Cem anos da Revolta da Chibata / Antíteses / 2010

“Revolta da Chibata -100 anos: história e historiografia” Seminário internacional realizado na UERJ, setembro de 2010

O presente dossiê reúne, agora em textos, resultados de reflexões dos principais pesquisadores da atualidade que se aventuraram a navegar pelas águas, nem sempre calmas, da Revolta da Chibata – como se tornou conhecido na historiografia o levante de marinheiros brasileiros de novembro e dezembro de 1910. Os trabalhos aqui publicados foram apresentados no quadro do seminário internacional “Revolta da Chibata – 100 anos: história e historiografia”, organizado por Marco Morel, Sílvia Capanema P. de Almeida e Tania T. Bessone da Cruz Ferreira e ocorrido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) nos dias 10 e 11 de setembro de 2010 1. O objetivo do encontro era reunir, no ano do centenário da revolta dos marujos contra os castigos corporais e por melhores condições de trabalho na Marinha de Guerra do Brasil, pesquisadores nacionais e internacionais que proporcionaram, nos últimos anos, diversas abordagens sobre o movimento, a partir de diferentes perspectivas metodológicas, epistemológicas e até mesmo institucionais. mseminário significou um encontro inédito: pela primeira vez, historiadores, que em muitos casos somente se conheciam através de textos ou graças a uma esbarrada ou outra em um evento acadêmico, tiveram a oportunidade de discutir juntos sobre a Revolta dos Marinheiros de 1910.

O dossiê que publicamos coletivamente a quatro mãos, com a participação, além dos organizadores do evento, de José Miguel Arias Neto, busca registrar essas diferentes visões em torno de um mesmo “tema historiográfico” e propor, de uma certa maneira, um parâmetro do estado atual da reflexão sobre o assunto. Alguns artigos apresentam resultados de pesquisas recentes, como os trabalhos de Joseph Love (Universidade de Illinois), Sílvia Capanema (Universidade de Paris 13-Nord) e Tânia Bessone (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Outros são fruto de reflexões atualizadas ou de natureza ensaística apresentadas por historiadores experimentados no assunto, como Álvaro Pereira do Nascimento (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), Hélio Leôncio Martins (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), Mário Maestri (Universidade de Passo Fundo) e José Miguel Arias Neto (Universidade Estadual de Londrina)2.

A obra de Edmar Morel (A revolta da chibata, 1959), trabalho, aliás, que nomeia a revolta dos marujos, é citada como referência, direta ou indiretamente, em todos os artigos aqui publicados. Nessa perspectiva, o ensaio do historiador Mário Maestri destaca a importância desse trabalho na sua própria formação intelectual e política de orientação marxista. O autor discute o caráter polifônico da obra e, analisando os trabalhos existentes sobre o assunto até meados dos anos 1990, põe em perspectiva a sua reflexão pessoal à medida que sintetiza seus principais argumentos: a analogia feita ao grupo de marinheiros como “proletariado embarcado”, o papel da dimensão racial num país profundamente marcado pela escravidão e a necessidade de uma escrita da história compromissada com a transformação da sociedade e o combate às injustiças. Num sentido oposto, surge o artigo de Hélio Leôncio Martins, historiador militar e vice-almirante da Marinha do Brasil, que atualiza parte dos argumentos já apresentados em seu livro de 1988 (A Revolta dos marinheiros – 1910). No artigo, através de uma análise documental rigorosa, o autor combate a criação de uma imagem heróica do marujo João Cândido, principal líder da rebelião. Segundo o historiador naval, construiu-se uma figura mítica em torno do personagem que não condiz com as verdadeiras e profundas características do marujo: pouco preparado; representante de uma geração de marinheiros mais habituados à dinâmica de trabalho do navio a vela e nada aptos para acompanhar as mudanças da modernização técnica da Marinha da virada do século; pertencente a um meio de praças violentos, miseráveis e delinquentes. Assim, para Hélio L. Martins, a revolta se explica pela contradição entre o aspecto material – sobrevalorizado pelos governos e em plena transformação – e pessoal – subestimado e sem preparo. A substituição do material sem a consequente mudança de pessoal é a razão do levante, que não revela heroísmo, consciência ou coragem da marujada.

Assumindo uma outra direção, o historiador José Miguel Arias Neto propõe pensar, através da análise dos discursos emitidos pelos rebeldes – em especial a partir do manifesto dos marinheiros -, a revolta da chibata como uma verdadeira revolução, que se insere, como acontecimento histórico, no quadro mais amplo das transformações, ainda em curso, pela aquisição da cidadania no Brasil (“a longa revolução republicana”). O autor atribui à revolta um caráter definitivamente político, destaca a violência subjacente ao acontecimento e o poder dos marinheiros como fatores de ruptura com as formas de governo instauradas. Em oposição a um discurso frequente no meio dos oficiais visando à “regeneração” dos quadros da Armada, os marujos de 1910 começavam a se ver como cidadãos e, nesse sentido, como possuidores do direito de reivindicar mudanças e uma nova organização social, na qual encontrariam plenamente um lugar.

O historiador Álvaro Pereira do Nascimento também retoma a sua relação “pessoal” de historiador com a revolta, tema principal de sua produção. Recompõe o ambiente acadêmico que o acolheu quando começou suas pesquisas, no final dos anos 1980 e início dos 1990, quando uma renovação do conhecimento sobre a escravidão ganhava terreno, em grande parte em razão dos debates decorridos com o centenário da abolição, das discussões em torno da cidadania no período de redemocratização (que despertaram novo interesse pela Revolta da Vacina) e do impacto, no meio universitário campinense sobretudo, da obra de Edward P. Thompson. A oposição social – classes populares versus classes dominantes – assume em seu trabalho o paralelo dicotômico entre “oficiais” e “marinheiros” e o autor passa a se interrogar sobre o processo de construção da revolta, particularmente através da documentação do Tribunal Militar presente no Arquivo Nacional que revela um sistema complexo de regras e condutas, bem como transformações nas formas de pensar que se tornaram mais acentuadas com a chegada da República. O autor assinala os novos caminhos que sua abordagem assumiu, incluindo reflexões sobre a cultura dos marinheiros e a dimensão racial, num contexto de produção em que os militares e a sociedade civil brasileira também buscavam reconstruir seus lugares sociais.

O artigo de Joseph Love lança novas luzes sobre a revolta, trazendo à tona sua dimensão internacional através da imprensa estrangeira, mas também da presença da Marinha do Brasil no exterior em período anterior ao levante, e discute os sentidos da revolta de dezembro a partir das mesmas fontes. Assim, o brasilianista americano especialista em Primeira República revela em que medida a viagem do encouraçado São Paulo a Lisboa, no momento da proclamação da República portuguesa e poucos dias antes da eclosão da Revolta da Chibata, foi bastante significativa para o movimento dos marujos brasileiros, bem como para a desconfiança do presidente Hermes da Fonseca, também presente em Portugal. A visão externa sobre o movimento de dezembro ocorrido no Batalhão Naval indica novas contradições nas organizações das forças armadas no Brasil e esse olhar estrangeiro ajuda a compreender o sentido do levante dos marujos que, na percepção do autor, buscavam os direitos do cidadão já previstos na Constituição de 1891.

A imprensa é também o objeto central do artigo de Tânia Bessone, que põe em relevo não somente a recepção do levante pelos jornais cariocas, mas também em que medida estudar o acontecimento através da imprensa pode dizer bastante sobre o contexto mais amplo em que ele se insere. Nesses termos, os jornais cariocas foram verdadeiros vetores das reações populares diante dos problemas urbanos da cidade do Rio de Janeiro – e das soluções encontradas pelas autoridades – em particular, e da exclusão no Brasil, de maneira geral. A imprensa teve um papel fundamental na divulgação de material sobre a revolta, seja ele textual ou iconográfico (fotografias e caricaturas), que serviram de fonte para os historiadores em diferentes momentos. Nas páginas dos periódicos, tecia-se também a manifestação de diversas formas de estereótipos sobre os marujos e o poder público, compartilhavam-se imaginários sobre esses “homens do mar”, ao mesmo tempo em que a imprensa tornava-se um espaço de popularização dos rebeldes e seus líderes. Tania Bessone discute ainda a produção historiográfica sobre os protestos populares no contexto da Primeira República e insere a própria produção sobre a revolta nesse quadro, ainda em construção.

Por fim, Sílvia Capanema busca entender quem, de fato, eram os marujos de 1910. Através de um estudo das identidades coletivas e de alguns traços biográficos das principais lideranças, revela tanto a complexidade de percursos quanto a possibilidade de se pensar em um perfil comum do marinheiro de 1910. A partir de documentos inéditos encontrados nos arquivos da Marinha sobretudo, reconstitui dados como as origens geográficas e familiares dos marujos, faixa etária, níveis de instrução, discutindo as estatísticas de cor e os discursos raciais referentes a essa população de marujos e evocando ainda os significados embutidos nas marcas corporais, como bigodes e tatuagens. Apoiando-se também na leitura do histórico de algumas lideranças e outras informações biográficas, demonstra como o nascimento de uma identidade comum – a de marinheiro nacional – e a comunicação escrita foram elementos importantes para o sucesso do levante.

No entanto, a versão impressa das comunicações apresentadas neste dossiê tem como limite não conseguir mostrar ao público leitor o ambiente de debates, por vezes emocionados e emocionantes, que tomou conta do auditório 33 da UERJ nos dias do seminário internacional. Estavam presentes estudantes e pesquisadores de diferentes níveis, áreas e instituições, mestrandos e doutorandos que trabalham sobre questões e militares da Marinha, cineastas e outros profissionais das comunicações, oficiais, marujos e funcionários da Marinha ligados aos serviços de documentação e história e antigos marinheiros, hoje anistiados e aposentados pela Marinha, que participaram do movimento de 1964 e se organizaram em duas entidades associativas, a UMNA (União pela Mobilização Nacional pela Anistia) e o MODAC (Movimento Democrático pela Anistia e Cidadania). A participação de todos esses atores nos permite pensar num prolongamento e continuidade da questão, que, mesmo contendo propriedades do meio militar e corporativo, suscita ainda hoje polêmicas e paixões. Mais do que isso, o tema remete à formação contínua da luta pela cidadania, ligando diferentes parcelas sociais e múltiplas temporalidades, estabelecendo conexões entre herdeiros do movimento, intelectuais e outros atores sociais que buscam compreender as origens e os processos que nos levaram a nossos lugares atuais e como poderemos nos projetar no futuro.

Notas

1 O seminário foi realizado com o apoio das agências de financiamento CAPES e FAPERJ.

2 Lamentamos a ausência neste dossiê do texto de Zachary Ross Morgan (Boston College), que apresentou uma comunicação intitulada “Radicalismo transatlântico e as raízes britânicas da Revolta da Chibata” no seminário na UERJ, mas não nos enviou texto para publicação.

Marco Morel – UERJ

Sílvia Capanema P. de Almeida – Universidade de Paris 13 – Nord

Tania Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira – UERJ

José Miguel Arias Neto – UEL

Os organizadores

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