A cultura material na história da educação: possibilidades de pesquisa / Revista Brasileira de História da Educação / 2007

Vestígios da cultura material escolar

Como afirmou de forma muito pertinente Margarida Felgueiras (2005, p. 97), “falar de cultura material da escola é mudar o foco de atenção […]”. De fato, implica desviar o olhar para dimensões do universo educacional – edifícios, mobiliário, utensílios, materiais pedagógicos, manuais didáticos etc. – quase sempre tomados como um dado natural, evidentes por si mesmos, sem maior relevância, ainda que sejam suportes de práticas, instrumentos mediadores da ação educativa e elementos estruturais para o funcionamento dos estabelecimentos de ensino. Mas o pesquisador interessado em efetuar esse deslocamento enfrentará, necessariamente, os desafios diuturnos daqueles que se aventuram a seguir caminhos pouco trilhados, tendo que se haver com as dificuldades teórico-metodológicas de tomar os artefatos como objeto e fonte de pesquisa.

Os textos reunidos neste dossiê foram apresentados no IV Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado em Goiânia, em 2006. Eles constituem bons exemplos da fertilidade do estudo da cultura material para a ampliação do conhecimento histórico em educação. Confrontando prescrições e práticas, a partir de diferentes fontes e abordagens de pesquisa, os estudos revelam como em torno dos materiais escolares foram instituídas práticas discursivas, modos de organização pedagógica da escola, consolidação de métodos de ensino, constituição de sujeitos e práticas, aspirações de modernização educacional e significados simbólicos. Além da análise dos materiais, os trabalhos revelam os percursos traçados na constituição de acervos e a metodologia empregada para o exame dos objetos. Ressaltam-se ainda a riqueza das interpretações empreendidas pelas pesquisadoras e a diversidade dos artefatos que emergem nas análises.

Valdeniza Maria Lopes da Barra flagra um episódio ordinário das relações entre os órgãos da administração da instrução pública e professores de primeiras letras na província de São Paulo, no século XIX. Acompanhando os desdobramentos da trama que se desenrola em torno das prescrições da Inspetoria acerca dos materiais necessários às escolas públicas primárias e as solicitações de uma professora do mobiliário e utensílios requeridos para ministrar o ensino, a autora mostra como espaço, mobiliário e utensílios entram em jogo na produção da escola. Dessa maneira, a análise faz emergir as concepções dos atores educacionais e, com muita clareza, põe em destaque a ação que subjaz nos objetos quando em relação com os sujeitos e a cultura. Num tempo em que a escola funcionava freqüentemente na casa do professor e que a relação de materiais se restringia a mesas, bancos, mochos, papel almaço, penas de aves, lápis, tinta, canivetes, traslados, catecismos, entre outros poucos artefatos, ainda assim em quantidade sempre insuficiente para as necessidades dos professores e alunos, é o modo de organizar a escola pela transmissão simultânea do ensino e um modo de ser professor que a materialidade inscreve, e que a autora habilmente demonstra.

O texto de Gizele de Souza, em contrapartida, põe em questão as exigências materiais ampliadas requeridas para o funcionamento dos primeiros grupos escolares implantados no estado do Paraná, no início do século XX. O foco do texto são as representações em torno da composição material desse novo modelo de escola primária que se consagrou durante a Primeira República, como símbolo da renovação e modernização educacional no Brasil. Emerge na análise o significado simbólico dos prédios escolares, do mobiliário escolar condizente com as normas de higiene e a profusão de materiais didáticos tendo em vista a ampliação dos programas de ensino e a adoção do método intuitivo. Nesse sentido, como bem demonstra a autora, a materialidade da escola expressa suas finalidades sociais, políticas e culturais, o sentido da renovação e sua importância no projeto republicano. É tanto perceptível as representações sobre os objetos quanto o significado simbólico que eles instauram pela sua visibilidade. Outro aspecto que sobressai no texto são as contradições entre as práticas discursivas e a provisão efetiva das escolas, ou seja, as mazelas do ensino público marcado pela precariedade e insuficiência de toda sorte. Como no texto de Valdeniza Barra e nos demais textos deste dossiê, a autora, pela nomeação e descrição minuciosa dos objetos, descortina um cenário vívido da escola. Esse quadro mais preciso do que tem sido a escola em diferentes épocas é uma contribuição inegável de uma abordagem sobre a cultura material.

O exame minucioso de fontes como relatórios de professores, diretores de escolas, inspetores e delegados de ensino, legislação e instruções emanadas dos órgãos da administração educacional, ofícios e correspondências, relações de materiais e inventários tem fomentado o encontro dos historiadores da educação com a materialidade da escola. Na análise da ausência e presença dos materiais escolares, os pesquisadores têm posto em relevo os condicionantes das práticas, como a frontalização do ensino pelo uso sistemático do quadro-negro, as posturas corporais impostas pelas carteiras, os livros de leitura mais utilizados nas escolas como suportes de transmissão de saberes, os cadernos especiais para o ensino de determinadas disciplinas escolares (por exemplo, cadernos de trabalhos manuais, de caligrafia, de aritmética, entre outros), materiais que indicam a introdução de inovações pedagógicas (como os contadores mecânicos, as cartas de Parker, os modelos de Prang, entre outros, utilizados nas lições de coisas, os aparelhos para o cinema educativo ou os meios audiovisuais).

Se a escrita administrativa produzida pelos profissionais da educação no cumprimento das exigências dos órgãos da administração do ensino (relatórios, relações de materiais, inventários etc.) tem-se constituído em fonte relevante para o estudo da cultura material escolar, o que dizer sobre a imensa quantidade de artefatos que se encontram deliberadamente ou não guardados nas instituições educativas e com os quais se defronta o historiador da educação? E aqueles salvaguardados do descarte e que fazem parte dos arquivos pessoais preservados como lembranças eivadas de afetos? E as coleções armazenadas em museus, centros de referências e de memória da educação?

O texto de Regina Maria Schimmelpfeng de Souza articula as práticas discursivas sobre a materialidade da escola com a exploração de alguns objetos como fonte de pesquisa. Para a reconstituição da história da escola alemã de Curitiba, no período entre 1884 e 1917 (Deutsche Schule), a autora valeu-se de inúmeros vestígios da cultura material. De um lado, nas fontes escritas, pôde verificar o moderno aparelhamento dessa escola, especialmente, a numerosa coleção de objetos para as “lições de coisas”, estratégia utilizada pelos mantenedores para projetar a instituição na sociedade auferindo-lhe prestígio e reconhecimento social cuja identidade passou a ser associada à boa organização escolar e à qualidade do ensino. Além disso, no exame de materiais de uso escolar encontrados nos guardados de antigos alunos – cadernos, lousa, caneta e mata-borrão – a autora pode entrever a relação intrínseca existente entre os objetos e os sujeitos, isto é, o quanto os objetos estão implicados nos processos de subjetivação. Nessa direção, ela aponta os constrangimentos corporais inscritos no uso da lousa pelos alunos, as habilidades motoras requeridas para o manuseio da pena, as múltiplas destrezas físicas e cognitivas associadas ao uso cotidiano do caderno. Assim, o texto permite apreender os objetos tanto como linguagem como materialidade que produz ações.

O texto de Rosilene Batista de Oliveira Fiscarelli e Rosa Fátima de Souza põe em discussão as possibilidades e os limites do uso de uma coleção de troféus escolares como fontes para a história da educação. Baseando-se na organização de um acervo digital de artefatos encontrados numa escola pública de ensino básico do estado de São Paulo, as reflexões das autoras buscam evidenciar os diversos tipos de informação que essa coleção propicia, assim como a abrangência das investigações que suscita. Os troféus são testemunhos das participações bem-sucedidas da escola em diferentes tipos de certames e competições de natureza esportiva, sociocultural e cívico-patriótica. Eles revelam modalidades, características dos certames, a cronologia das participações, o nível de ensino dos alunos envolvidos, as entidades promotoras e os significados sociais compartilhados. Tomados como símbolos da excelência da escola pública, eles dão visibilidade a um passado recente memorável e mantêm uma íntima relação com a memória institucional. O questionamento das autoras volta-se para a validade dos artefatos como documentos e os desafios metodológicos no enfretamento da questão.

A organização deste dossiê objetiva contribuir com os pesquisadores da área da história da educação fomentando o debate e socializando uma amostra significativa das possibilidades de investigação da cultura material escolar, domínio de pesquisa relativamente novo e muito promissor, como demonstrado nos textos aqui reunidos.

Referência

FELGUEIRAS, M. L. Materialidade da cultura escolar. A importância da museologia na conservação / comunicação da herança educativa. Pro-prosições, v. 16, p. 87- 102, jan. / abr. 2005.

Rosa Fátima de Souza – Professora adjunta do Departamento de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara / Universidade Estadual Paulista (UNESP).


SOUZA, Rosa Fátima de Souza. Apresentação. Revista Brasileira de História da Educação. Maringá, v.7, n.2, maio / ago, 2007. Acessar publicação original [DR]

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