Revolução dos Cravos e os trânsitos coloniais – LIMA et al (AF)

LIMA, Edilson Vicente et al; FERNANDES, José Antônio da Costa (Org). Revolução dos Cravos e os trânsitos coloniais. São Paulo: Editora Kafka, 2016. Resenha de: PAOLIELLO, Guilherme. Artefilosofia, Ouro Preto, n.21, 2016.

Organizado a partir de um evento promovido pelo Ministério da Cultura em parceria com a Casa de Portugal (SP/BR) e o Centro Cultural 25 de Abril, sobre a Revolução de 25 de abril-entre nós mais conhecida como a Revolução dos Cravos-, o livro “A Revolução dos Cravos e os trânsitos coloniais” aborda temáticas que englobam aspectos políticos, sociais, históricos e culturais, e amplia não apenas nossa compreensão daquele movimento inspirador para o destino da democracia no mundo, como estabelece reflexões aprofundadas acerca das possibilidades de relações entre Portugal e Brasil.

O livro é estruturado em três capítulos, cada qual precedido de uma introdução elucidativa.

O capítulo 1, intitulado “desafios de Portugal: da revolução aos dias de hoje” trás dois textos. No primeiro, “Revolução e contrarrevolução em Portugal (1974-1976)”, Augusto Buonicore contextualiza o ambiente politico e social que possibilitou o advento da revolução que democratizou o país após os anos de ditadura salazarista, projetando a nação para um futuro que se identifica com ideais mais libertários e progressistas. A fim de compreender a grande complexidade da sociedade portuguesa no período pós-revolucionário, o segundo texto, intitulado “Portugal entre prósperos e calibans: ontem e hoje”, de José Antônio da Costa Fernandes, interliga momentos da história de Portugal numa perspectiva de longa duração, desde o Portugal Imperial, anterior ao 25 de abril, até o Portugal europeu, da União Europeia, em busca de uma identidade ressignificada no mundo globalizado. Para isso se vale d o potencial crítico de conceitos definidores da identidade portuguesa, a partir de autores como Boaventura de Sousa Santos, tais como “pós-colonialismo”, “neocolonialismo”, “barroco”, “periferia e semiperiferia”, a fim de perspectivar o papel das ciências sociais na compreensão e significação de Portugal.

O capítulo 2, “Revolução dos Cravos: cultura e trânsitos coloniais” é composto por três textos que enfatizam o papel da cultura, das artes e das letras na construção de todo um contexto de longa duração no qual se insere a Revolução.

Edilson Vicente de Lima e Rosemeire Moreira, em “F ado, trânsitos coloniais e resistência” traçam um painel histórico no qual o fado, enquanto manifestação musical autenticamente portuguesa, tem origens e se relaciona com gêneros musicais híbridos, tais como a modinha e o lundu, todos eles resultantes dos trânsitos e das trocas culturais triangulares entre Portugal, Brasil e países africanos de colonização portuguesa.

Tendo a diáspora negra como fator determinante na construção da cultura ocidental, “ressoa no fado atual uma memória longínqua de quando nos encontrávamos na festa, na dança e na música, ou seja, nos fados, compartilhando nossos destinos plurais”. Assim como a música sintetiza os trânsitos e as trocas culturais, outras linguagens também inscrevem seu modo de interpretar o mundo. É assim que Alexandre Huady Torres Guimarães, em “ A Revolução dos Cravos pelo olhar foto jornalístico” analisa um conjunto de fotografias de jornais no período da Revolução estabelecendo uma leitura dessas imagens tanto do ponto de vista de sua significação histórica, quanto da composição propriamente fotográfica. No terceiro texto deste capítulo, Lincoln Secco, em “Fernando Pessoa depois da Revolução” investiga a produção textual política do poeta portugues, esquecida nos anos da ditadura, mas de interesse crescente após a Revolução. Não apenas a produção poética e textual propriamente dita mas a fotografia jornalística e a música são tratadas, neste capítulo, como textos a serem lidos e interpretados, no sentido que propõe Alberto Manguel, para quem ler é um “processo de reconstrução desconcertante, labiríntico, comum e, contudo, pessoal”.

Após contextualizar e problematizar os desdobramentos da Revolução dos Cravos no primeiro capítulo e ampliar o arco interpretativo tendo como referência diferentes modos de ler a cultura e a história, no segundo, o terceiro capítulo do livro se volta para os sujeitos da relação Portugal-Brasil.

Daí o título “Imigrantes, resistências e acomodações”. Neste capítulo podemos observar parte das discussões que envolvem a Revolução dos Cravos e seus desdobramentos, pois durante o período da ditadura salazarista, vários foram os deslocamentos de portugueses pelo globo, e que impactaram os países receptores e construíram formas novas de sociabilidade e de inserção nestes países. O primeiro texto deste terceiro e último capítulo, “Ações antissalazaristas e protagonismo feminino: Maria Archer e Arajaryr Campos (décadas de 1950-1970)”, de Maria Izilda Santos de Matos, parte de uma sólida pesquisa documental para evidenciar o processo de recepção de imigrantes portugueses em São Paulo e sua atuação política na condição de exilados.

O texto ressalta a importância do jornal “ Portugal Democrático ”, que funcionou numa das salas do Centro Republicano Português de São Paulo, editado ininterrupta e mensalmente, entre 1956 e 1977 com tiragem de cerca de 3000 exemplares, por iniciativa de membros do Partido Comunista Português.

O texto final do livro, “Influências políticas na programação cultural da Casa de Portugal de São Paulo”, de Leandro Rodrigues Gonzalez Fernandez, analisa, sob a ótica da história cultural, parte da programação desta instituição que recebeu algum tipo de influência política, mormente as homenagens e honrarias concedidas pela Casa, já num período mais recente, a membros de partidos políticos brasileiros de viés conservador.

Dessa maneira, o livro “A revolução dos cravos e os trânsitos coloniais”, surge num momento crucial da história de nosso país. Chama a atenção para a urgência de discussão e ampliação do aparato crítico em tempos de retrocesso social e desestabilização da ordem democrática. Conhecer e discutir o processo de democratização perpetrado pela Revolução de 25 de abril de 1974, em Portugal, representa não apenas uma oportunidade de aprofundar as relações entre esses dois países, mas é, sobretudo, um alento para nós brasileiros, n o momento em que se instaura em nosso país uma espécie de estado de exceção operado por um aparelho judiciário historicamente vinculado a setores conservadores da sociedade, sustentado por um oligopólio midiático sem precedentes no mundo contemporâneo e um a tendência à regressão no campo dos costumes pressionada pela atuação de grupos religiosos com forte atuação nos poderes legislativo e executivo.

Guilherme Paoliello-Professor do curso de Música no Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]

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