Patrimônio Cultural, História e Memória / Projeto História / 2018

É com grande satisfação que lhes oferecemos o volume 61 da revista Projeto História, que em 2018 completa 37 anos de atividades, em um percurso não isento de percalços, mas constantemente exemplar do empenho e dedicação de seus participantes. Para esta edição, ‘Patrimônio cultural, história e memória’ constitui o eixo do dossiê que compõe o corpo central do volume.

Não é a primeira vez que as reflexões sobre o patrimônio são colocadas nesta revista, mas acreditamos que no presente existem demasiadas questões e reflexões que envolvem esse conceito, tanto em relação ao seu uso, quanto aos abusos em relação aos elementos que nele estão contidos e relacionados.

Necessitamos de fato de uma abertura ao debate sobre as formas de pensar e de se agir a partir desse conceito. Pensar o patrimônio cultural em suas relações com a História e a Memória põe em primeiro plano questões ligadas aos conflitos e tensões sobre identidade, esquecimento, apropriação cultural, tradição, rememoração e resistência cultural, entre outras diversas noções que se entretecem nesse debate. Ao se debater patrimônio no momento atual superamos as leituras e os discursos que tinham como motor a celebração de valores e referências de memória de frações ou conjuntos sociais que privilegiam uma perspectiva parcial ou dominante que condiciona a seleção, a percepção e a manutenção do patrimônio. Pensar patrimônio enquanto manifestação de visões oficiais sobre a história ou a memória das sociedades não é mais aceitável, pelo menos para aqueles que pretendem uma compreensão e uma abordagem coerente e abrangente dos eventos e processos históricos relacionados a grupos humanos.

Muito já se escreveu sobre o tema e na atualidade muito mais se coloca em questão, principalmente por conta de polêmicas que envolvem a própria definição de patrimônio e sua aplicação ao universo de manifestações dos vários segmentos e grupos que compõem a sociedade; isso sem considerar as releituras críticas, as reelaborações e as transformações dos bens culturais consagrados dentro de uma perspectiva mais aberta ao debate dos significados e valores desses bens em uma sociedade cada vez mais marcada pela diversidade de posturas, identidades e discursos.

As discussões sobre o tema percorrem um longo caminho, desde a constituição do patrimônio histórico na Revolução Francesa, quando se estabelece um marco que passa a orientar pelas décadas seguintes as ações e percepções sobre a seleção, a celebração e a preservação dos monumentos históricos. Mas o conceito de patrimônio se alargou gradativamente, ainda que de forma irregular, em direção aos bens e manifestações culturais de caráter imaterial, retirando da concepção de patrimônio o seu caráter tradicionalmente material e monumental. Neste número procuramos construir uma trama que entrelaça alguns desses conceitos, pois o conjunto de artigos que formam o cerne deste dossiê lidam com aspectos bastante distintos do patrimônio cultural que, ao longo dos últimos trinta anos, assumiu novos sentidos e significados, enquanto que se recoloca diante de diversas perspectivas históricas.

Introduzimos nossa apresentação do dossiê tomando como ponto de partida um museu, que por si mesmo constitui um dos espaços que tem sua gênese institucional na época em que o patrimônio histórico toma forma e identidade primeira, no século XVIII.

O estudo sobre a trajetória e as perspectivas do Museu da Cultura da PUC-SP, feito pelo Prof. Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus, se compõe como uma referência necessária para se pensar o museu e seu papel na recuperação, reconstituição e reinserção de memórias e experiências dos diversos grupos que constituem as sociedades. Aqui se propõe uma recolocação e uma releitura do Museu da Cultura dentro da instituição e da comunidade, pautadas nas práticas e propostas contemporâneas da museologia.

Em um segundo trabalho, desta vez por Wanessa Pires Lott, lidaremos com a questão do reconhecimento e preservação de espaços de práticas e crenças das comunidades negras de Belo Horizonte, tomando como objeto de tudo isso, dois locais de experiências distintas.

No terceiro artigo, Alessander Kerber parte do conceito de ativação patrimonial de Lorenç Prats para analisar a incorporação do compositor e cantor Carlos Gardel, ícone mundial do tango na Argentina, mas também ligado ao universo patrimonial uruguaio. Nesse sentido, o autor expõe as estratégias e ações que permitiram esse movimento, debatendo, para tanto, a questão das identidades culturais nacionais.

Aldo Jose Morais Silva nos leva em seu artigo à Feira de Santana na Bahia, onde investiga a ressignificação do hino da Feira, que foi concebido na década de 1920 e que não encontra um reconhecimento de seus elementos constituintes dentro da comunidade à qual se refere, apesar de ser um traço importante da cultura imaterial dessa mesma comunidade. O processo de ressignificação do hino assim é percebido como uma forma de recomposição de valores e sentidos para a comunidade em sua relação com seu patrimônio.

No bairro de Abadia, em Uberaba, originalmente a autora Sandra Dias discute a construção de sentidos e valores pela comunidade em um local marcado em sua história pela presença de instituições assistenciais e religiosas. Isso resultou na formação de uma identidade cultural local própria, contrastante com a de Uberaba, fundada em seus componentes intangíveis.

Já em outro artigo, Diogo de Souza Brito apresenta a narrativa oficial do principal órgão de preservação do Brasil hoje, o IPHAN, a partir de diferentes documentos, o que o possibilitou a delinear a trajetória da instituição entre dois momentos, a fase heroica e a fase moderna, representada por dois de seus dirigentes, respectivamente, Rodrigo Melo Franco de Andrade e Aloísio Magalhães.

O sétimo escrito deste dossiê nos traz o debate de Francisco Carvalho de Andrade sobre a arquitetura vernacular brasileira, que até o momento encontra reconhecimento limitado na esfera oficial ligada à preservação do patrimônio cultural. O autor destaca como a participação comunitária na elaboração dessas construções expressa o compartilhamento de valores e sentidos pelos seus agentes, materializados nas celebrações e manifestações dos grupos envolvidos, ressaltando, assim, a dimensão imaterial dessa prática como fio condutor de sua relevância no espaço patrimonial.

No último artigo deste dossiê lidamos com uma realidade presente, a destruição do patrimônio em situações de confronto bélico e choque de ideologias. Nesse ensaio, os arqueólogos Vagner Porto e Juliana Hora problematizam a ação e o discurso do Estado Islâmico, tomando como referência o valor do patrimônio como memória e o sentido da destruição dos sítios arqueológicos dentro de um conflito de fundo ideológico marcante. Num contraponto ressaltam a contribuição do mercado ilícito de antiguidades, consequência desse mesmo interesse por essa herança cultural no Ocidente, reforçadas por uma postura paradoxal das nações, que se declaram oposicionistas dessas práticas e que propõem ações preservacionistas, pautadas por uma visão ainda impregnada pelo colonialismo europeu.

Entre os artigos livres temos contribuições que conduzem a linhas bem distintas de reflexão. O primeiro estudo, elaborado por Sochdolak e Pochapsky, lida com a questão da violência contra animais no município de Mallet, no Paraná, entre as décadas de 1930-1950, partindo do reconhecimento filosófico de que “a violência é um fenômeno historicamente constituído e que, de alguma forma organiza as relações humanas”. Para tanto se utilizam de documentação de processos criminais do período, a fim de estudar a natureza e as motivações de tais crimes no contexto em questão.

O trabalho de Cesar Henrique Porto se coloca no campo dos estudos de alteridade, ao lidar com as representações dos muçulmanos e árabes na teledramaturgia brasileira, tomando como ponto de partida a telenovela ‘O Clone’, na qual são construídos modelos culturais da população árabe muçulmana que, na visão do autor, acabam por reforçar concepções imprecisas no imaginário popular sobre esse grupo, denominado indiscriminadamente como árabes ou turcos.

No terceiro trabalho da seção livre Otávio Barduzzi nos coloca diante da possessão demoníaca e sua caracterização como fenômeno antropológico na medicina do século XIX. O autor problematiza a possessão enquanto fenômeno cultural, que assume status diferenciado no cristianismo. Com a prevalência do pensamento científico / médico no século XIX, se analisa a inclusão da possessão no rol de patologias, sendo extraída de sua matriz cultural religiosa, na qual seria posteriormente reinserida.

O último trabalho dessa seção lida com a história da infância, onde Rosa Batista e Leonete Schmidt analisam a iniciativa do Círculo Operário Católico de Joinville para estabelecer uma creche. No recorte dado, que vai de 1936 a 1949, são discutidos os esforços e as concepções que deflagraram essa ação e sua importância para o estudo da infância no Brasil.

Finalizando o presente volume temos duas notícias de pesquisa, uma das quais trata do lazer dos trabalhadores na metrópole, avaliando a institucionalização do lazer na cidade de São Paulo. Em outra direção, a pesquisa de William Ferreira da Silva trata da problemática do suicídio na obra de Dostoiévski, tomando o livro “Os Demônios” como base para tal reflexão.

Assim, fechamos nossa modesta exposição deste volume, que esperamos fornecer a seus leitores a oportunidade de apreciar visões e reflexões enriquecedoras e instigantes, dentro do espírito de construção e difusão de ideias no campo histórico que orienta esta revista.

Álvaro Hashizume Allegrette https: / / orcid.org / 0000-0002-2222-7033

Luiz Antonio Dias https: / / orcid.org / 0000-0001-8834-442X


ALLEGRETTE, Álvaro Hashizume; DIAS, Luiz Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.61, 2018. Acessar publicação original [DR]

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