Resistências: LEDDES 15 anos / Revista Transversos / 2016

LEDDES 15 anos. Atravessando Experiências: diversificando possibilidades [1]

Comemorar é resistir

Comemorar é combater e, nesse sentido,

comemorar é lutar.

Lutar é verbo que destaca ação

verbo que propõe flexão,

inflexão, reflexão…

Verbos que me lembram LEDDES.

Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais.

Espargindo…

Transversal,

Transcultural,

de saber / sabor de saber / fazer

de saber / poder.

Eu posso, tu podes, ele pode… nós LEDDES [2]

As resistências funcionam como pontos e nós irregulares que se distribuem com maior ou menor densidade no tempo e no espaço. Podemos falar numa cotidiana resistência ou como afirmava De Certeau (1994) na microfísica da resistência em resposta a provocação de outro Michel, desta feita Foucault (1979) para quem as táticas e suas clivagens são resistências fragmentadas que fazem emergir as relações de poder em suas múltiplas tramas. O trabalho intelectual como método de invenção, investigação e intervenção que resiste desde seu próprio procedimento ativa um saber que nasce resistindo, saber que informa a trajetória do nosso LEDDES como um dente de leão em sua reprodução rizomática.[3]

Propomos inquirir o pensamento como forma de resistência de análise das diferenças e, em especial, das matrizes que as inventam, justificam e transformam em desigualdades sociais. Desconfiar das evidências e universalidades que indicam as inércias e coações do presente, as brechas, as linhas de força da violência dos próprios regimes de verdade são questões problematizadas em nossas linhas de pesquisas. Afinal vivemos sob o signo das diferenças agudizadas e ao mesmo tempo saturadas, logo naturalizadas e invisibilizadas. O que confere cada vez mais relevância social ao LEDDES como locus provocador do debate.

O dossiê, portanto, não se restringe à produção de uma ilusão biográfica do nascimento e institucionalização de mais um laboratório no cenário acadêmico. O que se pretende é iluminar de forma biografemática, um heteretópico espaço de escrituras de vidas abertas às formas diferentes de criação de condição de possibilidades do dizer e, principalmente, da experimentação ética de uma amigável vida acadêmica. Uma jornada que se inicia em 2001 na cumplicidade intelectual e afetiva de Ana Moura, Marilene Rosa e Silvio Carvalho, colegas do Curso de História do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro nos tempos sombrios da ditadura. O reencontro como experientes profissionais de História que acontece na Universidade do Estado do Rio de Janeiro é enunciado a partir do inventor de neologismos, Roland Barthes no seu biografema (…)

Se fosse escritor, e morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’, em que a distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem contagiar, como átomos voluptuosos, algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão!; em suma, uma vida com espaços vazios, como Proust soube escrever a sua, ou então um filme, à moda antiga, onde não há palavras e em que o fluxo da imagens (esse flumen orationis, em que talvez consista a ‘porcaria’ da escrita) é entrecortado, como salutares soluços, pelo rápido escrito negro do intertítulo, a irrupção desenvolta de um outro significante …(BARTHES, 1971, p.14)

O método aponta o fazer de um laboratório onde se cria e se recria uma complexa gestão coletiva. Saber / sabor compartilhado nas permutas constantes entre orientadores / as e orientandos / as, professores / as e alunos / as, quer seja da graduação ou da pós, numa peculiar intertextualidade com diferentes construtores de discursividades. A materialidade do dossiê e os lugares sociais que marcam e demarcam a tessitura de cada narrativa contam um pouco dessa história. Num diálogo transdisciplinar que espelha a plataforma ética sobre a qual nossas pesquisas e intervenção social se assenta- a luta pelos direitos humanos, por uma educação inclusiva, logo, democrática.

Essa viagem começa com a provocação de Laura Nery em Grotesco, caricatural, pornográfico: notas sobre a insubmissão da forma. O ensaio, experiência modificadora de si e não um mero jogo simplificador da comunicação, exercício de pensamento que assume os riscos do engajamento pessoal ancora a reflexão. O texto estabelece algumas relações entre Grotesco, caricatural e pornográfico em seu sentido mais extremo, ou “satânico”, como definiu Charles Baudelaire ainda no século XIX, segundo a autora, destacando semelhanças de estratégias expressivas entre eles. No âmbito da linguagem, a presença desses modos permite entrever um jogo entre experimentação formal, liberdade e interdição.

Seguindo a insubmissão como tática de resistência A Dama e o Amor: Cortesia e heresia na poética medieval de Benjamin Rodrigues Ferreira Filho (UFMT); Shirlene Rohr de Souza (UNEMAT), propõe a leitura do poema “Aquele que não viu o Amor”, do poeta galego-português Nuno Fernandes Torneol. Escrito provavelmente no século XIII, o poema é tomado pelos autores como pulsão para identificar os indícios de subversão da linguagem, ou quem sabe da transvaloração de palavras que guardavam segredos perseguidos por uma igreja inquisidora que ao implantar um ideal dogmático de amor, perseguia “hereges” e condenava ao paganismo das comunidades cátaras e sua crença na “Igreja do Amor”. Através da leitura do poema de Torneol, e de alguns outros poetas, revelam-se os interesses e as disputas de poder travadas pela igreja de Roma.

Com Selma Pantoja o destaque à Historiografia Africana e os Ventos Sul: desenvolvimento e História uma escrita da história, no âmbito dos estudos pós-coloniais, da colonialidade e da experiência Sul. O que faz emergir as narrativas sobre o Estado-Nação africano e o Homem Novo tomando como mote a questão do desenvolvimento e os elementos simbólicos de recuperação. Instigante o relato de sua experiência como professora de história por três anos na cidade de Maputo e os impedimentos no acesso ao acervo da Biblioteca Colonial como representativo dos desafios na descolonização do saber. Ainda nesse viés, chama a atenção para a ressignificação de heróis e heroínas, de fundo nem colonial nem nacionalista ensejando outras perspectivas de produção de conhecimento histórico. Transversos: Revista de História Transversos: Revista de História.

No artigo Terra, Trabalho e Conflitos Escravos no Vale do paraíba Fluminense na Segunda Metade do Século XIX, Keith Barbosa analisa a partir de inventários, correspondência entre autoridades policiais e notícias da imprensa, o modo como os conflitos travados entre os herdeiros pela herança de família e prováveis novos proprietários das fazendas teriam motivado o aumento das tensões entre escravos destacando as estratégias múltiplas para se lidar com a exploração cada vez mais intensa nas plantations de café.

No ensaio A educação como condição e prática da democracia, Aimberê Guilherme Quintiliano da Universidade Federal de Juiz de Fora articula a efeméride de uma publicação- Democracy and Education, de John Dewey, em 1916 às questões contemporâneas da educação, em que o modelo empresarial estaria tomando lugar do modelo educacional nas instituições de ensino e formação profissional, principalmente nas redes públicas. O temas essenciais da filosofia da educação são retomados para traçar um retrato da relação entre o professor e o aluno, mostrando que para uma educação que faça progredir a sociedade e que permita uma melhora das relações entre os seres humanos exige a ampla liberdade de pensar.

Ainda sobre os desafíos de uma Educação de viés igualitário e transformador, Davi Avelino Leal e Juliana Ventura Brasil em A política de ação afirmativa e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas desenvolve breve, mas pertinente, reflexão sobre a compreensão dos alunos cotistas do Ensino Médio Técnico acerca das políticas de ação afirmativa implementadas no IFAM. Através de entrevistas semi-estruturadas e análise da legislação e atas dos conselhos de classe buscou identificar os efeitos da implementação da Lei de Cotas, em destaque o risco de estigmatizaçãos dos sujeitos por ela alcançados.

O dia que durou 21 anos: A simbiose entre passado e o presente pelas lentes do cinema Joana D Arc Ferraz problematiza o uso que fazemos da História a partir do filme documentário. Os efeitos de poder deste presente intolerável provocam a engajada cientista social, professora da Universidade Federal Fluminense e membro atuante do Grupo Tortura Nunca mais. Ancorada em Nietzsche e Foucault o texto procura identificar nas análises de autores que, ainda na ditadura, nas décadas de 1970 e de 1980 do século passado pensaram o golpe o contexto político e econômico de dependência ao capital internacional. Nesta démarche denunciaram algumas questões que, pelas mais variadas percepções, acabaram se empoeirando e se distanciando de nossos olhares.

Na trilha de texto denuncia Mujeres del Cauca: Colonialidade y patriarcado na guerrila de las FARC-EP, Amanda Ledezma Meneses (Universidade Surcolombiana) e Gerson Galo Ledezma Meneses (UNILA), apresentam o conflito armado e a violência vivida na Colômbia como herança colonial. O especismo, que segundo os autores, possibilitou a constituição do racismo e de um complexo sistema de inferiorização de homens e mulheres ressoa na atualidade legitimando o sistemático extermínio de camponeses, indígenas e comunidades afrocolombianas, pelas ações violentas do exército, da guerrilha e dos grupos paramilitares, que agem sob os auspícios do Estado-nação. Neste contexto, emerge o cotidiano de quatro mulheres do Departamento de Cauca na Colombia violentadas sexualmente por guerrilheiros. Seus testemunhos permitem a interrogação sobre o silêncio que cobre o flagelo a que estão submetidas e ainda a confirmação de que o “Estado colombiano mata mulheres, indígenas, pobres e negros, por meio de sus instituições e da mesma sociedade formada em suas filas.”

A seção Entrevista destaca a participação da professora Ana Maria da Silva Moura na idealização e construção do LEDDES. O comprometimento entre entrevistadores e entrevistado transforma o encontro numa saborosa conversa. A rememoração dos múltiplos e complexos tempos afetados pela experiência discursiva do fazer lembrar são iluminados pelas possibilidades do biografema. A seguir é possível acompanhar os efeitos das atividades do laboratório no ofício da História de dois jovens pesquisadores: Gustavo Pinto de Sousa, professor da Universidade Federal do Pará expõe as Experimentações históricas: da casa de correção ao direito das gentes e, na fala de Daniel Thomaz Mandur, hoje professor em OXFORD, a Trajetória de um pesquisador em seu espargir por outros espaços acadêmicos.

Nas Notas de Pesquisas o foco estaria na construção do trabalho acadêmico em seu movimento de elaboração marcado pelo provisório. Em vez do produto acabado, os caminhos e descaminhos complexos da busca de uma Clio negra para uma nação multicor: a escrita da história na imprensa negra-1926-1937 do doutorando João Paulo Lopes -PPGH / UERJ; da Descolonização e justiça: fundamentos para a educação e políticas da interculturalidade de Aline Cristina Oliveira do Carmo do Curso de Filosofia da UERJ; ou ainda dos Territórios dos afetos: O cuidado nas práticas femininas quilombolas contemporâneas do Rio de Janeiro de Mariléa de Almeida da UNICAMP; concluindo com a problematização dos “Grandiosos batuques”: notas de uma pesquisa em História sobre as experiências dos classificados como “indígenas” em Lourenço Marques(1890-1930) de Matheus Serva Pereira também da UNICAMP.

Em Experimentadores, diferentemente, das exigências de uma História profissional, o que se propõe é publicizar as narrativas produtoras de sentidos que auxiliem a reflexão de questões históricas do passado e contemporâneas. Deste modo se inscreve as reflexões sobre a Comunidade da Ilha do Bananal: auto organização da população em situação de Rua na cidade de Cuiabá-MT, de Eliete Borges Lopes (SEDUC / MT). A partir de um longo percurso pelas ruas desta quente capital do Centro-Oeste, fotografando moradores em situação de rua; criando táticas de aproximação e de estabelecimento de algum contato e conexão; tomando como tarefa a composição de um minucioso arquivo visual dos grafites que cobrem esta capital de arte, denúncias e vida; presenciando mortes, percebendo desaparecimentos e testemunhando ações violentas da polícia para com esta população, identifica comunidades de rua nascentes e em extinção e compõe uma cartografia dos arte-fatos e afetos que as constituem, entre elas a Ilha do Bananal. Em prédios antigos, tombados pelo Instituto do patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), debaixo da ponte que liga (ou separa), as duas maiores e mais violentas cidades de Mato Grosso, Cuiabá e Várzea Grande, nas proximidades do Morro da Luz, ou mesmo sob e atrás de out-doors as comunidades vão erguendo outros lugares. O modo como se movimentam pela cidade, a lentidão que caracteriza seu aprendizado sobre o território da rua, os espaços que ocupam, revelam a vida que toma posição e combate no front.

A seção Resenha, que encerra a edição, apresenta o diálogo entre autores / as, no exercício do habitar e comentar a textualidade de uma obra. Os trabalhos em questão identificam os dilemas do fazer História, suas fontes ou materialidades e, em especial, os diferentes lugares socio-institucionais da produção historiográfica. Assim, ser autor e objeto, ser afetado mas procurar controlar a subjetividade agarrando-se aos procedimentos teórico- metodológicos do ofício. O primeiro desafio foi aceito pelo experiente pesquisador do tempo presente Francisco Carlos Teixeira – No olho do furacão: 2016 historiadores pela democracia – expõe o impacto do acelerado processo de impedimento da presidente Dilma Rousset. A obra organizada por Beatriz Mamigoniam (UFCS), Hebe Mattos (UFF) e Tania Bessone (UERJ) reúne historiadores / as de diferentes gerações e textos, originalmente publicados, no calor do momento e nas mais diversas mídias, propondo-se a elaborar a cronologia do golpe.

Saímos da História em cena para a representação cinematográfica dos dilemas da democracia contemporânea, na resenha de José Ramon Narvaes Hernandes do livro 12 Hombres en pugna: Ni castigo, ni perdón. El derecho a dudar, do Director Eddy Chávez Huanca. Segundo livro da Coleção Cinema e Direito. Trata de uma experiência que vem se consolidando como área de pesquisa que é trabalhar questões relativas e bastantes caras ao Direito, a partir das provocações que o cinema nos convida. Porém, mais que isso, há histórias ocultas e periféricas, bem como as outras linguagens cinematográficas que orquestram a narrativa e revelam vozes e possibilidades de interpretação. A atualidade desta discussão está em exatamente avaliar o comportamento dos jurados na democracia.

Conclui a seção a tese transformada em livro do professor Silvio Carvalho nomeada Utopia de uma nação: construção do imaginário social angolano a partir da produção literária no pós-independência (1975-1985) por Fabia Barbosa Ribeiro. A professora e pesquisadora do Campo dos Malês na Bahia da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) destaca como objetivo central do estudo a questão do imaginário social sobre a nação angolana, construído a partir de uma nascente literatura nativa, assentada sobretudo nas relações políticas constituídas durante e imediatamente após a guerra de libertação colonial. Enfatiza a importância de uma obra que se inscreve e contribui sobremaneira aos Estudos Africanos no Brasil.

Encerramos a apresentação propondo um convite ao bom debate instigado pelas reflexões dos diferentes articulistas. Enfim, a coragem de ser um eterno aprendiz que ecoa da Aula de Barthes.

Há uma idade em que se ensina o que se sabe: mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar de trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda que ousarei tomar aqui sem complexo, na sua própria encruzilhada de sua etimologia: sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível (BARTHES: 1977. p47)

Por mais atenta que esteja no passado a História ainda se escreve no presente. Experimentar, diversificar e, é claro, saborear o pensamento como ação que emerge deste dossiê- convite à resistência em suas múltiplas condições de possibilidades que se afirmam no “eu posso, Tu podes, Ele pode…e Nós LEDDES”.

Notas

1 Título do Seminário que aconteceu na UERJ nos dias 6, 7 e 8 de dezembro de 2016. Para além da comemoração o evento permitiu um encontro de pesquisadores / as, estudantes, professores e demais interessados / as nas questões leddeanas, assim nas Margens da História: artes, corpos e invenções como táticas da cidade da linha -Vulnerabilidades e Controle Social; Ordem e progresso: como fazer História no Brasil pós-impeachment da Escritas da História e por fim Áfricas: trajetórias e pesquisas. Entre outras provocações destacamos a exibição e debate do filme Menino 23.

2 Pedro Henrique Torres, mestrando do PPGH / UERJ, pesquisador do LEDDES, bolsista da FAPERJ.

3 O rizoma para Deleuze e Guattari (1995) seria um modelo de resistência ético-estético-político, trata-se de linhas e não de formas. Pesadelo do pensamento linear, não se fecha sobre si, é aberto para experimentações, é sempre ultrapassado por outras linhas de intensidade que o atravessam.

Referências

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix Editora, 1998.

______. Sade, Fourier, Loiola. São Paulo: Brasiliense, 1998.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 1, São Paulo: Editora 34, 1995.

Ana Lúcia Vieira de Carvalho – UFAM Marilene

Rosa Nogueira da Silva – UERJ

Priscila Xavier Scudder – UFMT

Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 2016.


CARVALHO, Ana Lúcia Vieira de; SILVA, Rosa Nogueira da; SCUDDER, Priscila Xavier. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.8, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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