Novas perspectivas da religiosidade popular / Revista Mosaico / 2020

Milton Nascimento na bela canção: Nos bailes da vida sugere que “todo artista tem de ir onde o povo está”. A frase fica bonita se aplicarmos a nós, os estudiosos e intelectuais, àqueles que gostam de investigar a sociedade brasileira. Ali poderíamos encontrar os verdadeiros sujeitos históricos. Entretanto, a missão é demasiado difícil de ser cumprida. Com alguma experiência nesse campo, se aprende a lição de que, de fato, o povo nunca está onde a gente espera.

Os estudos sobre o povo e dos aspectos populares surgiram, obviamente, interligados. A construção das nações modernas levou à invenção de uma natureza popular, que normalmente era encontrada no interior do país, nas pessoas sem erudição, de vida simples e não contaminadas com a agitada vida urbana. Deste modo, transformado em coletivo singular, foi fundamental para o surgimento dos estados democráticos, encarnando a alma de cada nação e a quem o governo representaria.

Esse substantivo, conjugado por regra singularmente, o povo, podia ser também um adjetivo utilizado para caracterizar uma cultura, uma religião, uma festa, um costume. Tanto de um como de outro modo, as operações que originaram tal recorte do social se tornaram invizibilizadas, como se o popular fosse realmente encontrado objetivamente.

Paralelamente, quando o tema avançou academicamente, a noção de popular passou a ser comumente evocada como o que supostamente se opõe a algo oficial, ou erudito. Tal distinção parece denotar que, tanto de um lado, quanto do outro, a cultura e a religião / religiosidade são estáticas, pertencentes a uma determinada classe de indivíduos e incomunicável (quando não vista, recorrentemente, como deformada) em relação à sua antítese.

No prefácio à edição inglesa de sua obra magna O queijo e os vermes, de 1976, Carlo Ginzburg reclamou da imputação de tais interpretações por críticos à sua obra. Em sua defesa, o autor da micro-história italiana evocou o famoso estudioso russo Mikhail Bakhtin, afirmando que:

entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa pré-industrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo (exatamente o oposto, portanto, do “conceito de absoluta autonomia e continuidade da cultura camponesa” que me foi atribuído por certo crítico (2006, p. 10).

Tais embates interpretativos demonstram, sobretudo, o quanto os conceitos de popular, e, ainda mais especialmente para o presente volume da revista Mosaico, a religião popular, estão longe ainda de obter consenso. Todavia, o esforço teórico e historiográfico da reflexão, tanto sobre os conceitos, como, principalmente, os sujeitos que a compõe e que lhe dá vida, faz-se indiscutivelmente necessário.

É nesta direção que os trabalhos reunidos aqui, nesse dossiê, demonstram a necessária crítica aos essencialismos e uma ruptura com os preconceitos elitistas incorporados na noção de religião popular, apresentando, discutindo e repensando conceitos, sujeitos e as mais diversas clivagens das manifestações populares.

Assim, é possível que os / as leitores / as percebam duas direções complementares nos artigos do presente volume: por um lado as devoções e sincretismos da religiosidade popular evidenciam a multidimensionalidade das festas religiosas, das entidades a quem se submete devoção e mesmo das ações práticas (que também são resistências políticas) decorrentes dos sentimentos religiosos.

No âmbito das festas e das mestiçagens culturais, há dimensões indiscutivelmente importantes na composição histórica, dos rituais e das experiências vividas nos quadros da religiosidade popular brasileira. Deste modo, Marcos Manoel Ferreira abre nosso número analisando o sincretismo afro-brasileiro numa das festas religiosas mais populares do sertão as congadas. Em seu artigo intitulado Congada de Catalão (GO): o sincretismo da festa popular na perspectiva dos devotos, Ferreira busca analisar os diversos níveis de compreensão e percepção do sincretismo religioso contido nas festas de congada da cidade de Catalão.

Ainda na esteira de mapear os caminhos do sincretismo religioso, Daniel Precioso nos apresenta uma discussão sobre o processo de adaptação de símbolos da devoção católica à cosmogonia africana, mostrando como crioulos (negros descendentes de africanos escravizados e nascidos no Brasil) fechavam seus corpos por meio do uso de bentinhos, de escapulários católicos. Em seu artigo intitulado Os bentinhos como patuás: o processo de africanização de um objeto devocional católico no Brasil escravista, Precioso regressa aos séculos XVIII e XIX para analisar a construção de uma prática popular afro-brasileira por meio da ressignificação de um objeto devocional.

Para fechar as reflexões sobre a africanidade na religiosidade popular brasileira, Paulo Petronilio Correia analisa a controversa e multifacetada figura de Exu no imaginário do Candomblé e da Umbanda. Essa tem sido a entidade mais lembrada pela frequente demonização, feita pela tradição cristã às religiões de matriz africana. Os sentidos encruzilhados receberam uma análise substancial das complexas características que a devoção popular afro-brasileira construiu, apontada no artigo Exu: o imaginário individual e coletivo do candomblé.

Ainda cruzando religiosidade popular, devoção e festa, três artigos do presente número voltam sua análise agora para o âmbito da matriz religiosa católica, a que tem sido hegemônica e numericamente mais importante na sociedade brasileira. Em Ultramontanismo e catolicismo popular em Goiás no início do século XX: caracterizações e problematizações, Robson Gomes Filho discute os problemas historiográficos da atribuição ao movimento católico oitocentista do ultramontanismo de se pretender superar ou suprimir o denominado catolicismo popular. Para tanto, Gomes Filho analisa a autobiografia de Dom Eduardo Duarte Silva, principal nome do ultramontanismo em Goiás no início do século XX, e os escritos de Francisco Wand, sacerdote redentorista que viveu em Goiás no mesmo período. Suas reflexões trazem à tona as dificuldades, limitações e necessidades de reflexões e debate historiográfico tanto sobre o movimento ultramontano no Brasil, quanto sobre o próprio conceito de catolicismo popular.

Na sequência, Karine Monteiro da Silva apresenta-nos uma valiosa reflexão sobre os mitos de origem e adaptações eclesiásticas sobre a devoção ao Divino Pai Eterno em Goiás. Temos analisado em seu artigo o princípio básico da mais importante romaria e da maior festa religiosa da região centro-oeste: a devoção ao Divino Pai Eterno. Suas origens míticas enredam uma dimensão não apenas teológica (o mistério da Trindade), mas sobretudo psicológica, por meio da qual o artigo Interpretando o Divino Pai Eterno em Trindade envereda-se.

No trabalho A memória nos guia: trajetos e trejeitos de uma festa religiosa no povoado do Bacalhau – Goiás, Eduardo Gusmão de Quadros e Raquel Miranda Barbosa discutem a devoção à Nossa Senhora da Guia em um pequeno povoado localizado às margens da antiga capital goiana, a Cidade de Goiás. Em sua análise, os autores demonstram como a referida devoção forneceu ao povoado uma identidade singular, bem como o modo como tal identidade, cuja referência física é a capela histórica local, ainda conservada, mas que encontrou limitações para adentrar nas políticas patrimoniais do poder civil e religioso vilaboense.

Para finalizar nosso número, Lenir Candida Assis, Fabio Lanza e José Wilson Assis Neves traduzem a reflexão do campo devocional para a luta política, em uma sólida e importante análise acerca da dimensão mística pertinente à militância do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em artigo intitulado A relação entre mística, religiosidade e política no processo de mobilização social do assentamento Eli Vive (MST-Londrina, PR), os referidos autores demonstram como o âmbito político-ideológico, nem de longe, se aparta das tradições da religiosidade popular.

Portanto, os movimentos religiosos, especialmente classificados como populares, demonstram um pequeno retrato do que tem sido a identidade nacional brasileira. O desafio de refletir analiticamente sobre nosso povo deve incluir, necessariamente, conhecer as tradições e costumes que tem cultivado religiosamente. Ali temos uma fonte de recursos simbólicos e de força espiritual para enfrentar, cotidianamente, os desafios da sobrevivência.

Referência

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras,

Robson Gomes Filho – Universidade Estadual de Goiás. E-mail: [email protected]

Eduardo Gusmão de Quadros – Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: [email protected]


GOMES FILHO, Robson; QUADROS, Eduardo Gusmão de. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.13, n.1, jan. / jun., 2020. Acessar publicação original [DR]

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