Renascimento Italiano / Crítica Histórica / 2015

O desejo de organizar um dossiê especial sobre a Renascença surgiu das parcerias e encontros entre Flávia Benevenuto, Professora de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e analista das obras maquiavelianas e Fabrina Magalhães Pinto, Professora de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em História Moderna. Já há alguns anos fazemos parte do GT de Ética e Filosofia Política no Renascimento, da ANPOF, e, em 2014, participamos do SIMPOFI (Simpósio de Política e Filosofia, realizado na UFF\Campos, em 2014). Deste evento surgiu a ideia de organizarmos um trabalho que reunisse diversos pesquisadores que tivessem um interesse comum: buscar compreender a riqueza e a complexidade que envolve o tema da cultura do Renascimento em algumas das suas diversas faces, seja política, filosófica, retórica, histórica ou literária; bem como as relações entre inícios da Modernidade e a Antiguidade Clássica. Sabemos que vem crescendo no Brasil o número de revistas sobre o assunto e pesquisadores interessados nas diversas temáticas Renascentistas. Contudo, se comparamos com outros objetos de pesquisa, ainda temos um longo caminho a percorrer, e muitos novos pesquisadores a persuadir que sigam esta mesma estrada.

Os textos aqui reunidos tratam de temáticas diversas e são de áreas distintas, fato este que almejamos desde o início: uma perspectiva interdisciplinar das análises. Portanto, contamos com pesquisadores da filosofia (Alberto, Ana Letícia, Danilo Marcondes, Gilmar e Patrícia), da letras (Ana Cláudia e Helvio) e da História (Edmilson). Organizamos em ordem cronológica a nossa breve exposição sobre os textos e a iniciamos tratando de autores como Lorenzo Valla, Maquiavel, Michel de Montaigne, Francesco Patrizzi (Veneza, 1560) e Algernon Sidney (quem recupera os valores maquiavelianos no republicanismo inglês do século XVII). E, logo em seguida, passamos aos textos sobre os impactos do Novo Mundo na sociedade europeia, de Danilo Marcondes, e a transposição da noção europeia de cidade ideal na elaboração da cidade do Rio de Janeiro. Passemos então a eles.

Comecemos com o texto de Ana Letícia Adami, doutoranda em filosofia da USP, cuja pesquisa se detém na análise do diálogo De voluptate (Do Prazer) escrito por Lorenzo Valla, em 1431. Nesta obra o humanista elabora sua defesa epicurista do prazer como um bem, em oposição à doutrina estoica que nega o prazer; cabendo ao sábio estoico o abandono de todos os prazeres para uma vida sadia e perfeita. O prazer na obra valliana é visto como um bem, ou mesmo um verdadeiro bem. Mas Valla vai ainda mais além: elaborando uma associação direta entre os prazeres e a própria devoção cristã. Portanto, se a devoção inspira o amor e todo cristão deve ser tocado por ela, não faria sentido aos cristãos adotarem uma doutrina como o estoicismo. Esta arguta defesa de um “epicurismo cristão” leva Valla, como destaca Ana Letícia, a ser indiciado pelo Índex cristão em 1443.

O artigo escrito pela professora Patrícia Aranovich, professora do departamento de filosofia da UNIFESP, investiga o tema da guerra no pensamento de Maquiavel. Esse tema é, de fato, um tema muito debatido a partir da obra do autor de Florença. A autora, no entanto, supera o lugar comum dos debates em torno do tema que, via de regra, se centram no Príncipe – e, por vezes, na Arte da Guerra – para investigá-lo a partir das Histórias de Florença. Ao tomar essas últimas como referência principal, a autora conferiu originalidade à abordagem do tema, explorando-o atrelado às discórdias civis. Recorrendo aos exemplos de Roma e ao texto de Tito Lívio, mostrou como os assuntos de ordem interna e externa, dentre eles a guerra, se relacionam com as instituições encaminhando sua conclusão para a relação indissociável entre as armas e a forma política, passando pela questão da liberdade.

A proposta do artigo de Helvio Moraes, professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PPGEL) da UNEMAT, é analisar três dos DieceDialoghidella Historia (Diálogos da História) de Francesco Patrizi da Cherso, escrito em 1560. Abordando os três primeiros diálogos (Il Gigante, overodell’historia; Il Bidernuccio, overodelladiversitàdell’historia; e Il Contarino, overoche sia l’historia), o autor nos mostra como Patrizi desenvolve tanto uma negação das concepções clássicas da História quanto uma tentativa de alargar ao máximo o campo da investigação histórica. Segundo a análise de Helvio, o tom que permeia os Diálogos é tanto o de insatisfação quanto às investigações e modelos metodológicos de autoridades como Cícero, por exemplo, quanto ao modo como são adotados por seus contemporâneos, sendo repetidas sem reflexão e sem a compreensão das suas limitações. Essa insatisfação moveria Patrizzia redefinir de forma precisa o campo histórico, diferenciando-o do campo filosófico e retórico, e influenciando, posteriormente, intelectuais como Jean Bodin e Vivo.

Ana Cláudia Romano Ribeiro, professora do departamento de Letras da UNIFESP e tradutora de Utopia para a língua portuguesa, apresenta em seu artigo os aspectos distintos identificados por ela em relação às traduções do libellus aureus. A autora conduz sua argumentação no sentido de evidenciar nestas últimas a perda das características próprias da expressão de Thomas Morus. Ela destaca o caráter poético, já anteriormente apontado por Erasmo. Há dois aspectos a serem investigados na Utopia, o uso da língua e o assunto propriamente dito. Ao negligenciar o primeiro, certas traduções tendem a destacar o segundo. Para a autora essa estratégia culmina em um resultado artificial, considerando-se forma e sentido indissociáveis. Nesse sentido o artigo contribui para uma compreensão completa do texto de Thomas Morus.

Gilmar Henrique da Conceição, professor do departamento de filosofia da Unioeste-PR, apresenta um lado pouco conhecido do autor em que se tornou especialista. Expõe-nos Montaigne pela via do amor, da volúpia, do erotismo. Ao aproximar-se do que mundano e sensual mostra-nos a possibilidade do pensamento filosófico também por essas vias. Aproxima a filosofia da intimidade revelando-a em Montaigne pelo conceito de voluptuosidade. Faz-se interessante notar que o autor aprofunda a relações que Montaigne estabelece com os antigos caracterizando-o como um autor renascentista e destacando o olhar dessacralizado sobre o mundo nesta abordagem. Por fim, o autor identifica o tema ao ceticismo, apontado por ele como a identidade filosófica de Montaigne.

Alberto Ribeiro G. de Barros, professor do departamento de filosofia da USP, investiga, no republicanismo inglês, a recuperação do texto de Maquiavel por Algernon Sidney em seus escritos políticos. O autor parte da análise da propagação dos textos de Maquiavel pela Inglaterra, passando pelas maneiras diversas em que o mesmo foi incorporado ao discurso político inglês. De acordo com o autor, ao adaptar a obra de Maquiavel à tradição política inglesa o cerne do pensamento republicano maquiaveliano é comprometido de modo que não se pode afirmar que o pensamento republicano de Maquiavel tenha sido totalmente acolhido. O autor conduz sua argumentação no sentido de evidenciar que a apropriação do republicanismo de Maquiavel menos problemática neste período foi feita por Algernon Sidney em seus escritos políticos.

O artigo de Danilo Marcondes, professor do departamento de filosofia da PUC-Rio e da UFF, trata das questões geradas pelo impacto do descobrimento do Novo Mundo. Segundo ele, são questionados durante os séculos XVI e XVII os fundamentos sobre a natureza humana, e sobretudo a aristotélica. Os descobrimentos produziram um novo tipo de conflito, ou mesmo potencializou o conflito já existente entre teorias da Antiguidade e do Cristianismo. São basicamente três os caminhos de investigação que o autor percorre. O primeiro analisa a base da doutrina da escravidão natural em Aristóteles (Política, I 3-6); o segundo os autores antigos que discutem a distinção entre bárbaros e civilizados; e o terceiro, os autores cristãos de São Paulo a Santo Agostinho, que adotam uma teoria da universalidade da natureza humana, inspirados pela origem comum da criação humana, o mito adâmico. Tem-se então o conflito entre três correntes filosóficas, mas, ainda mais importante: o conflito entre um projeto político colonialista e uma missão evangelizadora, cada qual buscando fundamentar-se em concepções tradicionais de natureza humana desde os filósofos gregos aos pensadores cristãos.

E, por fim, o texto de Edmilson Martins Rodrigues, professor do departamento de História da PUC-Rio e da UERJ, nos apresenta algumas investigações elaboradas ao longo de anos de docência e pesquisa. Possuindo um tom bem mais informal que os demais artigos, pois fora este um texto proferido na abertura do SIMPOFI, o autor levanta algumas hipóteses e aponta os caminhos que o levaram a pensá-las; indicando muitas vezes os textos que o estimularam. Entre as muitas conexões, Edmilson propõe a comparação entre a concepção de cidade no Renascimento, suas formas, seus princípios e modos de agir, suas ambições de cultivo da vida ativa, e a cidade do Rio de Janeiro, considerada por ele uma cidade Renascentista nos Trópicos. Segundo o historiador, na cidade setecentista do Rio de Janeiro aparecem muitos traços das tendências utópicas, sejam articulados pelo erudito francês Villegagnon, seja por Mem de Sá, irmão de Sá de Miranda. Desta forma, analisar a cidade apenas do ponto de vista economicista, como fez tantas vezes a historiografia mais tradicional – como uma feitoria que atende exclusivamente os propósitos comerciais da metrópole portuguesa – não leva a discussão adiante. Contudo, propõe Edmilson, se combinarmos a ideia de utopia e a ideia de República, o Rio de Janeiro se torna o campo privilegiado de combinação de ideias e experiências.

Feitas as devidas apresentações, resta-nos esperar que estes textos ajudem aos leitores e aos interessados nas temáticas Renascentistas a seguirem o caminho e a descobrirem seus próprios objetos de pesquisa neste campo ainda incipiente e vasto de possibilidades em nosso país.

Quanto aos artigos do fluxo contínuo da revista, Mário Maestri, professor da Universidade de Passo Fundo, parte do texto de Kátia de Queirós Mattoso, ‘Ser escravo no Brasil’ que, segundo o autor, apresenta a resistência do escravo brasileiro relacionando-a à incapacidade do mesmo de adaptar-se à sociedade brasileira, mesmo em condições razoáveis de trabalho e comida farta. O texto revisita o clássico e edifica sua crítica. Já Vinicius Bandera, pós-doutor em História Social pela USP e Instrutor da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro na Escola Superior de Polícia Militar e na Academia de Polícia Militar, aborda o desenvolvimento do higienismo na cidade do Rio de Janeiro. Sua análise parte da modernização capitalista como responsável pelo caos sanitário, assim como o papel protagonista de combatê-lo. Por fim, o artigo escrito pelos professores Diego Mendes Cipriano, Mestre em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e Carlos Roberto da Silva Machado, Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) analisam as remoções de moradias do Bairro Getúlio Vargas entre os anos de 1971 e 1973. A análise apresentada busca esclarecer as consequências do deslocamento dos moradores, evidenciando as contradições do processo. O texto aprofunda-se no direito das populações desenvolverem livremente suas potencialidades e considera os meios de se promover sustentabilidade às gerações futuras.

Fabrina Magalhães Pinto – Professora de História da Universidade Federal Fluminense – UFF.

Flávia Benevenuto – Professora de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas – UFAL

Maceió, novembro de 2015.


PINTO, Fabrina Magalhães; BENEVENUTO, Flávia. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 6, n. 12, novembro, 2015. Acessar publicação original [DR]

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