A Privataria Tucana | Amary Ribeiro Junior

A Privataria Tucana e a Prova do Crime

O livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr., publicado pela Geração Editorial (São Paulo: 2011) condensa nas suas 343 páginas substanciosa documentação, comentada, relacionando o processo de privatização de parcela considerável do patrimônio publico brasileiro, durante o período fernandista (1990/2002). Nele, o autor dá particular ênfase para os oito anos que correspondem aos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1994- 2002), quando o assalto aos cofres públicos pelas autoridades e seus acólitos ‘laranjas‘ no jargão político-administrativo brasileiro – teria adquirido a magnitude de uma quase-acumulação originária, pela grandeza dos valores envolvidos. Faz sentido essa percepção ao se ter presente que iniciadas em 1991, as privatizações no Brasil ganharam grande impulso principalmente durante o segundo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Do total de empresas privatizadas no Brasil, cerca de 80% concentram-se entre 1997 e 1999, com destaque para os setores de telecomunicações e elétrico.

O termo acumulação originária, aplicado ao presente contexto é simbólico e tem função meramente ilustrativa, porquanto a expropriação demo-tucana da propriedade foi feita ao Estado brasileiro e, não, como explicada na Gênese do Capital, por Karl Marx, diretamente ao camponês, enquanto o que estamos cognominando aqui de acumulação deu-se na forma perdulária, através, sobretudo, do entesouramento do fruto da pilhagem em paraísos fiscais. Portanto, não se deu sob a forma de investimentos produtivos visando a expansão dos setores industriais e de serviço da economia brasileira. Nesse sentido, estimativas extremamente conservadoras de agências internacionais indicam a existência de depósitos superiores a US$ 100 bilhões de brasileiros nas assim denominadas ‘ilhas do inconfessável‘.

Chama atenção a copiosa documentação de que se utiliza o autor para dar suporte à sua argumentação, representada por 133 páginas de fac-símiles, o que significa dizer que cerca de 40% do livro comporta parte do valioso acervo documental, constituído basicamente por comprovantes de operações bancárias, procurações, escrituras, requerimentos, estatutos, fichas cadastrais, pareceres da Justiça e da Fazenda, e documentos afins, escriturados em cartório, por ele utilizados como prova do crime.

Nesse sentido é de causar pasmo e repulsa a reação de José Serra, ministro do Planejamento à época das privatizações, o desdenhar do trabalho de investigação jornalística de Amaury Ribeiro Jr., em declaração ao diário O Estado de São Paulo, nos seguintes termos: É lixo, lixo. (sic).

A questão de fundo que suscita esta resenha é verificar até que ponto um trabalho de jornalismo investigativo constitui fonte segura e consistente para o trabalho acadêmico, posto não se tratar de uma fonte primária, para dela fazer exaustivo uso no encadeamento do seu objeto de reconstituição da verdade informativa.

Vale lembrar que o final do ciclo militar ensejou um marco profícuo do ainda incipiente jornalismo investigativo no Brasil. Tenho aqui em mente, para citar um único exemplo, o nome do jornalista José Carlos de Assis e trabalhos seus como A Chave do Tesouro: anatomia dos escândalos financeiros no Brasil 1974/1983 e, Os Mandarins da República: anatomia dos escândalos da administração pública; ambos publicados pela editora Paz e Terra em 1983 e 1984, respectivamente.

Mesmo que não signifique uma retomada desse tipo de jornalismo sadio porque comprometido com a busca da verdade, de que tanto o Brasil carece, o trabalho de Amaury Jr. é um acontecimento ao qual não se pode ficar indiferente. Aliás, o mutismo da chamada grande imprensa perante o seu lançamento, a maneira hostil com que os donos do poder no período por ele retratado rechaçaram o livro – mesmo admitindo que não o leram – e, mais que isso, as resenhas de encomenda banalizando a obra, são motivos mais que suficientes para suscitar o interesse em conhecer o todo do seu conteúdo, estudá-lo e analisá-lo.

E, para o cientista da área de humanas, em especial aqueles dedicados ao estudo do fato econômico e das relações que ele encerra ter acesso aos acontecimentos das nossas realidades sócio-políticas e econômicas entre outras, através do gradiente do jornalismo investigativo certamente que só enriquece as suas possibilidades de compreensão do seu objeto de estudo, sem que isso signifique uma recusa à manipulação dos frios números das estatísticas censitárias, dos balanços e informes, todos igualmente imprescindíveis à compreensão dos fenômenos econômicos e sociais, e necessários à inferência de políticas públicas progressistas num país de concentração de renda abismal como o Brasil.

Por outro lado, as revelações como contidas no livro A Privataria Tucana têm o mérito adicional de por a desnudo a demagogia solerte, e, sobretudo, a insensibilidade social medonha do governo fernandista, que durante seus oito anos de mandato, praticou uma gestão orçamentária restritiva, em plena consonância com as exigências ortodoxas do Fundo Monetário Internacional (FMI), gestão essa, baseada em drásticos cortes no Orçamento da União e no contingenciamento das verbas públicas, inclusive com efeitos perversos nos Estados e Municípios, no que concerne a repasses, penalizando, particularmente, os segmentos sociais mais vulneráveis, privando-os de atendimento em saúde, educação e saneamento básico. Assim, enquanto os pobres eram privados do minimumexistencia, da responsabilidade do Estado – e aqui reside a hipocrisia maior do ‘príncipe da sociologia brasileira‘ revelada em A Privataria Tucana –via privatização, precarização e aumento de preços dos serviços públicos, recursos comparativamente superiores, expressos em bilhões de dólares norte-americanos jorravam pelo ladrão da corrupção oficial e endêmica.

Apenas para recordar um exemplo mencionado por Amaury Jr., somente através do Banestado foram expatriados rumo a paraísos fiscais cerca de US$ 30 bilhões, em valores da época. Essa quantia, é o que se depreende da leitura do livro, representa uma mixórdia em relação ao montante global descaminhado pelos privatistas da era FHC, considerando-se que cerca de 80% do patrimônio público estatal foram levados à haste pública, sob as variadas formas de desnacionalização. Período este em que coincidentemente (?) a participação de firmas estrangeiras no faturamento da indústria do Brasil saltou de 27% para 42%.

Amaury Jr. vasculha, por assim dizer, os porões soturnos de uma corrupção de dimensões imperscrutáveis onde ele com suas motivações e incentivos consegue, e nisso parece que foi bem-sucedido, mostrar ao leitor uma das pontas desse meio ‗iceberg‘ meio ‗bicho de sete cabeças‘. Nesse sentido, a própria estrutura do livro – me refiro a partir do capítulo 3, que leva por título Com o Martelo na Mão e uma Idéia na Cabeça, até o capítulo 13 – O Indiciamento de Verônica Serra, é reveladora. O Capítulo 4 – A Grande Lavanderia – cumpre, até por seu didatismo, o papel de lição la minute, para os não iniciados no assunto, sobre a prática do branqueamento de dinheiro sujo. Introdução necessária para que o leitor acompanhe a digressão do jornalista na descrição dos tortuosos trajetos que vão dos leilões aos paraísos fiscais.

Os capítulos seguintes que vão do 5 – Aparece o Dinheiro da Propina, ao 8 – O Primo mais Esperto de José Serra, penetram fundo na engrenagem da corrupção e colocam em relevo seus atores principais e coadjuvantes, que, a bem da verdade, não são muitos, algo compreensível, porque no mundo do crime, a seleção de comparsas faz parte do segredo do negócio. Pelas razões evidenciadas pelo autor, trata-se de figuras destacadas dessa quase-acumulação: o próprio presidente da República, à época, Fernando Henrique Cardoso, porta-bandeira da consigna “Vender Tudo que der para Vender”; o seu ministro do Planejamento, José Serra, para quem não havia problemas em “pagar para vender”; Ricardo Sérgio de Oliveira, amigo e ‘caixa‘ das campanhas de Serra e FHC, para o Senado e Presidência da República, descrito no livro como ‘o pai do esquema‘. Sem a pretensão de citar nominalmente todos os coadjuvantes, há, contudo, um nome a reter: o do empresário espanhol naturalizado brasileiro Gregório Marin Preciato, alcunhado por Amaury Jr. de ―mais esperto‘ entre outros motivos porque, com duas empresas falidas, endividado com o Banco do Brasil até o pescoço (devia ao banco estatal R$ 20 milhões), mesmo assim, logrou doar mais de R$ 87 milhões para ajudar a financiar a campanha senatorial do primo José Serra.

Portanto, não restam dúvidas de que dentro dos objetivos a que se propôs, e tendo em linha de conta que os fatos aludidos são rigorosamente comprovados, agravado pelo feito de que nenhum desmentido sério foi apresentado questionando as afirmações ou mesmo ao arsenal de provas esgrimidas pelo autor, o livro A Privataria Tucana, independentemente das razões por ele declaradas ou subjacentes que o tenham motivado à empreitada, constitui um legado documental precioso a se ter em conta nas pesquisas envolvendo o processo de privatizações e a corrupção paraestatal no Brasil.


Resenhista

Wilson Gomes de Almeida – Engenheiro Agrônomo pela Academia de Ciências Agrícolas de Sófia/Bulgária e doutor em História Econômica pela USP.


Referências desta Resenha

RIBEIRO JUNIOR, Amaury. A Privataria Tucana. São Paulo: Geração Editorial, 2011. Resenha de: ALMEIDA, Wilson Gomes de. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 08, n. 28, p. 229-234, agosto, 2012. Acessar publicação original [DR]