Sociedade Escravista e Pós-Abolição / Especiaria / 2007

Com este número, Especiaria traz temas de amplo interesse para o público acadêmico voltado ao estudo da escravidão e do pós-abolição, bem como propicia a não-especialistas subsídios para a compreensão do passado escravista e seus legados, em especial o de países que vivenciaram a escravidão na época moderna, como Brasil, Cuba, dentre outros. Desse modo, o dossiê Sociedade Escravista e Pós-Abolição debate formas de governo dos escravos, medos de insurgências em sociedades escravistas, temor de africanos e de seus descendentes perante a morte católica, hierarquias e mobilidade social, a dimensão moral da alforria, negociações entre senhores e quilombolas inseridos na ordem, condições de vida nos quilombos, trabalho e diferenciação entre escravos, cores e seus significados políticos, organização familiar, mestiçagem, os papéis da Igreja e de eclesiásticos na legitimação da escravidão e na produção da liberdade, a luta de ex-escravos em busca de autonomia em sua organização familiar, etc.

Eis a tônica dos pontos abordados no atual número de Especiaria. Desse modo, as abordagens aqui reunidas levam a refletir sobre a sociedade escravista de outrora, uma vez que atentam a seus discursos, sua linguagem, ao papel dos atores sociais, etc. Mas tudo isso sem cair na armadilha do anacronismo conceitual, aspecto ultimamente pouco observado por alguns afeitos e afoitos ao discurso fácil da fórmula escravidão + opressão = resistência. Fórmula com aparência de politicamente correta, mas, no mais das vezes, desprovida de embasamento, posto que pouco acrescenta à compreensão dos modos de funcionamento da sociedade escravista de outrora, além do fato de que a idéia de resistência se aplica a quase toda ação escrava, sendo tão esclarecedora quanto evasiva.

Outrossim, notam-se nos artigos aqui reunidos uma forte base empírica, técnicas e metodologias bem aplicadas, quer se trate de estudos de caso, do emprego da quantificação, de análise de discursos, ou da metodologia propiciada pela micro-história italiana. Evidentemente, esta diversidade é acompanhada do uso criativo de corpora documentais variados, que incluem legislação leiga e canônica, relatos de viajantes, memorialistas, cronistas, registros paroquiais de batismo, casamento e óbito, censos populacionais, inventários post- -mortem, testamentos, jornais, livros de notas, processos criminais, cíveis, de tutela, registros de alforrias, dentre outras fontes.

Tão importante é a dimensão das áreas e das temporalidades contempladas por este número de Especiaria, já que aqui se verá o universo microscópico da Fazenda de Santa Cruz do Rio de Janeiro e da vila de Campos do Goytacazes entre meados do século XVIII e início do XIX. Também a desconhecida vila de Porto Feliz na capitania (depois província) de São Paulo e o município de Macaé, na província do Rio de Janeiro, ambos os locais cotejados no século XIX. Tais estudos centrados em certos locais estão longe, evidentemente, de confundir micro-história com história regional ou qualquer coisa parecida. Ao contrário, trata-se de abordagens que elegem áreas representativas de um universo mais amplo aplicando ensinamentos da micro-história. Pari passu, não se deixou de lado a dimensão da longa duração e os períodos anteriores ao século XIX, como, por exemplo, a perspectiva religiosa presente na sociedade escravista da América portuguesa entre os séculos XVII e XVIII, séculos menos contemplados entre pesquisadores da escravidão.

Não satisfeita, Especiaria apresenta ao público importantes estudos sobre outros países das Américas escravistas, notadamente Colômbia e Cuba, campos pouco visitados por pesquisadores da escravidão brasileira, cujas análises comparativas, quando é o caso, em geral se reportam aos Estados Unidos.

Abrindo o Dossiê, o artigo de Anderson José Machado de Oliveira analisa de forma brilhante a percepção da Igreja sobre a escravidão africana na América portuguesa entre os séculos XVII e XVIII, em especial a moldagem de um discurso de legitimação religiosa da escravidão e o papel da catequese na construção de santos pretos virtuosos que servissem de exemplo aos escravos. Por sua vez, Márcio de Sousa Soares, ao contemplar Campos dos Goytacazes da segunda metade do século XVIII e inícios do XIX, sublinha as dimensões morais e políticas das alforrias naquela sociedade profundamente informada pela religião, rompendo de vez com o economicismo primário como causa primordial das alforrias.

O artigo inovador de Cláudia Rodrigues destaca como, no Rio de Janeiro do século XVIII, africanos e egressos do cativeiro se apropriaram da morte católica de modo diferenciado, uma vez que tinham uma concepção mais atemorizada da morte e do além túmulo, o que se relaciona, dentre outros traços, a reelaborações de acepções africanas sobre a morte. Medo, real ou imaginário, é também o enfoque do trabalho de Washington Santos Nascimento, que salienta o impacto da Revolução escravista de São Domingos na construção de um imaginário sobre o perigo que corria o sistema escravista brasileiro entre fins do século XVIII e meados do XIX.

Ainda no campo das construções, Roberto Guedes Ferreira analisa como a escravidão reordenou as formas de classificação e os registros das cores das populações livre e escrava na vila de Porto Feliz, São Paulo, durante a primeira metade do século XIX. Muito além da aparência da tez, a cor era socialmente definida e informada pela escravidão. Isto longe está de ser específico do Brasil. Em Bogotá, no período colonial tardio, a diferenciação social se relacionava à mestiçagem, mas sem que barreiras rígidas e intransponíveis de cor / castas congelassem atores sociais e cristalizassem um destino manifesto de exclusão. Eis a contribuição de Felipe Arias Escobar. Do mesmo modo, destacam-se os aportes de Aisnara Perera Díaz e María de los Ángeles Meriño Fuentes, em estudo sobre as alforrias em San Felipe y Santiago de Bejucal, em Cuba do século XIX. O artigo evidencia o que a comparação das escravidões nas Américas pode trazer para a construção de modelos, além de ressaltar as bagagens que os ex-cativos conduziram para a vida em liberdade. Destarte, estimula-se a realização de estudos comparativos sobre Brasil e Cuba, que colaborarão para o entendimento de nossos passados escravistas.

Não menos importante era o modo como a escravidão condicionava a liberdade, a família, o trabalho escravo, e as próprias negociações entre quilombolas e senhores. Para a liberdade, na Corte do Rio de Janeiro entre 1840 e 1871, homens do clero regular e secular não se diferenciavam dos senhores leigos na concessão da liberdade, não obstante se distinguissem entre si, como demonstra o artigo de Vanessa Ramos, o qual estimulará futuros estudos comparativos sobre as alforrias concedidas conforme os grupos sociais. Especificidade, todavia, não se observa, salvo em um ou outro aspecto, na população, na família, no trabalho e no (des)governo dos escravos da Fazenda de Santa Cruz na virada do século XVIII para o XIX, onde a administração estatal enfrentou heranças, pretéritas ou construídas, que os cativos traziam da época da administração religiosa. Assim, perspicazmente, Carlos Engemann sublinha o papel dos escravos na elaboração das regras e nas negociações da vida em cativeiro no Brasil escravista, inclusive na construção de hierarquias ocupacionais entre os cativos.

Às negociações também não se furtavam cativos de Macaé, cujos ameaçadores quilombos, dentre os quais o famoso Carucango, foram endêmicos no decorrer do século XIX. Conflito e negociação, portanto, faziam dos quilombos parte integrante da sociedade escravista. Aliás, quilombos que, em termos materiais, nem sempre eram mais satisfatórios que determinados cativeiros, como analisa de forma ímpar Márcia Amantino. Logo, quilombo e cativeiro andaram de mãos dadas no Brasil escravista. Mais do que tudo, andaram de mãos dadas escravidão e trabalho. Em seus momentos finais, e mesmo após sua sentença final em 1888, a escravidão ainda dava parâmetros a certos senhores que tentavam controlar o trabalho e a vida de egressos do cativeiro, os quais, por sua vez, lutaram para preservar sua vida familiar e sua autonomia, tal como salienta Raquel Pereira Francisco em seu artigo sobre a sociedade de Juiz de Fora, província de Minas Gerais, de finais do século XIX.

Portanto, o imediato Pós-Abolição não se libertara do passado escravista. Com certeza, a sociedade brasileira contemporânea, herdeira do racismo construído em momentos derradeiros da escravidão, em fins do século XIX, ainda precisa superar o passado escravista, quer pelos que combatem o racismo racializando a sociedade, quer pelos racistas que nem se percebem como tais. Lutamos para que chegue o dia em que deixemos de reatualizar os legados nocivos da escravidão.

O presente número traz, ainda, a tradução para o português do importante texto da professora Mary Ann Mahony “Um passado para justificar o presente:memória coletiva, representação histórica e dominação política na região cacaueira da Bahia” , precedido do comentário crítico do professor Marcelo Henrique Dias sobre o trabalho na lavoura cacaueira e, contrariando outros estudiosos, ele afirma a existência de trabalho escravo nessa monocultura do Sul da Bahia em suas origens.

A sessão artigos traz as contribuições da socióloga Sílvia Regina Alves Fernandes, autora do artigo “Impasses da Vida Religiosa em contexto multicultural – interpelações sociológicas sobre demandas de identidade”, reflexão sobre a assimilação das denominadas teorias multiculturalistas tendo em conta a instituição Vida Religiosa; e o estudo “A dinastia de Avis e a construção da memória do reino português: uma análise das crônicas oficiais” de Miriam Cabral Coser sobre a Revolução de Avis e suas conseqüências sobre a mudança no discurso político, através da literatura, das festas públicas e do teatro.

Fechando este número de Especiaria-Cadernos de Ciências Humanas, conta-se com a resenha do livro Esclavos de la ciudad letrada. Esclavitud, escritura y colonialismo en Lima , escrita por Marcelo da Rocha Wanderley.

Roberto Guedes –  Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Professor do Programa de Pós-Graduação em História da UFRural-RJ.

Paulo Cesar Pontes Fraga –  Editor.

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