Moda e História / Revista de História / 2019

Este dossiê – primeiro sobre o tema moda nesta Revista de História – é dedicado ao doutoramento em Ciências Sociais de Gilda de Mello e Souza (1919- 2005), defendido em 20 de junho de 1950 na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e intitulado A moda no século XIX. Pioneira no estudo de moda no Brasil, a tese só mereceu publicação comercial em 1987, com o título O espírito das roupas (SOUZA, 1987). O longo lapso temporal em que permaneceu negligenciado não encaneceu o trabalho da filósofa; ao contrário, seu reconhecimento foi se ampliando com o passar dos anos e o posiciona, hoje, como o mais relevante estudo sobre o tema já produzido no Brasil.

Um clássico, portanto, recorrentemente citado e objeto de inúmeros artigos, aos quais se acrescenta o que compõe este dossiê e que se dispõe a contextualizar a obra na temporalidade de seu surgimento – quando, não por coincidência, a criação de moda emergia entre nós. Por isso mesmo, o enfoque insere (tanto quanto discerne) o trabalho de Gilda no âmbito dos chamados “formadores do Brasil” e da emergência do campo da moda no país. Uma curiosidade: publicado em 1951 por esta Revista de História, o “boletim do júri” que avaliou a tese permite reconstituir a recepção pouco acolhedora da banca à temática escolhida pela doutoranda e nos convoca a refletir sobre como têm se desenvolvido, desde então, os estudos sobre a moda na FFLCH.

A despeito de terem surgido trabalhos relevantes, passadas quase seis décadas, os dados aferíveis não fazem jus ao legado daquela tese. Um levantamento completo desde a fundação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 1934, implica uma difícil pesquisa nos arquivos físicos de teses ou dissertações da unidade, já que os dados disponíveis na Biblioteca Digital da USP (https: / / www.teses.usp.br / ) contemplam apenas trabalhos posteriores aos anos 1990 (a saber). Utilizando a “pesquisa avançada” e os filtros “títulos” e “palavras-chave” para os descritores “moda, vestimenta / vestuário e indumentária”, foram encontrados apenas 16 títulos relacionados à unidade FFLCH.1

Resultado semelhante ocorreu também na base de dados do Centro de Apoio à Pesquisa Histórica Sérgio Buarque de Holanda (CAPH), que contém 1.570 teses e dissertações defendidas de 1950 a 2015 – e que inclui a tese de Gilda. Se atentarmos, ainda, para disciplinas e cursos oferecidos pelos departamentos (graduação e pós-graduações) da FFLCH sobre os descritores citados, o resultado não é alvissareiro: pelo Sistema Janus foi possível verificar, ao final de 2018, um único curso de temática correlata2; predominam os temas clássicos às áreas de conhecimento.

Ainda em fins dos anos 1980, o filósofo francês Gilles Lipovetsky asseverou: “A questão da moda não faz furor no mundo intelectual. […] A moda é celebrada no museu, é relegada à antecâmara das reocupações intelectuais reais; está por toda parte na rua, na indústria e na mídia, e quase não aparece no questionamento teórico das cabeças pensantes” (LIPOVETSKY, 2009, p. 9). Este quadro mudou, efetivamente, nas décadas recentes, em muito graças às boas repercussões alcançadas pelo próprio Lipovetsky e, no Brasil, pela tese de Gilda, revertendo a visão da moda como “esfera ontológica e socialmente inferior” (LIPOVETSKY, 2009, p. 9). Temos no Brasil importantes eventos acadêmicos sobre o tema, como o Colóquio de Moda, atualmente em sua 15ª edição; Encontro Nacional de Pesquisa em Moda (ENPModa), 9º edição; Seminário Moda Documenta e Congresso Internacional de Memória, Design e Moda, respectivamente em 8ª e 5ª edições – sempre em 2019. A moda adentrou a academia brasileira com vigor: do primeiro curso de graduação, em 1988, na Faculdade Santa Marcelina (FASM), São Paulo, Capital, registrávamos em fins de 2018, segundo o e-MEC, 224 cursos no país, o que detém maior número, em nível superior, no mundo para o campo — entre os quais o Têxtil e Moda, da EACH / USP.3 A expansão rápida é indicativa, em parte, de interesses mercadológicos que nos fazem reflexionar sobre a qualidade dos conteúdos ofertados.

Entendemos este dossiê, por isso mesmo, como um estimulo ao estudo empenhado sobre a moda e suas correlações no Brasil e, em particular, na FFLCH, pela relevância dos artigos que o compõem, assinados por: Daniela Calanca (Università di Bologna, Campus Rimini), socióloga italiana que comparece com texto sobre “moda e patrimônio cultural”; Joana Monteleone, doutora pelo Programa de Pós-graduação em História Econômica – FFLCH / USP, que retorna à corte de d. Pedro II (objeto de seu doutorado) e resgata aspectos do consumo, moda e gênero no Rio de Janeiro, entre 1840 a 1889; Luciana Dulci (UFOP), que aprofunda reflexões sobre a urdidura, ao longo do tempo, das teorias sobre a moda como “hierarquia simbólica entre classes”; Mara Rúbia Sant’Anna (UDESC), com um primoroso estudo dos trajes masculinos produzidos pelo artista plástico Victor Meirelles em seu período na Itália, entre 1853 a 1856. Boa leitura!

Notas

1. Foi possível localizar os seguintes trabalhos: ALMEIDA, Adilson José de. Uniformes da Guarda Nacional: 1831-1852. A Indumentária na Organização e Funcionamento. Mestrado em História Social, FFLCH, 1999; BETTI, Marcella Uceda. Beleza sem medidas? Corpo, gênero e consumo no mercado de moda plus-size. Mestrado em Antropologia Social, FFLCH, 2014; BEZERRA, Maria de Fatima. Ethos, estereótipos e clichês: moda e argumentação persuasiva. Mestrado em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês, FFLCH, 2009; BORGES, Maria Zélia. Vocabulário da moda no português do Brasil (abril / 90 a janeiro / 91). Doutorado em Semiótica, FFLCH, 1994; CALLIL, Victor. Cadeia produtiva e mercado: um estudo sobre a produção e a venda de moda varejista. Mestrado em Sociologia, FFLCH, 2015; D’ALMEIDA, Tarcisio. As roupas e o tempo: uma filosofia da moda. Doutorado em Filosofia, FFLCH, 2018; FERRON, Wanda Maleronka. Fazer roupa virou moda. Um figurino de ocupação da mulher (São Paulo -1920-1950). Doutorado em História Econômica, FFLCH,1996; GARAVELLO, Maria Elisa de Paula Eduardo. Costura social do vestuário: da teoria à prática. Doutorado em Antropologia Social, FFLCH, 1994; KONTIC, Branislav. Inovação e redes sociais: a indústria da moda em São Paulo. Doutorado em Sociologia, FFLCH, 2007; LIMA, Igor Renato Machado de. “Habitus” no sertão: gênero, economia e cultura indumentária na Vila de São Paulo. Doutorado em História Econômica, FFLCH, 2011; MARANTES, Bernardete Oliveira. O vestido de Proust: uma construção na trama das correspondências. Doutorado em Filosofia, FFLCH, 2011; MONTELEONE, Joana de Moraes. O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda (Rio de Janeiro, 1840-1889). Doutorado em História Econômica, FFLCH, 2013; PAULA, Camila Galan de. Num mundo de muitos corpos: um estudo sobre objetos e vestimentas entre os Wajãpi.. Mestrado em Antropologia Social, FFLCH, 2015. PETTER, Margarida Maria Taddoni. A construção do significado de Fàni, “Pano e Vestuário”, em Diulá. Doutorado em Semiótica e Linguística, FFLCH, 1992; PRADO, Luís André do. Indústria do vestuário e moda no Brasil, sec. XIX a 1960 – da cópia e adaptação à autonomização subordinada. Doutorado em História Econômica; FFLCH, 2019; SILVA, Josilene Lucas da. Imprensa, moda e educação feminina em contos iniciais de Machado de Assis. Mestrado em Literatura Brasileira, FFLCH, 2017. Não localizada, mas cabe citar pela importância: ABREU, Alice R. de Paiva. O avesso da moda – Trabalho a domicílio na indústria de confecção. Doutorado em História Econômica, FFLCH, 1995 (São Paulo: Hucitec, 1986).

2. Departamento de Filosofia: FLF5237 – Estética (Beleza e Conhecimento na Psicologia Empírica do Século XVIII).

3. Criada em 2005, a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP) abrange o Departamento de Têxtil e Moda que, pela Biblioteca Virtual USP, teve um total de 160 dissertações e teses defendidas até 22 de agosto de 2019, ante 768 para toda a unidade.

Referências

LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Luís André do Prado – Bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Econômica no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH / USP. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail: [email protected]


PRADO, Luís André do. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 178, 2019. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê