Saúde, Segurança e Direitos do Trabalhador / Projeto História / 2020

Iniciamos incitando o leitor a lançar um olhar mais demorado sobre a imagem da capa que já é, de per si, uma apresentação. Trabalhando com a fotografia de Caio Guatelli, fotógrafo da Folha de São Paulo, seu autor, o professor Claudinei Cássio de Rezende, explicita que a escolha se deu por ser representativa destes tempos, em que a saúde e a segurança do trabalhador foram postas de lado. Trata-se de um entregador de aplicativos, revoltado durante uma manifestação contra o rebaixamento de suas condições de sobrevivência, mesmo que, com isso, aumente os riscos à sua saúde. Nada mais sintomático em uma imagem sobre esses tempos, e sobre o conjunto de ameaças vivenciados por trabalhadores.

Isso porque, enquanto se preparava o fechamento desta edição da Revista Projeto História, cujo tema é Saúde, Segurança e Direitos do Trabalhador, o mundo assistia a uma das maiores epidemias de sua história, afetando diretamente a humanidade em todo o planeta. Ao lado da Grande Peste que marca o fim da Idade Média e da Gripe Espanhola no começo do século XX, o mundo se defrontou com uma grave pandemia, capaz de promover a mortandade de cerca de três a cinco por cento dos que dela forem acometidos.

As quarentenas obrigatórias e voluntárias se ampliaram no mundo, e mais uma crise do capital, anunciada desde fins 2018, 1 mostrou a faceta mais cruenta inerente a essa forma de caminhar da humanidade. Certamente, a crise econômica não fora derivada do Corona Vírus, 2 mas sua erupção foi sentida de forma bastante agudizada em vários países do mundo. Premidos ante o dilema: salvar as economias ou as vidas, governos oscilaram entre ciclos de quarentenas e aberturas, ou deixaram à deriva seus povos, populações inteiras viram-se à beira do abismo. Campanhas se disseminaram no mundo, solicitando que não houvesse paralisações dos setores produtivos e de comércio, enquanto trabalhadores reivindicavam, no mundo todo, medidas substanciais de manutenção de suas vidas. Se, para tanto, estivessem impossibilitados de realizar aglomerações, em muitos países, essas continuaram presentes no quotidiano de suas vidas, fosse nos trajetos para o trabalho, no interior de suas miseráveis vivendas ou nos espaços desordenados das urbanidades a que se vêm relegados.

Nesse pêndulo, foram consideradas essenciais atividades econômicas que mantivessem o consumo em alta, numa clara ilusão de que o capitalismo engendra a si mesmo, quando, “na realidade, o capitalismo não engendra a si mesmo, mas explora a mais-valia do trabalhador”, conforme recupera Žižek (2008, p. 88, apud FONTENELLE, 2014, p. 211), autor que repõe os resultados das “análises de Marx sobre a produção do excedente de capital e sua expansão infinita na esfera da circulação. 3

Em todo o mundo, a consciência de que o capital não fora capaz de preservar vidas e se deteve em salvar economias e lucros se evidenciou. Fábricas de automóveis na Itália4 mantiveram suas atividades em meio à pandemia até explodirem greves de trabalhadores, contrariando suas direções sindicais e determinações do Estado.

Alguns países até realizaram campanhas visando a manutenção das atividades econômicas em meio à pandemia. Exemplo disso, na própria Itália- que teve como epicentro da epidemia o norte do país, com maior atividade industrial, o prefeito realizou campanhas, difundidas inclusive em redes sociais, com o lema, “Milão não pode parar”. Reino Unido, através do Primeiro Ministro Boris Johnson, Estados Unidos, sob a presidência de Donald Trump, iniciaram medidas de contenção verticalizadas, até que estudos de especialistas demonstraram que a mortandade seria alta o suficiente para promover, além da paralisação da economia, um alto índice de rejeição e revolta. Rapidamente, de posse de tais estudos, congressistas aprovaram medidas sociais de isolamento social, promovendo ajuda assistencial. Mas as contenções não foram suficientes, e trabalhadores acabaram se mobilizando e se concentrando nas ruas contra as medidas violentas do Estado, capitaneadas especialmente pelas polícias, mas não só. Dados apontados mostram que negros e latinos estão entre os mais afetados pela pandemia nos Estados Unidos, demonstrando que, embora a doença não tenha endereço e cor de pele, a falta de acesso aos sistemas de saúde, torna mais vulneráveis os pobres e negros.

No Brasil, além da negação da pandemia, incentivos às aglomerações promovidas pela Presidência da República, altos índices de trabalho informal, trabalhadores se defrontaram com o agravamento da crise no Sistema Único de Saúde e o aumento da violência policial. Relatórios já de 2019, publicados pelo portal G15 demonstravam que a atuação policial no Brasil era mais violenta nas periferias e que crescia exponencialmente o número de jovens negros assassinados. Tal violência institucional amplia a vulnerabilidade socioeconômica e acentua a exclusão aos direitos de cidadania, a que se somam, por um lado, o aumento de desemprego e, de outro, a redução dos direitos trabalhistas.

Nunca foi tão importante discutir como o tema da saúde e segurança do trabalhador, assim como seus direitos, foi colocada em diferentes momentos da história, o que é o objeto desse dossiê. Ou seja, voltarmos nossos olhares para o tema da Saúde, Segurança e Direitos do Trabalhador

Nesse sentido, abrimos o dossiê com o artigo de Ricardo Normanha intitulado A centralidade do trabalho em debate: notas para um balanço histórico e apontamentos para o presente e futuro da luta de classes, no qual o autor analisa a reestruturação produtiva e suas consequências no mundo do trabalho, recuperando a análise ontológica da centralidade do trabalho para a compreensão das formas complexas e também precarizadas de exploração da mão de obra.

Em seguida, Wanderson Fabio de Melo discute em, A Revolução Russa e o direito à moradia: De 1917 a 1945, as questões habitacionais na Rússia no período imediatamente posterior à Revolução Socialista, os déficits habitacionais e as consequentes políticas engendradas para resolver a questão de moradia para os trabalhadores russos, percebendo que o isolamento russo diante do mundo conflagrou situações inamovíveis no que tange à moradia.

Em Aspectos da modernização da agricultura durante a Ditadura CivilMilitar Brasileira (1964-1985): vínculos, métodos e estratégias, os historiadores Cintia Wolfart, Marcio Antonio Both da Silva e Marcos Vinicius Ribeiro se debruçaram na compreensão dos impactos das políticas para o campo implantadas no Brasil. A partir daí demonstram como as estratégias utilizadas pelos governos, responderam às demandas das oligarquias rurais, provocando a expropriação de terras dos pequenos proprietários, a ampliação da monocultura em detrimento da agricultura de subsistência. Resulta daí a expansão do complexo agroindustrial, ao mesmo tempo em que se promoveu a cooptação de amplos setores para tal política, através dos grupos 4-S, com intenso trabalho pedagógico educativo, corroborado pelo Estado brasileiro.

No artigo de Danilo Ferreira da Fonseca, intitulado Autoritarismo, ajuste estrutural e neoliberalismo: Ruanda após o genocídio de 1994, temos um panorama sobre o processo de implementação do neoliberalismo no pósgenocídio, demonstrando como, combinado com o autoritarismo da Frente Patriótica Ruandesa, as condições de vida dos trabalhadores se desdobrou em desemprego, fome, e de expropriação de suas terras ancestrais, impelindo-os na busca por trabalho na mineração.

Em Entre Engels e os dias atuais: abordagem crítica sobre as condições de saúde da classe trabalhadora no Brasil, Luziane Dias Simão, Leonardo Carnut e Áquilas Mendes, abordam as condições de saúde dos trabalhadores no Brasil contemporâneo, resgatando a análise de Engels sobre trabalhadores no século XVIII. Centram sua reflexão na questão da saúde da classe trabalhadora através dos periódicos publicados no sistema SIBI-USP, demonstrando que as condições de vida, mesmo com as tecnologias do século XXI, ainda permanecem precárias, restando-lhes a alternativa revolucionária como condição para superação das dificuldades enfrentadas.

Damián Andrés Bil, Sebastián Norberto Cominiello e Viviana Hansi, analisam o caso de um laticínio na Argentina para compreender a situação de crise no setor. O artigo, denominado, La crisis de acumulación en la Argentina a partir del estudio de caso de una empresa del sector lácteo, debruça-se no entendimento dos percalços enfrentados pela empresa diante especialmente da competitividade internacional.

David Maciel, em artigo Mudanças políticas e institucionais na crise da Nova República: rumo a uma nova institucionalidade política, analisa o democrático, posterior ao fim da última ditadura militar no Brasil, compreendendo que a manutenção da autocracia burguesa se deu através de uma nova institucionalidade democrática que manteve características autoritárias e fascistas. Destacando as mudanças operadas a partir de 2011 com o início de uma escalada autoritária, que se desdobra no golpe de 2016, conclui sobre o surgimento de uma nova institucionalidade política, da qual decorre uma crise na Nova República.

Encerramos o dossiê com o artigo Relações Internacionais e Questão Agrária: mundialização do capital, agronegócio e as lutas pela terra em Porto Nacional – Tocantins, de Fabiana Scoleso, que analisa a mundialização do capital e o consequente impacto nas relações entre capital e trabalho, exacerbado especialmente a partir da agenda neoliberal adotada na América Latina. A partir da exposição das concretude representada pelo Porto Nacional, no Tocantins, expõe como a financeirização da terra e o poder do agronegócio, ensejaram as novas configuração do campo, vinculadas à particular forma de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, assim como a expropriação compulsória da terra, ensejou novas formas de lutas de classes ainda hoje vigentes. Ainda é de se notar que a integração regional adotada, particularmente com as commodities, são aspectos relevantes para demonstrar a atuação do Estado. Atuação esta que se desvela com investimentos estatais que beneficiam o agronegócio, em detrimento, inclusive dos povos originários da região.

No espaço dedicado aos artigos livres, abrimos com o texto de Cristiane Medianeira Ávila Dias, intitulado A Ditadura Civil-Militar Brasileira e a repressão além fronteiras, abordando o monitoramento efetuado pelo Centro de Informações do Exterior (CIEX) e pela Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Relações Exteriores (DSI / MRE), sobre brasileiros, a partir do Golpe de 11 de setembro de 1973 no Chile. Nesse sentido, o artigo destaca a atuação de tais órgãos fora das fronteiras nacionais, demonstrando anuência dos demais estados, bem como a integração desses países na rede Condor.

Em seguida, trazemos o artigo de Walbi Silva Pimentel, Marcos Vinicius Freitas Reis e Fábio Py, intitulado Aspectos Sócio Histórico da Igreja Católica na Amazônia, em que analisam a presença da Igreja Católica e as diversas ordens religiosas ali colocadas para a catequização dos povos originários, negros e colonos desde o século XVI. O artigo aborda as diversas formas de atuação da Igreja, desde o início da colonização da região até o século XX, as contradições encontradas e os novos desafios com a separação entre Igreja e Estado no limiar do século XIX para o XX.

Frederico de Oliveira Toscano trouxe-nos o artigo O Inimigo é a Fome: breve histórico da escassez alimentar no Nordeste e do papel do Estado em seu enfrentamento, recorrendo à análise historiográfica de construção da associação do Nordeste brasileiro à fome, enfatizando a obra do geógrafo Josué de Castro, percebendo o papel de intelectuais na discussão de que não se trata, para aquela região, de um problema climático, mas de uma questão que deve ser enfrentada socialmente pelo Estado e pela sociedade.

O artigo Stanislaw Szmajzner: o único sobrevivente do campo de extermínio de Sobibor no Brasil, de autoria de Felipe Cittolin Abal, aborda o caso de Szmajzner, que migrou para o Brasil ao fim da Segunda Guerra Mundial. Seu artigo parte da infância desse sobrevivente até ser encaminhado para Sobibor, sua participação na revolta ocorrida no campo, e a vida no Brasil. Shlomo, como ficou conhecido, foi um dos que reconheceram Gustav Wagner, um dos participantes do genocídio impetrado. O trabalho teve como preocupação o resgate da memória, a seleção do que o autor considerou pertinente para a constituição do texto, e traz como desafio recontar a história de um sobrevivente individualmente, como expressão de um genocídio de grandes proporções.

Ainda com a preocupação de auxiliar na produção acadêmica dos pós-graduandos, a Revista Projeto História traz a seção Notícias de Pesquisa. Nesse número, Breno Ampáro Alvares Freire, em: Dissonâncias Perfeitas: o protagonismo dos músicos de orquestra rumo à institucionalização da categoria em São Paulo (1913-1949), analisou a atuação dos músicos de orquestra em São Paulo, em busca de tornarem-se uma categoria profissional, demonstrando as contradições existentes entre a atividade artística e a associação profissional desses músicos.

Por fim, trazemos a resenha do livro de Leandro Pereira Gonçalves, intitulado O passado e a atualidade do pensamento político fascista: análises sobre o catolicismo conservador de Plínio Salgado entre Brasil e Portugal, realizada por Pedro Ivo Dias Tanagino, como importante contribuição para a compreensão da atuação de Plinio Salgado.

Boa leitura,

Notas

1Os alertas começaram a circular em fins de 2018. No encontro de Davos em fevereiro de 2019, a “ diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, alertou(…), após dois anos de sólida expansão, a economia mundial está crescendo mais lentamente do que o esperado e os riscos estão aumentando. ‘Isso significa que há uma recessão global dobrando a esquina? Não. Mas o risco de um declínio mais acentuado no crescimento global certamente aumentou’, ressaltou”. Cf. CORRÊA, Alessandra. O mundo está à beira de uma nova grande crise econômica? BBC News Brasil, 2 / 02 / 2019. Disponível em: https: / / www.bbc.com / portuguese / internacional-46967791. Acesso em 04 / 08 / 2020.

2 “A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus, denominado SARS-CoV-2, que apresenta um espectro clínico variando de infecções assintomáticas a quadros graves. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a maioria (cerca de 80%) dos pacientes com COVID-19 podem ser assintomáticos ou oligossintomáticos (poucos sintomas), e aproximadamente 20% dos casos detectados requer atendimento hospitalar por apresentarem dificuldade respiratória, dos quais aproximadamente 5% podem necessitar de suporte ventilatório”. Cf. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sobre a doença: o que é a Covid-19. Disponível em: https: / / coronavirus.saude.gov.br / sobre-adoenca. Acesso em 04 / 08 / 2020.

3 FONTENELLE, I. A. O estatuto do consumo na compreensão da lógica e das mutações do capitalismo. Lua Nova, São Paulo, 92: 207-240, 2014, p. 211.

4 Em março de 2020, quando a Itália se tornou o epicentro da pandemia mundial, algumas organizações de esquerda, especialmente, noticiaram a eclosão de greves na indústria automobilística na Itália, especialmente ao norte do país, região mais industrializada, e, portanto, mais afetada pela Covid-19. Conferir em: https: / / www.wsws.org / pt / articles / 2020 / 03 / 17 / ital-m17.html. Acesso em 04 / 08 / 2020.

5 Nos dias 22 e 23 de junho de 2020, o portal G1 trouxe as manchetes de aumento de letalidade provocada por policiais nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente, demonstrando, inclusive, a queda das taxas de homicídios na série histórica analisada. Conferir as reportagens em: https: / / g1.globo.com / rj / rio-dejaneiro / noticia / 2020 / 06 / 22 / rj-tem-maior-numero-de-mortes-por-policiais-em-22-anose-o-2o-menor-indice-de-homicidios-ja-registrado-pelo-isp.ghtml e https: / / g1.globo.com / sp / sao-paulo / noticia / 2020 / 06 / 23 / batalhoes-da-grande-sp-matam60percent-mais-em-2020-na-capital-aumento-de-mortes-por-policiais-militareschega-a-44percent.ghtml. Acessos em 04 / 08 / 2020

Jussaramar da Silva – Doutora e Professora da Rede Municipal de Ensino de Juiz de Fora / MG Pesquisadora do Centro de Estudos de História da América Latina e Caribe (CEHAL) da PUC-SP

Vera Lucia Vieira – Doutora e Professora da PUC-SP


SILVA, Jussaramar da; VIEIRA, Vera Lucia. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.68, 2020. Acessar publicação original [DR]

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