento de atestação experimental utilizado. Porém, pergunta Bitbol no final da primeira parte de sua obra, admitir a equivalência entre “verdadeiro” e “verdadeiro de maneira experimentalmente atestável” não é afirmar que os acontecimentos são pura e simplesmente criados pelo experimentador? Segundo o autor, não, já que nada impediria de forjar representações do mundo em que o valor de verdade das proposições são ‘dependentes’ dos meios de atestação, sem por isso afirmar que o resultado seja obra daquilo que o testifica. No domínio da MQ, a invalidação do princípio da bivalência fornece, à probabilidade, o estatuto de uma valoração inteiramente condicional: ela não é mais probabilidade de um acontecimento ocorrer ou não por si, mas a probabilidade de um fato em que a ocorrência ou não ocorrência é dependente da interposição de uma certa estrutura experimental. Desta forma, o cálculo de probabilidades que devemos ter deve ser um cálculo que, nos momentos intermediários das condições instrumentais de ocorrência de um evento, não os aceite de antemão como supostas ‘realidades’.

A visão da MQ como sendo apenas uma ferramenta preditiva, diz Bitbol, pode evitar que se adentre aos impasses interpretativos dessa teoria. Desenvolvê-la sobre uma perspectiva minimal, instrumentalista, permite trazer à lume o material de uma eventual reconstrução ontológica. Mas, para o autor, fazer tal escolha não é equivalente a afirmar, dogmaticamente, que a MQ é apenas “uma teoria da previsão” (como em Destouches 1981 e Destouches-Février 1951), mas somente ressaltar que os tratos essenciais desta teoria se deixam apreender imediatamente quando se começa por considerá-la como um simbolismo preditivo. Assim, na segunda parte de sua obra, o autor desenvolve a MQ como uma teoria de previsão baseada em contextos experimentais.

Três modificações são feitas sobre o esquema das “teorias da previsão” de Destouches (1981) e Destouches-Février (1951). A primeira consiste em utilizar, já de início, o formalismo dos espaços de Hilbert, que é o meio de comunicação corrente dos físicos quânticos. O segundo é deixar de lado completamente o conceito de sistema físico sobre o qual se efetuaria a medida e utilizar a forma construída no capítulo precedente: censurar questões sobre as propriedades intrínsecas de tais sistemas e utilizar uma abordagem operatória, em que se insere o papel dos aparelhos de experimentação utilizados. A última modificação será substituir o conceito de ‘medida inicial’ por ‘preparação’. O conceito de preparação tem uma generalidade bem maior que o de medida inicial: uma preparação pode, por vezes, ser identificada como uma medida inicial, mas nem sempre é o caso que em cada preparação seja acompanhada de uma medida inicial de modo a considerar esta medida como um ‘potencial de informação’, a partir do qual se possa valorar as predições concernindo os resultados de medidas ulteriores.

As experiências mais correntes em física microscópica se efetuam, diz Bitbol, geralmente em dois tempos: 1) uma primeira série de preparações P1, P2, . . . , Pn é efetuada. Cada uma delas é seguida da medida teste de variáveis pertinentes em que se verifica uma estrita reprodutibilidade. 2) uma secunda série de preparações Pn+1, Pn+2, . . . , Pn do mesmo tipo que em 1) é efetuada, mas agora cada uma delas é seguida de uma medida da(s) variável(is) a(s) qual(is) se deve dar as predições probabilísticas e não de uma medida teste. Estas predições dependem de três elementos constituintes de cada experiência: 1) o tipo de preparação, eventualmente caracterizadas por uma série de medidas testes preliminares; 2) o lapso de tempo e as condições físicas que separam o lugar e o instante da preparação do lugar e do instante da medida da variável à predizer; 3) o tipo da variável que se deve predizer e o resultado da medida. No formalismo da teoria preditiva, a correspondência destes termos se dá da forma seguinte: ao tipo de preparação corresponde um vetor em um espaço de Hilbert, chamado de “vetor estado”; a separação entre a preparação e a medida corresponde a uma equação de evolução que é a equação de Schrödinger e ao tipo de variável mensurada corresponde um operador no espaço de Hilbert, chamado “observável”. Segundo o autor, deve-se ter consciência de que estas são como três partes de uma única ferramenta preditiva e não como representações distintas de cada um dos três tempos do processo experimental.

Seja então um espaço abstrato H tento tantas dimensões quantos forem os fatos elementares de uma certa gama de possibilidades experimentais (p. 147ss). Admitiremos que este número de dimensões (e então o número de fatos da gamma de possibilidades) é finito (diremos igual a n). Mudaremos a palavra “fato” pela expressão “acontecimento contextual” ou mais simplesmente ‘acontecimento’. Os acontecimentos contextuais que iremos considerar são do tipo seguinte: eai _ (A = ai) que significa: “o acontecimento contextual elementar eai ocorreu” ou que o valor ai foi obtido de uma medida da variável A. Um acontecimento elementar particular eia será representado, no espaço H, por um eixo de coordenadas que têm por origem o ponto 0 e que é ortogonal aos eixos representando os outros acontecimentos elementares de mesma gama. Ao eixo representando o acontecimento elementar eai será associado um vetor de base notado por jaii de mesma direção e de norma (ou tamanho) unitário. A gama inteira dos acontecimentos elementares possíveis no contexto de uma medida da variável A é então representada por um sistema de n eixos ortonormais e de n vetores de base associados no espaço H.

O instrumento matemático procurado, que permite calcular, a partir de uma preparação dada, não somente a probabilidade dos acontecimentos da gama A mas também dos acontecimentos de não importa qual outra gama B, C, D. . . representada por um sistema de eixos diferentes no mesmo espaço H é um vetor do espaço H, de norma unitária, denotado por j i, chamado tradicionalmente de vetor de estado.

O algoritmo do cálculo das probabilidades dos acontecimentos elementares eia à partir de j i é fundado sobre operações muito simples de projeção geométrica.

A probabilidade que o acontecimento eia se dê (ou seja, que a medida da variável A dê o resultado ai) é o quadrado do modulo da projeção ci do vetor j i sobre o eixo paralelo à jaii de modo que P(ai , ) = jc1j2. Esta formula se lê “a probabilidade que o resultado ai seja obtido à sequência de uma medida da variável A, se a preparação experimental é caracterizada pelo vetor de estado j i, é igual ao quadrado do módulo da projeção de j i sobre o eixo paralelo ao vetor jaii”, que é a regra de Born. Diz-se, de outra parte, que a projeção de um vetor j i sobre o eixo paralelo à jaii tem um módulo igual ao do produto escalar do vetor unitário jaii pelo vetor j i. Se denotarmos este produto escalar por hai j i, a probabilidade precedente se reescreve: P(ai , ) = jhai j ij2. Para se calcular a probabilidade de um “evento aleatório”, isto é, a disjunção de um certo número de acontecimentos elementares fazendo toda parte da gama de resultados possíveis de uma variável dada, generalizamos o algoritmo precedente (p. 150): seja um acontecimento aleatório e = eia _ ea j _ eak _ . . .. A probabilidade de que um acontecimento aleatório e aconteça (ou seja, que a medida da variável A dê algum dos resultados ai , aj ou ak) é o quadrado do módulo da projeção do vetor j i sobre o sub-espaço hi jk de H, onde os eixos de coordenadas são paralelos aos vetores de base jaii, jaji, jaki etc. Se denota P(ai _ aj _ ak _ . . . , ) = jPi jk…j ij2.

Mas, este é o único instrumento matemático que tem as características procuradas? Uma série de teoremas de Detouches-Février (1951) estabelece que é praticamente o único. Ele constitui, diz Bitbol, um elemento particularmente simples da classes das formas matemáticas que respondem à condição seguinte: constituir uma ferramenta preditiva de previsão probabilística de acontecimentos definidos não absolutamente, mas relativamente a um contexto experimental, que não faça parte de uma gama unificada de possibilidades, mas de gamas de contextos experimentais.

A teoria das probabilidades de Kolmogorov se aplica ao caso particular onde a gama de possibilidades é única. Ao contrário, as probabilidades quânticas, com seu algoritmo permitindo derivar as probabilidades para cada gama de possibilidades a partir de um único vetor de espaço H, são adaptadas a uma situação onde a conjunção das determinações obtidas nas circunstâncias experimentais distintas não é sempre lícita: as condições experimentais ou acontecimentos da emergência de um conjunto de ocorrências intersubjetivamente reconhecíveis como fatos não estão prontas. Em uma posição análoga a de Heisenberg, diz o autor, a operação de preparação, caracterizada por j i, vem definir de um modo puramente físico um conjunto infinito de puras potencialidades. Mas existe também uma leitura não metafísica, digamos hermenêutica, do conceito de potencialidade do vetor j i a partir de uma preparação experimental: j i não se referiria, nesta perspectiva, a objetos mas a situações. Ele constitui uma entidade matemática universal e invariante, apta a fornecer informações probabilísticas sobre os resultados de não importa qual experiência que poderia ser efetuada no futuro de uma preparação, e não sobre uma gama pré-dada de acontecimentos. O autor mostra (p. 163) que uma teoria probabilística sobre acontecimentos onde a definição é contextual conduz a predições de forma ondulatória: os fenômenos de interferência. A recíproca, por sua vez, não vale: uma teoria compreendendo predições de forma ondulatória não se refere necessariamente a acontecimentos definidos contextualmente. Bitbol, em seguida, reconstrói o formalismo da MQ a partir da ideia de contextos experimentais.

O autor, em seguida, analisa o problema das variáveis compatíveis e incompatíveis.

Consideramos de início o caso de duas experiências completamente distintas: este implica duas preparações singulares distintas e a medida de duas variáveis distintas. Podemos então separar suas representações preditivas: os resultados possíveis da primeira variável por um sistema de eixos (ou vetores de base) ortogonais em um espaço de Hilbert H_ e o instrumento de previsão probabilística resultante da primeira preparação por um vetor j _ i de H_. Da mesma forma para a segunda variável: o instrumento de previsão probabilística resultante da segunda preparação é um vetor j _ i de H_ . Mas suponhamos que as duas experiências tenham sua preparação em comum (p. ex., quando duas variáveis distintas, mas compatíveis e não redundantes, são medidas à sequência de uma preparação singular). Espera-se nestas situações dois resultados distintos revelando duas gamas de possibilidades distintas, embora a preparação ser comum às duas experiências efetuadas e o vetor de estado que traduz o teor preditivo destas preparações também ser comum. Para conciliar o dualismo das gamas de possibilidades, onde cada um exige ser representado por um sistema de vetores num espaço de Hilbert, e a unicidade do vetor de estado usamos o seguinte procedimento: construímos um novo espaço de Hilbert, o“produto tensorial” dos dois espaços de Hilbert originais (H_  H_ ), e representamos um só vetor de estado no interior deste espaço. As duas gamas iniciais de possibilidades são assim preservadas, mas o espaço alargado no qual os representa é único, permitindo traduzir a unicidade da preparação pela unicidade do vetor de estado. O autor mostra que pode-se construir uma probabilidade condicional de obtenção conjunta de dois resultados experimentais definidos contextualmente, decompondo a probabilidade conjunta em dois fatores não independentes. O equivalente da probabilidade condicional em um formalismo adaptado aos acontecimentos definidos contextualmente existe e é chamado de vetor de estado relativo (p. 184).

O autor mostra as afinidades deste vetor de estado relativo com uma probabilidade condicional e afirma que o vetor de estado relativo é em definitivo o melhor equivalente que se pode obter das probabilidades condicionais no formalismo da MQ.

Nesse caso, é fornecido um enunciado duplamente condicional, dependente de interposição de um dispositivo experimental suplementar e da obtenção de um certo resultado com a ajuda deste dispositivo.

Duas variáveis são ditas incompatíveis, por sua vez, se não podemos conjugar os contextos experimentais que as correspondem nem dar uma compensação completa a esta impossibilidade. O autor afirma que, para se designar um equivalente a esta limitação em um formalismo quântico essencialmente preditivo, basta substituir uma predição certa em cada descrição por uma condicional: mudando, por exemplo, a sentença “a variável A tem tal valor” por “a probabilidade de obter tal valor se se medir a variável A é igual a 1”. Duas variáveis são incompatíveis enquanto a probabilidade de um valor de A ser igual a 1 à sequência de uma preparação singular não se deve ter, em geral, o valor da probabilidade também igual a 1 para B na mesma preparação singular. No formalismo da MQ, é suficiente que os valores destas variáveis sejam representadas no mesmo espaço de Hilbert H por dois eixos (ou dois vetores de base) inclinados um relação ao outro. Assim, a incompatibilidade dos contextos experimentais se traduz algebricamente pela não comutatividade dos observáveis correspondentes.

O autor faz na sequência uma retrospectiva sobre o debate que acompanha o emprego da noção de “redução do pacote de ondas” na história da MQ. Segundo ele, se Heisenberg, por exemplo, tivesse percebido que a ideia de “redução do pacote de ondas” é uma maneira econômica de exprimir a restrição, à sequência de uma experiência, dos corpos de premissas servindo de valoração racional das probabilidades de acontecimentos definidos contextualmente, ele não teria suscitado tantas controvérsias (em alguns parágrafos de suas obras, diz Bitbol, Heisenberg até afirma que a função de onda na verdade exprime o teor preditivo de uma preparação experimental, mas não consegue com isso evitar uma referência ao subjetivismo). Segundo o autor, isto leva a colocar em questão a pré-constituição da objetividade: mostra que a seleção e a estabilização de uma gama de possibilidades é um momento preliminar indispensável a toda descrição de ocorrências efetivas pertencendo a esta gama, que esta seleção não pode ser considerada como sendo independente dos meios experimentais que permitem designar o resultado e que deve-se distinguir formalmente duas etapas no processo de medida: aquele da objetivação de uma gama de possibilidades e o da seleção de um elemento dessa gama.

Para o autor, desta forma, todos os aspectos paradoxais da MQ, assim como a variedade das formas históricas, podem ser consideradas como expressão das condições universais da atividade operatória e discursiva de uma comunidade genérica de experimentadores.

Se a MQ não oferece, por ela mesma, a representação disto que aparece, cada um dos seus elementos é por sua vez perfeitamente apto a representar um momento abstrato na cadeia das operações de preparação e medição e de antecipação dos resultados de medida. Assim, pode-se partir da ideia de que toda gama de determinações possíveis se define relativamente a um contexto perceptivo ou a um instrumento. Enquanto os contextos podem ser conjugados, nada nos impede de unificar a gama das possibilidades e de render sua definição relativamente a um só contexto global, alicerçada por uma lógica clássica e uma teoria clássica das probabilidades.

À impossibilidade de conjugar contextos (levado pela intermediação de uma álgebra não comutativa de observáveis incompatíveis), é necessário associar a cada preparação uma estrutura preditiva (o vetor de estado) apto a ser traduzido em probabilidades de possibilidades relativas a um contexto. Não teríamos assim nem uma mecânica ondulatória, nem um mecânica quântica e nem quântica ‘tout court’: a nova teoria se apresenta antes de tudo, diz o autor, como um formalismo preditivo contextual (p. 225).

Na parte 3 de sua obra, (que por sinal se intitula “Ce qui reste des images du monde” (grifo do autor)) Bitbol apresenta o ‘objeto resultante’ de sua construção contextual da MQ, partindo de uma recapitulação histórica da noção de objeto em MQ.

Para o autor, a fase extrema da ‘revolta iconoclasta’ existiu principalmente devido à influência de Bohr durante os anos de 1925-1927. Ele optou por um posição mais complexa, fazendo intervir simultaneamente quatro tipos de atitudes ou modos de ver as ‘imagens’ da MQ: 1) em favor do formalismo matemático ou ainda do “simbolismo” em seu sentido mais abstrato; 2) uma denúncia das limitações das nossas formas de intuição e uma crítica contra a unidade da imagem clássica do mundo, deixando entender que a defesa de uma pluralidade de imagens — cada uma com significação limitada — não está excluída; 3) a implementação efetiva desta multiplicidade de imagens dos processos físicos, tentando porém transformá-las em uma função simbólica e tentando reduzir seus escopos, qualificando-as somente como analogias ou metáforas, e onde toda tentativa de conferir uma significação ontológica a esta pluralidade de imagens é neutralizada. Esta atitude levou, em 1925, à própria crítica de ‘objeto de investigação’ e se colocou frente a um dilema: reduzir a ciência a este “empirismo sem sentido”, como denunciou Einstein, ou enfrentar o trabalho filosoficamente delicado de pensar um saber que não se alicerça sobre um mundo de objetos; 4) a criação de uma meta-imagem: uma representação da ação recíproca dos constituintes microscópicos e da instrumentação que os dá acesso; uma inseparabilidade da interação e do fenômeno ou, ainda, a indivisibilidade do objeto e do aparelho.

Na atitude 3 acima descrita, Bohr e Heisenberg tiveram o cuidado de afastar a ideia das imagens corpusculares ou ondulatórias como se parecendo de alguma maneira com o seu objeto. Eles visavam somente oferecer uma contraparte visual, a partir de nosso uso de conceitos clássicos, para descrever as experiências. Ainda assim, o poder objetivante das imagens não teria sido perdida já que uma direcionalidade intencional é parte integrante da noção genérica de imagem. “Somos forçados a utilizar imagens e parábolas que não exprimem realmente o que queremos dizer.

Algumas vezes é igualmente impossível de se evitar as contradições [. . . ] mas podemos, com a ajuda dessas imagens, assimilar, em um certo sentido, o estado das coisas reais”, diz Heisenberg (1972, p. 285 citado em Bitbol1996, p. 240). Na virada de 1920 para 1930, Bohr e Heisenberg, se conformando com o esquema tácito da teoria do conhecimento, conceberam a direcionalidade intencional das imagens simbólicas ondulatórias e corpusculares por referência à meta-imagem da confrontação entre um objeto microscópico e diversas classes de aparelhos. O objeto é compreendido, dentro dessa nova teoria física, como apto a interagir com uma pluralidade de estruturas instrumentais por vezes incompatíveis e que afetam duravelmente seu estado. Mas os mesmo autores se colocaram em guarda contra todos os desdobramentos que poderiam nascer dessa meta-imagem que eles desenharam: apoiando-se sobre um argumento verificacionista, Heisenberg, por exemplo, retira toda a significação à reconstrução da trajetória passada de um corpúsculo após sua interação com um instrumento.

Entre todos os criadores da MQ, diz Bitbol, Bohr é o que melhor percebeu que nesta teoria temos a aplicação das regras preditivas a fatos experimentais definidas relativamente a um contexto. Até sua morte, Bohr nunca cessou de insistir sobre os dois tratos tipicamente contextuais dos fenômenos tratados pela física quântica: sua indivisibilidade (a impossibilidade de dissocá-los das condições experimentais de sua aparição) e sua irreversibilidade (sua associação aos processos de amplificação instrumental onde a inversão é altamente improvável). A indivisibilidade, leva a dependência das gamas de fenômenos possíveis à referencia com uma classe de dispositivos experimentais, enquanto que a irreversibilidade, associada à indivisibilidade, implica a dependência de cada fenômeno às circunstâncias particulares da experiência que levou a eles. Segundo Bitbol, todos os resultados característicos da antiga teoria dos quanta e da “dualidade onda-corpúsculo” podem ser revistas como consequências imediatas ou indiretas da indissolúvel dependência dos fatos a contextos por vezes incompatíveis. Mas a reciprocidade não vale: não é possível deduzir diretamente a dependência contextual dos fatos partindo da hipótese de que as propriedades mecânicas dos corpúsculos materiais são quantificadas.

Nos anos de 1927/29, porém, é marcável a reticência que manifesta Bohr em explicar como a aparelhagem interfere no objeto durante a experiência. Existe “uma perturbação feita pela medida”, mas sobre o que se exerce essa perturbação? O postulado quântico liga a observação a uma “interação fina com o instrumento de observação”, mas o que é que interage com o instrumento? Para tentar responder a essa questão vamos começar, diz Bitbol, com a afirmação que a interação se dê com um objeto e que ela conduz a perturbar as propriedades desse objeto. Falar desta maneira é admitir a representação de alguma coisa possuindo determinações intrínsecas, onde os fenômenos experimentais só seriam uma manifestação deformada e indireta. Agindo assim, seria particularmente difícil evitar o retorno da ‘frustração metafísica’, e os textos tardios de Bohr mostram que só é possível atenuar as consequências de tal retorno através de preocupações constantes de expressão. O enunciando mais prudente, que a observação interagiria com o curso dos fenômenos e que somente perturbaria os fenômenos, também não nos traria nenhuma vantagem já que, neste caso, teríamos que começar por falar de perturbação do fenômeno pela observação para deduzir disto a indivisibilidade do fenômeno com os meios de observação (p. 248).

Bohr só reconheceu plenamente o vazio das tentativas de ‘demonstrar’ a indivisibilidade de um fenômeno invocando uma perturbação do aparelho a partir dos anos 1935, quando tentou responder ao conhecido artigo EPR, em que Einstein, Podolski e Rosen ‘demonstram’ que a MQ é incompleta. Para defender a completude da MQ e negar a ideia de uma perturbação instantânea à distância produzida em um subsistema quando uma medição é efetuada no outro, Bohr optou em abandonar a ideia de fazer apelo a uma perturbação incontrolável pela aparelhagem preferindo ‘demonstrar’ a relatividade dos fenômenos frente a um contexto experimental e, deste modo, também demonstrar a indeterminação dos valores de uma dupla de variáveis onde a medição requer dois dispositivos experimentais incompatíveis. Este gênero de solução adotado por Bohr, diz Bitbol, se aproximou de uma concepção onde a contextualidade prevalece sobre todo tipo de explicação. A palavra “influência” que conota vagamente uma perturbação (e que é julgada como obscura por muitos autores) pode ser entendida, no pensamento de Bohr, tanto como sendo que 1) a definição de quantidade físicas deve incluir o procedimento de medida; 2) as condições experimentais são um elemento inerente ao fenômeno e 3) estes elementos de definição ou de inerência não dependem de uma interação direta do sistema e do aparelho. Segundo Bitbol, não permitindo jamais predizer com certeza o valor exato de duas variáveis conjugadas para um sistema, o formalismo da MQ só mostra a necessidade geral de que cada predição seja relacionada com condições experimentais de atestação bem determinadas. “Uma teoria física, como a mecânica quântica, que permite que todas as predições possam ser feitas com relação às condições experimentais dadas, não tem nenhuma razão de não ser qualificada como completa.” (p. 253, grifos do autor).

A quarta parte da obra (nomeada “Objetos antigos e nova teoria: o preço do conservantismo ontológico”), faz eco ao capítulo anterior, servindo como continuação. O espírito de Copenhague, diz o autor, tem deixado o pensamento físico em uma situação eminentemente ambígua: a crítica das representações da física clássica (como por exemplo a dos objetos como portadores de propriedades ‘em si’) e a manutenção de fragmentos de estatuto simbólico (como o das entidades ainda localizáveis mas com trajetórias aproximadas). O embate entre essas duas demarcas opostas teria por consequência sua incompletude. A primeira alternativa levaria a uma nova ontologia, substituindo por entidades totalmente inéditas os pontos materiais localizados e em movimento da física clássica. A segunda ofereceria, por sua parte, um certo grau de legitimidade ao desenho das representações tidas tanto da física clássica como da teoria do conhecimento, incitando assim a um retorno em direção ao conceito de objeto localizado no espaço tempo, portador de determinações e ‘causa’ dos acontecimentos experimentais. Este retorno não estaria contrário a isto que afirma e crê o espírito de Copenhague? A que preço ou que condições pode-se ter essa concepção? São as questões debatidas neste capítulo. O trato em toda sua amplitude exige um estudo do conceito de “coisa” ou de corpo material que, após ser submetido a um processo de abstração, poderá ser visto como servindo de modelo ao objeto da física clássica.

Após analisar abordagens de Heidegger (o sentido da palavra “coisa” na vida cotidiana), de Wittgenstein (o qual tem por primazia a linguagem), e Carnap (o dado primeiro e elementar, que deveria representar uma sensação ou um lado percebido, emerge na verdade ao fim de um longo trabalho de abstração), Bitbol acaba por abraçar, em certo sentido, a visão de Wittgenstein, afirmando que a própria estrutura da linguagem (considerada como uma condição a priori de possibilidade do pensamento simbólico), assigna um tipo de primazia à concepção substancialista da coisa que é derivada. A estrutura elementar dessa linguagem que informa, de antemão, ‘sobre o que ela diz’, pode ser buscada ou refletida a partir da lógica, de certos ramos fundamentais das matemáticas e de suas ontologias formais correspondentes à teoria dos conjuntos, dos números cardinais etc, que através da manipulação dos conceitos de elemento ou de unidade tratam do objeto em geral. Aí existem dois grandes grupos: das categorias da significação (conceitos de proposição e de verdade; relacionados então à logica) e o das categorias formais dos objetos (conceito de objeto, unidade, número, relação etc; relacionado com a teoria dos conjuntos).

Todavia, distinguir um objeto de todos os outros, o individualizar, demanda um critério que permita circunscrevê-lo em uma classe onde ele seja um elemento único.

Isto requer possuir uma ou mais determinações que pertencem apenas ao(s) objeto( s). No projeto Husserliano inclusive, diz Bitbol, a origem da “predicação” reside em uma seleção das formas perceptivas que permanecem estáveis no interior de uma grande variação de predicados. Deve-se, com efeito, também afirmar que os cientistas só são hábeis em exprimir seu acordo ou desacordo sobre o objeto que eles visam a partir de um acordo mínimo, pré-combinado e tácito, a propósito dos meios de estudo deste objeto e onde se utiliza a linguagem corrente (ancorada na estabilidade acima descrita) para descrever a instrumentação. Em física clássica, o funcionamento dos aparelhos durante o processo de medida estaria apoiado em uma forma de linguagem corrente padronizada por um léxico teórico e os resultados experimentais não entrariam em conflito com as normas de reprodutibilidade, de individualidade e de reidentificação espaço-temporal. Em física quântica se utilizam instrumentos que também conduzem à determinações de objetos mais ou menos bem localizados no espaço ordinário. A diferença maior com a física clássica se dá na etapa seguinte: na situação quântica, a sequência dos resultados experimentais e a estrutura teórica que fixa o quadro preditivo não permite satisfazer certos critérios de reprodutibilidade, individualidade e reidentificação espaço-temporal, que renderia imediatamente a legitimidade da predicação e denominação de objetos no espaço ordinário.

Assim, pergunta Bitbol, pode-se efetuar uma operação de numeração em um conjunto de elementos estritamente indiscerníveis como o são os objetos quânticos? Se nem a reprodutibilidade dos fenômenos e nem a reidentificabilidade espaço temporal são asseguradas, nenhum dos critérios experimentais sobre os quais se apóiam a predicação e a denominação de objetos do tipo “corpo material” é satisfeita. Qual é a solução? Uma multiplicidade de opções ontológicas disponíveis: 1) recusar-se de falar de objetos de experimentação dando acesso ao objeto em si e se atrelar a um instrumentalismo; 2) continuar a falar como se a experimentação daria acesso às propriedades de objetos de tipo vagamente corpuscular, mas incorporar a esse modo de expressão uma série de restrições e de corretivos. (Este é o modo de comportamento que a comunidade dos físicos continua a preconizar); 3) modificar a estrutura categorial do ‘alicerce’: continuar a admitir formalmente as atribuições conjuntas de predicados experimentalmente incompatíveis, mas recorrer para isso à uma lógica não clássica ou uma teoria de conjuntos não clássica, modificando suas axiomáticas; 4) expandir a distância entre fenômenos de uma parte e objetos e predicados de outra parte; 5) mudar radicalmente o tipo de objeto: mudar o arquétipo de corpo material e conceber objetos que são reidentificáveis por outra coisa que uma trajetória no espaço ordinário. A partir dessas cinco ‘alternativas’ o autor faz uma resenha da problemática relacionada à identidade das partículas quânticas, tanto a nível lógico/matemático bem como ontológico. Bitbol também comenta sobre a lógica poder ser tomada como empírica ou não (sendo assim possível de ser refutada empiricamente) e a construção das lógicas que dão suporte ao formalismo quântico (ex. a lógica trivalente de Paulette Destouches-Février (1951) ou a lógica quântica de Birkhoff e von Neumann, entre outras). Em todas essas abordagens lógicas, porém, a característica indispensável do conceito de objeto físico estaria sendo admitido sem discussão. De qualquer forma, diz Bitbol, “[tanto como] uma reintrodução formal do conceito de propriedade com o objetivo de salvar a unicidade da lógica ou como uma alteração das regras da lógica com o objetivo de salvar o conceito de propriedade [de um objeto físico], a estratégia da lógica quântica não pode deixar de parecer bastante artificial” (p. 335).

Em seguida o autor comenta sobre a tese das variáveis ocultas, que teve como principal partidário Einstein, o qual imaginava que a MQ, do modo que estava construída, seria uma teoria incompleta que se limitaria apenas a uma descrição estatística de um grande número de fenômenos. Apesar de que a teoria das variáveis ocultadas não foi, até hoje, provada nem verdadeira nem falsa, os chamados “teoremas limitadores” (como o de von Neumann) eram apresentados como estabelecendo a impossibilidade de tais teorias. A publicação de um artigo em 1966 por Bell (Anexo II do livro de Bitbol), porém, levou à compreensão de que as variáveis ocultas não são impossíveis, mas sim que elas devem preencher certas condições limitativas: devem violar o chamado realismo-local de Einstein (em uma certa acepção, a ideia de que os sistemas físicos possuem propriedades próprias independente do contexto experimental e de sua atestação (realismo) e que um dado acontecimento não influencia outro instantaneamente (localidade)). Bell demonstrou, enfim, a incompatibilidade entre suas desigualdades e estas hipóteses (se as assumirmos como fazendo parte da MQ), que pode ser interpretada de três maneiras distintas: a) é impossível atribuir propriedades intrínsecas não conhecidas aos sistemas físicos, de modo que as teorias das variáveis ocultas são então refutadas de antemão; b) as propriedades intrínsecas podem ser atribuídas aos sistemas físicos, mas estas propriedades se influenciam instantaneamente e c) as predições da MQ, e em particular as que violam as desigualdades de Bell, são incorretas. A interpretação c) é, até o presente momento, a que menos atrai os físicos dado as previsões corretas da MQ, bem como os experimentos de Aspect que comprovam as desigualdades de Bell. A interpretação a) é chamada de “não-separabilidade” e a b) de “não localidade”. É verdade, diz Bitbol, que não existe um ‘experimento crucial’, e alguns pesquisadores ainda esperam o resultado de uma futura experiência, tecnicamente mais refinada e não fazendo apelo as mesmas hipóteses auxiliares, “mas o mínimo que se pode dizer é que essa esperança é pouco compartilhada” (p. 349).

O último dos chamados teoremas limitadores é o de Kochen e Specker (Anexo III do livro), o qual é menos conhecido que o teorema de Bell, mas que tem a mesma importância deste último. Tal teorema mostra, por sua vez, que toda teoria de variáveis ocultas compatível com as predições da MQ é contextual, ou seja, que “as características que ela atribui às partículas deve ser co-determinadas pelo contexto de sua construção experimental” (p. 350) demonstrando que “nenhuma teoria de variáveis ocultas não-contextual pode ser compatível com as predições da MQ” (p. 452). A questão que se coloca, já de início, é em que o “contextualismo” das variáveis ocultas se distingue da “contextualidade” dos acontecimentos experimentais.

A diferença entre contextualidade e contextualismo, diz Bitbol, relaciona-se com a diferença filosófica entre anti-realismo e realismo. Falar de contextualidade dos acontecimentos é dizer que os acontecimentos não são definidos em absência da especificação de um tipo de dispositivo experimental, e que o princípio da bivalência não vale para proposições afirmando a ocorrência destes acontecimentos enquanto o dispositivo experimental correspondente não está implementado e a experiência feita. Falar de contextualismo das determinações ou das propriedades, ao contrário, é começar por colocar que as propriedades existem independentemente do procedimento experimental que as coloca em evidência e então assinalar que este procedimento, enquanto implementado, os modifica sistematicamente. A tradução dos dois conceitos pode ser exatamente o mesmo em termos de manifestações experimentais, mas as visões de mundo que elas favorecem são profundamente diferentes. No final do teorema de Kochen e Specker se demonstra que para que uma teoria de variáveis ocultas seja compatível com as predições da mecânica quântica esta deve ser contextual e não-local.

Em sua quinta e derradeira parte (as novas ontologias), Bitbol inicia falando sobre a visão de Kuhn de que mudar de paradigma cientifico é mudar de mundo.

Para Bitbol, entretanto, mudar de mundo não é apenas reformular os objetos em si mesmos mas também com isso mudar a ontologia. Assim, a revolução quântica traria uma nova noção de objeto e, destaca ele, vários autores estão propondo uma mudança das formas categoriais associadas à MQ (apesar do arquétipo de corpo material ainda permanecer e somente nestes últimos anos uma mudança de ontologia começou a ser levada a sério entre os físicos). Para Bitbol uma mudança completa de ontologia das ciências físicas é possível e, sem dúvida, oportuna, e as motivações para tal mudança de ontologia são de ordem prática, motivadas também pela possibilidade de mudança do sistema linguístico. Se isto não foi ainda geralmente admitido, se deve a algumas objeções filosóficas e uma imprudente despreocupação com tais objeções. Estas provêm de uma concepção rigidamente realista do progresso da ciência, a qual prega que a evolução das ciências conduzem a um conhecimento mais refinado da coisa em si, fazendo o pensador realista tender para um conservantismo ontológico. Mas, qual deve ser então a (nova) ontologia designada pela física contemporânea? As indicações dadas pelos físicos são em muito contraditórias para se permitir uma decisão inequívoca sobre este assunto e, assim, a via de renovação ontológica está aberta. Se mudarmos teríamos, no entanto, três opções: 1) os vetores de estado não representariam nada no/do mundo e seriam somente uma ferramenta de predição probabilística dos resultados experimentais (uma visão instrumentalista incompatível com a associação de qualquer significação ontológica a estes vetores de estado); 2) que estes vetores representam alguma coisa do mundo e 3) que estes vetores representam ‘tudo do mundo’. De toda forma, afirma o autor, a teoria quântica em si não impõe uma substituição de ontologia por qualquer das três interpretações das suas entidades teóricas dada acima e nem afirma ser isso impossível: ela é neutra neste sentido. É por isso que a exigência de “mudança do mundo” vem de outro lugar: é uma mutação/renovação do imaginário coletivo (p. 379). Por isso, para Bitbol, a ocorrência ou não de uma mudança de ontologia dependerá, enfim, do quanto os “autores da vida intelectual” (p. 374) estarão dispostos a pagar os custos de manter uma ontologia antiga frente à ocorrência de um mundo feito de novas entidades trazidas pela MQ. O autor até propõe que deveríamos chamar essa nova ontologia de uma quase-ontologia (p. 382) a fim de evitar as confusões com uma tradição ontológica já ancorada, da forma descrita anteriormente, na noção usual de objeto. Sendo assim, “livre da crença de que cada entidade representa um elemento de uma realidade autônoma, dotada de uma eficiência causal própria, se dará mais credibilidade à estrutura global das teorias científicas [. . . ], mais [crédito] a uma arquitetura unificada das regras descritivas e preditivas que a uma ontologia particular herdada da atitude natural” (p. 370, grifo do autor).

“Mas pode-se dizer o que é a mecânica quântica?” pergunta o autor em sua conclusão.

Para o realista, essa questão só poderá ser respondida se soubermos se a MQ apresenta uma visão completa da realidade ou apenas incompleta, puramente estatística. Tradicionalmente, teríamos também uma segunda abordagem, que se identifica com o positivismo lógico do círculo de Viena, em que a MQ se reduziria a um conjunto de regras para a predição de fatos experimentais a partir de fatos experimentais anteriores e o formalismo teórico resultante só teria o efeito de ser capaz de alcançar a tarefa instrumental para o qual foi concebido. Porém, diz Bitbol, a alternativa que essas duas concepções apresentam para a justificação da estrutura das teorias físicas nada tem de exaustiva. Existe aberta uma terceira opção, que consiste em encontrar uma justificação reflexiva sobre a estrutura da teoria com relação a sua capacidade de sintetizar as normas da atividade de antecipação dos resultados, não importando qual manipulação experimental seja feita. Mostrando que para uma teoria física com vocação universal como a MQ, diz o autor, que existem boas razões em pensar que sua eficiência é derivada de sua conformidade com as condições muito gerais que regem a atividade experimental e a predição dos resultados que disso se segue, que a quantificação e os efeitos de interferência podem ser obtidos como consequências da contextualidade das determinações antecipadas, e que muito de outros efeitos observados são ligados a um ou a outro por princípios de simetria associados, se oferta assim um projeto de uma nova e completa alternativa.

Enfim, o autor comenta que compreender em sentido pleno as consequências da MQ só será conseguida se não ignorarmos mais o meio de acesso experimental, que é, como visto, a tese que permeia toda a sua obra. Assim, para ele, o fenômeno não pode mais ser separado das circunstâncias instrumentais de sua manifestação, o que apoia o que o autor chama de “realismo diposicional/pragmática transcendental” (p. 428), tema que foi desenvolvido por Bitbol, após a publicação de seu livro, em vários outros trabalhos (veja, por exemplo, Bitbol 2000a, 2000b). No reconhecimento das condições impostas pelas teorias físicas do século XX é impossível não reconhecer também o papel que joga o processo de pesquisa na co-determinação do sistema de objetos que o serve de via regulatória: como diz o autor, “os indivíduos e os grupos sociais não têm mais escapatória frente à expansão constante de suas responsabilidades” (p. 430).

Conclusão Se fosse necessário definir a obra de Bitbol aqui resenhada em algumas palavras, poderíamos começar por dizer que é uma obra densa. Diferentemente da maioria dos livros que analisam a estrutura e a filosofia da MQ que são, muitas vezes, escritas por físicos e para físicos que tenham algum interesse ou índole mais filosófica, a obra de Bitbol pode ser dita ser escrita por um filósofo da ciência para filósofos da ciência. Com efeito, se encontram nesse texto algumas discussões que dificilmente aparecem em outras obras do gênero como, por exemplo, qual ontologia podemos construir a partir dos conceitos da MQ, como a linguagem pode ‘interferir’ na forma que construímos os objetos da realidade ou a problemática da identidade e reidentificabilidade das partículas subatômicas. Desta forma, a linguagem do livro se mostra familiar aos filósofos da área. O objetivo central da obra é, como explanado, empreender uma tentativa de construção de uma nova forma de se entender o que é “objeto” na MQ, não mais respaldada no modo existente em física clássica. Para tanto, Bitbol acaba tocando em vários temas como ontologia, história da física, filosofia da linguagem, teorias das probabilidades etc., os quais, aliados ao estilo limpo e elegante da ‘forma francesa’ de escrever, acabam sendo escrutinados à exaustão. Uma das características mais marcantes da obra é a apresentação de ‘alternativas’ ou possibilidades para a solução dos problemas apresentados. Além disso, vale a pena dizer que muitos outros temas tratados por Bitbol em seu livro (como por exemplo a teoria de Bohn ou das histórias consistentes de Griffiths) não foram aqui revistos dado à indisponibilidade de espaço. Reservamo-nos, portanto, principalmente à questão da possível construção contextualista da MQ. Isto mostra, por sua vez, que a obra deste filósofo francês vale a pena ser lida e não é possível de ser compreendida plenamente em apenas uma leitura. Por fim, vale ressaltar que durante o texto muitas vezes parece que Bitbol vai e volta na aceitação ou negação da interpretação de Copenhague. Mas pode-se concluir que o que este autor deseja é manter a filosofia desta interpretação (algo como aceitar que o aparelho de medida deve ser levado em conta na divulgação de um resultado em MQ) mas não a ‘radicalidade’ dessa visão (algo como este aparelho ‘construindo’ o objeto quântico), como aparece em algumas formas de entender a interpretação de Bohr e seus partidários.

Referências

Destouches, J. L. 1981. La Mécanique Ondulatorie. Paris: PUF (Que sais-je?, No. 311).

Destouches-Février, P. 1951. La Structure des Théories Physiques. Paris: PUF.

Heisenberg, W. 1972 [1969] La Partie et le Tout. Paris: Albin Michel.

Bitbol, M. 1998. Some Steps Towards a Transcedental Deduction of Quantum Mechanics. Philosophia Naturalis 35: 253–80.

———. 2000a. Relations, Synthèses, Arrière-Plans: sur la philosophie transcendantale et la physique moderne. Archives de Philosophie 63: 595–620.

———. 2000b. Arguments transcendantaux en physique moderne. In: S. Chauvier, S. & F. Capeillères (eds.) La querelle des arguments transcendantaux. Revue philosophique de l’Université de Caen 35: 81–101.

Jailson Schinaider – Bolsista CAPES (Reuni) Programa de pós-graduação em filosofia Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis, SC BRAZIL [email protected]