Stuart Hall / Projeto História / 2016

Em lutas culturais com Stuart Hall

Em singular e significativa “abordagem dialógica da teoria”, Stuart Hall – intelectual militante com densas reflexões sobre o mundo contemporâneo –, em atenção a políticas de representação advindas de diásporas africanas pós Segunda Guerra a ex-metrópoles, alavancou discussões em torno de lutas culturais, sob dinâmicas interdisciplinares, na expansão dos estudos culturais britânicos na década de 1960. Ainda encaminhou expressivas análises nos primórdios dos estudos pós-coloniais, com intuições políticas relacionadas a desdobramentos interrelações local e global, desde anos 1990, enunciando rearranjos da globalização na longa duração do expansionismo Ocidental.

Nascido na Jamaica, em 1932, com 19 anos Stuart Hall foi para Inglaterra, estudar literatura em Oxford, tornando-se um teórico cultural de impacto na cultura contemporânea, enquanto personalidade anglojamaicana de prestígio na plêiade de pensadores hifenizados, forjados “entre-lugares” de fluxos migratórios a centros europeus. Fez da Inglaterra seu promontório. De onde ouviu, viu, sentiu, leu e discutiu em convívio com redes de imigrados de todos os alcances do Império, acompanhando insurgências e fazendo circular ideias, imagens, ritmos, artes, estilos que traduzem tensões transcontinentais e interculturais na vazante de poderes coloniais.

Em diversificada produção, com ensaios político-intelectuais, conferências, entrevistas, filmes, documentários, recorrendo a metáforas, simbologias, estratagemas de “sistema de representação”, construiu abordagens críticas a políticas culturais e intervenções ocidentais reincidentes em colonialidades raciais. Empenhado em fazer-se entender em suas críticas a modos europeus de pensar culturas negras e diásporas, produziu questionamentos contínuos a projeção da supremacia ocidental desde enunciados, registros, preconceitos e depreciações de seus Outros.

Além tais táticas, vale reter como seu sistema de pensar e formar arquivos críticos ao fazer-se ocidental, com suas abstrações universais e discursivas em tratados teóricos, construiu reflexões e empirismo lógico na agilidade de ensaios, conforme necessidades conjunturais, históricas, sem adotar produção intelectual em convencionais teses, tratados, livros. Em diálogos e contundentes debates, recorrendo a análises levantadas por diversos intelectuais, produzia argumentações precisas.

Nas controvérsias da nova esquerda marxista, diante perdas de seculares expectativas de lutas sociais na Europa, a diáspora negra personalizada em Stuart Hall assumiu pesquisas, discussões, intervenções nos marcos do Centre for Contemporary Cultural Studies, em Birmingham, encaminhando questionamentos culturais perante atitudes imperiais. Abrindo frentes pioneiras de reflexão, trilhadas por estudiosos centrados em culturas populares – seu ângulo de interesse desde sempre –, deteve-se em dialética de identidades subjacente à recepção de signos e símbolos culturais, à dinâmica de traduções culturais aqui agora e a deslocamentos de poderes em jogos semelhança / diferença, potencializando legados teórico-analíticos que “fizeram diferença”.

Assim renovou estudos em relação a diásporas africanas, articulando ritmos, imagens, gestuais, em ampla gama de reflexões sobre lógica de culturas negras, lutas raciais, redes de racismo, seus sentidos históricos e contínuas transgressões.

Nesta homenagem da revista Projeto História ao legado da ação político intelectual de Stuart Hall – em crítica ao eurocêntrico desde estudos culturais, pós-coloniais, antirracistas –, reunimos tradução, entrevista tratando raça / gênero, depoimento, artigos, pesquisas, que pluralizam suas contribuições além das fronteiras nacionais ou disciplinares, convencionais registros, engessamentos alheios a lutas culturais. Ao estimular estudos sobre temáticas e dinâmicas culturais negras, Hall referendou a diáspora africana e o Novo Mundo na base do mundo moderno, da cultura contemporânea, das artes e embates midiáticos.

Sem pretensão de abordar a polissemia de seu legado teórico-cultural, lembramos questões que levantou e discutiu, revigorando abordagens históricas, de ciências sociais e humanidades, de modos de pensar e fazer avançar compreensões de embates político-culturais, pontuando desafios assumidos, heranças transmitidas e a ser atualizadas em seus continnuun, como sinalizam autores e textos aqui reunidos.

Longe de definir ou teorizar cultura, cientes que questões culturais não seriam abordadas “através de um processo de osmose acadêmica”, ou pelo chamado “sistema cultural” enquanto “redes de normas e valores abstratos”, vigentes em áreas de estudo na Inglaterra de 1960, Richard Hoggart e Stuart Hall pensaram cultura em termos de suas expressões materiais e sensíveis de comunicação. Desde “mudanças nos modos de vida de sociedades e grupos, de redes de significados que indivíduos e grupos usam para dar sentido e comunicarem-se uns com os outros: o que Raymond Williams chamou ‘modos totais de comunicação – que sempre são modos totais de vida’, onde ‘a cultura popular cruza com a cultura erudita’ e o ‘poder atravessa o conhecimento ou processos culturais antecipam a mudança social”.1

Percebendo que movimentos sociais estimulam “movimentos teóricos”, que conjunturas históricas reverberam em teorias como “momentos reais na evolução da teoria”, sem abrir mão do teórico, Hall argumentou – “Quero sugerir uma metáfora diferente para o trabalho teórico: uma metáfora de luta, de combate com os anjos (…), metáfora que vocês podem interpretar o mais literalmente possível” –, pois “A única teoria que vale a pena reter é aquela que você tem de contestar, não a que você fala com profunda fluência.” Pensando o “trabalho intelectual como interrupção”, tratou das interrupções de gênero e de raça que “arrombaram” os estudos culturais em seus desdobramentos históricos e teóricos,2 como abordam autores e artigos deste Projeto História.

Empenhado “que os estudos culturais colocassem na sua agenda as questões críticas de raça, a política racial, a resistência ao racismo, críticas à política cultural”, alertando para a construção histórica de imaginário racial que “permeou toda história do imperialismo”, em “ferrenha luta teórica [e] combate interno contra um silêncio retumbante, mas inconsciente”,3 do reducionismo econômico de lutas de classe, Hall produziu análises sob o foco de lutas culturais.

Voltou-se aos interstícios classe, raça, gênero, cultura, etnia, meios de expressão e comunicação, sem esquecer agenciamentos político ideológicos. Ainda posicionou-se para que “a questão racial não ficasse restrita” aos que “a estudavam enquanto comércio escravo; fortunas familiares que permitiram a revolução do século 18; estudos do movimento antiescravagista ou que eram especialistas em história e administração colonial”.4

Em combates por descolonização mental e deslocamentos de poderes, acompanhando a “virada linguística” dos anos 70, prestou atenção à “descoberta da discursividade e importância crucial da linguagem e da metáfora linguística para qualquer estudo da cultura; à expansão da noção de texto e textualidade quer como fonte de significado, quer como aquilo que escapa e adia o significado; à heterogeneidade e multiplicidade de significados; ao poder cultural e a própria representação, como local de poder e de regulamentação; o simbólico como fonte de identidade”.5

Desde estudos frente às “novas formas de globalização (…) em história de longa duração e com representação cultural sempre estruturada de forma binária”, evidenciando trânsitos econômicos e políticos desde inícios dos anos 90, em “virada teórica” situou: “o global e o local são duas caras do mesmo movimento, um trânsito de uma época da globalização dominada pelo estado-nação, as economias nacionais e as identidades culturais nacionais – até algo novo”.6

Em dinâmica onde as margens convertem-se em espaços com poder, usando novos meios de expressão e contatos interligados, acessando “meios para falar por si mesmos”, vislumbrou crescente poder cultural descentrado. Como os “sujeitos do local, da margem, só podem entrar na representação” – por assim dizer – “recuperando suas próprias histórias ocultas”, não podendo falar da expansão racial-colonialista do mundo ocidental “sem esquecer o momento no qual não tinham voz, descobriram que, efetivamente, tinham uma história a contar, que tinham linguagens que não eram as línguas do amo, nem as línguas da tribo”.7

Tornando notório o potencial de contra-narrativas, de artes, memórias, histórias em outras linguagens, que carregam filosofia, ética e estética avessas a colonialidades racistas, articulando episteme crítica à decolonialidade de saberes, Hall sentiu o mundo descolonizar-se pelas bordas e agiu para respaldar representações em línguas e linguagens locais, prenhes de histórias singulares em suas expressões e meios de comunicação. Em análises com erudição, envolvido em debates sobre significado e peso simbólico de artes e literaturas em textos intertextuais, interculturais, em conteúdos abertos a fazeres híbridos, revelou um pensamento mundo em fronteiras extra-ocidentais.

Daí situar-se enquanto ator e autor visceralmente em choque com representações eurocêntricas de história, comprometido em fazer emergir auto-representações em histórias locais. Engendrando múltiplos espaços novos ou refazendo antigos, as percebidas injunções local / global já introduzem alterações profundas em museus, acervos de patrimônios culturais, exposições artísticas além razão greco-romana e renascentista, promovendo críticas a práticas de arquivo ocidental, que ignorou saberes e poderes em modos de ser e lutar em expressões rítmicas, gestuais, iconográficas, performativas entre letra / voz / imagem / sons.

Além tudo que já foi dito e a dizer em relação a Stuart Hall, sua grande contribuição teórico cultural advém de seu voltar-se à diferença histórica desde análises de poderes simbólicos, de seus significados e (re)significações em dinâmicas culturais de lutas por viveres alternativos ou outros “sentirpensares”.8 Hall representa o voltar-se à materialidade histórica desde respaldo em reais alteridades, em conexões cosmos / corpo / cultura ou aproximações distintivas, simbolicamente expressas em direção a concretizados viveres em outros modos de ser, pensar, sentir e estar no mundo. Nessa direção, adensou estudos culturais, questionou limites do pós-colonial, sinalizou potenciais memórias e histórias em linguagens marginais, fluentes desde refazeres local / global, tornando-se voz crítica a rearranjos de poderes e saberes em meio a racismos plurais, incluindo e excluindo em seu perverso remake.

A opção por traduzir e publicar na revista Projeto História 56 – O Ocidente e o Resto: discurso e poder –, prende-se não só à ausência de tradução em línguas latinas desse estudo. Mas na intenção de divulgar, entre nossos estudantes, leitores, pesquisadores e interessados em estudos culturais, a trajetória política e intelectual de Stuart Hall em direção a falares e cantares pós-coloniais. Esse texto traduz como desconstruiu práticas de representação da supremacia ocidental na modernidade. Superioridade forjada ao marcar distância e menosprezo a modos de ser, viver, pensar dos que aqui estavam ou foram jogados, escravizados, colonizados. Mesmo enegrecidos, penalizados, resistem na reinvenção de suas culturas e valores, enquanto elites locais e globais usam seus saberes, energias, riquezas materiais e espirituais.

Notas

1 HALL, S. Raça, cultura e comunicações: olhando para trás e para frente dos Estudos Culturais. Revista Projeto História, vol. 31, São Paulo, 2005, p. 15.

2 HALL, S. Estudos Culturais e seu legado teórico. In: _____. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. SOVIK, L. (org.). Belo Horizonte: EDUFMG, 2003. p. 204.

3 ibid., p. 210.

4 HALL, op. cit., 2005, p. 18.

5 HALL, op. cit., 2003, p. 211.

6 HALL, S. Lo local y lo global: globalización y etnicidad. In: Stuart Hall Sin garantias: Trayectorias y problemáticas en studios culturales. RESTREPO, E; WASCH, C.; VICH, V. (eds.). Colombia / Equador: Envión editores, Universidad Andina Símon Bolivar, Instituto de Estudios Peruanos, Instituto de Estudios Sociales y Culturales, Pensar, 2010. p. 508.

7 ibid., p. 515.

8 Expressão de MIGNOLO, W. Habitar la frontera: sentir y pensar la descolonialidad (Antologia, 1999-2014). CARBALLO, F.; ROBLES, L.A. (eds.). Barcelona: CIDOB / UACJ, 2015.

Amailton Magno Azevedo

Maria Antonieta Antonacci


AZEVEDO, Amailton Magno; ANTONACCI, Maria Antonieta. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.56, 2016. Acessar publicação original [DR]

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