Alteridade: Territórios da diferença / Projeto História / 2016

Alteridade: Territórios da diferença / Projeto História / 2016

A alteridade é um conceito fundamental para se pensar a construção do mundo moderno, bem como as interações e embates sociais e políticos provocados pelo colonialismo e pela expansão do capitalismo. Resulta deste processo uma grande mobilidade de populações e de viajantes. Eles transformaram a crônica de suas andanças e dos encontros culturais vivenciados em um gênero literário – os relatos de viagem – com ampla circulação e um imenso impacto no pensamento filosófico e científico. Os fluxos migratórios atuais, provocados por questões econômicas e sociais, por guerras e perseguições, também integram esse quadro. Alteridade pressupõe a construção de imagens especulares, que deflagram diferenças, opõem as antípodas da civilização, definindo suas marcas e fronteiras. É um fenômeno que, ao mesmo tempo, constitui identidades: as que definem o mundo narrado e visitado e as que forjam uma autoimagem de sua cultura, revelando expectativas e separando o homem dito civilizado dos Outros, vistos como selvagens. A alteridade está, portanto, numa zona de fronteira móvel e incerta; ela se institui, em geral pela comparação, enquanto processo de definição do Outro, mas também do próprio Eu, ainda que pelo simplificador recurso da inversão. Está presente nos embates, nas experiências, nas representações e nas diversas performances de gênero, que vão muito além de uma suposta divisão binária entre homem e mulher apenas. É fator que coloca, inevitavelmente, os indivíduos e os grupos frente à diferença, nos mais variados âmbitos: sexual, étnico, nacional e de classe. Até mesmo a própria historicidade, que os separa irremediavelmente do passado, pode ser entendida por meio dessa chave. O objetivo deste dossiê é pensar a alteridade em uma dimensão ampla, isto é, em seu poder de constituir o mundo a partir da diferença, que tanto pode induzir ao combate de identidades entendidas como irredutíveis, quanto promover o diálogo entre diferenças percebidas como comunicáveis.

Tendo em vista as reflexões realizadas acima, o presente dossiê reúne uma série de artigos que visam discutir as relações entre alteridade e identidade, as separações ou aproximações entre o Eu e o Outro, ou ainda as possibilidades de mediações entre essas instâncias.

O primeiro artigo, realizado por Drª Carolina Depetris, do Centro Peninsular en Humanidades y Ciencias Sociales, de Mérida, Iucatã, da Universidad Nacional Autónoma de México, trata da produção de um conhecimento sobre o território, produzido por viajantes e conquistadores, tendo como estudo de caso a Patagônia argentina. Em seu trabalho, a professora Depetris, autora de inúmeros textos sobre as relações entre a literatura de viagem, o saber científico e a poética, se questiona sobre a produção de um conhecimento geográfico sobre uma região vista pelos europeus como um espaço remoto do globo, que alimentou duas grandes lendas, a dos patagões, supostos gigantes que teriam habitado a região, bem como a Cidade dos Césares, uma espécie de Eldorado meridional. Analisando relatos de viagem dos séculos XVIII e XIX, a autora observa com imensa acuidade como essas lendas foram reelaboradas e substituídas pela busca de uma verdade científica, que não obstante eram suportadas por estruturas retóricas e literárias que mesclavam ciência e ficção, conhecimento geográfico e mitos, na composição de saberes sobre o espaço.

Na sequência, o dossiê traz um texto que enfoca a realidade indígena americana, mas, mais do que isso, reflete sobre uma personagem cuja trajetória acumula diversas condições de subalternidade do ponto de vista social. Tratase de um artigo sobre Micaela Bastidas, uma mulher mestiça (filha de negro e índia), que vivia no Vice-Reino do Peru em fins do período colonial, uma sociedade patriarcal e cujo poder era exercido por colonizadores (brancos) espanhóis. Em Tensões interculturais e lutas anticoloniais na sociedade andina: autodiscurso e representações de Micaela Bastidas, Claudia Luna, professora da área de Literatura Latino-Americana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), traz à luz a participação ativa da personagem citada, nas rebeliões coloniais indígenas ocorridas entre 1780 e 1781, o que acarretou em sua condenação e execução de forma exemplar (o enforcamento e o esquartejamento). Evidencia a intrigante situação de Micaela Bastidas que, a despeito de declarar-se analfabeta e monolíngue, deixou cartas e proclamas por meio das quais posicionou-se frente às rebeliões andinas. Sua memória, construída por meio de documentos fílmicos e literários, é também objeto desta análise. A perspectiva da autora, entretanto, se diferencia daquela que, a despeito de pretender reler e rememorar a personagem como heroína, acabava por enquadrá-la tradicionalmente em funções secundárias, não protagônicas, como a de “mulher e acompanhante” de Tupac Amaru, geralmente reconhecido como principal líder das rebeliões. Ao contrário, Claudia Luna destaca as atuações desta mulher, mestiça, supostamente analfabeta e monolíngue, mas que, paradoxalmente, agiu de maneira imperativa, recebendo, por isso, pena capital.

Deixamos o espaço hispano-americano para adentrar a América Portuguesa, mas permanecendo, ainda, no período colonial e na temática indígena. Esta porção do continente é representada em artigo que trata das relações de alteridade nas interações entre colonizadores e indígenas. No artigo A luta pelo reconhecimento na América Portuguesa: relações entre indígenas e colonizadores nas Minas Setecentistas, Fernando Gaudereto Lamas, da Universidade Federal de Juiz de Fora, aborda as relações entre colonizadores e indígenas na Capitania de Minas Gerais entre os séculos XVII e XIX a partir do conceito de alteridade, o que lhe permite pensar como se constroem os princípios da diferença entre índios e brancos, e como essa diferença se reflete numa condição subalterna do indígena, o que o autor chama de uma alteridade negativa, o reconhecimento da diferença do indígena situado no campo da negatividade. A alteridade indígena é reconhecida mas para acantoná-lo no lugar da inferioridade. O autor traz uma novidade aos estudos coloniais ao incorporar o conceito de alteridade, quase nunca utilizado pela bibliografia especializada, bem como ao trazer a teórica Judith Butler, aparentemente restrita a temas contemporâneos, para pensar as relações entre conquistadores e conquistados na América portuguesa.

No mesmo período, o artigo de Alberto Luiz Schneider, do departamento de História da PUC-SP, intitulado Os paulistas e os outros: fama e infâmia na representação dos moradores da capitania de São Paulo nas letras dos séculos XVII e XVIII, dá a conhecer as múltiplas dimensões de alteridade entre os paulistas a partir da legenda negra, que associava os estes personagens à rebeldia, à mestiçagem, logo ao “sangue infecto”. Esta era uma imagem produzida por jesuítas e intelectuais, que identificavam nas gentes de São Paulo – ou da Rochela paulista, fazendo referência a La Rochelle, o bastião protestante da França – colonos ingovernáveis, entendidos até mesmo como um grupo étnico distinto. O autor reconstrói em seu texto, com erudição e sensibilidade analítica, alguns aspectos da formulação dessa imagem dos paulistas fazendo também uma leitura da reconstrução dessa legenda negra realizada por intelectuais como Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques, criando o mito do paulista brioso, valente e arrojado, o herói bandeirante, cujas estátuas manchadas de tinta vermelha são de incômoda atualidade.

Na sequência, entramos no território paulistano, para conhecer sobre a presença de negros e negras no centro da cidade, no último quartel do século XIX e início do XX. O artigo de Fabia Barbosa Ribeiro, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), intitula-se Vivências negras na cidade de São Paulo: entre territórios de exclusão e sociabilidade. Baseado em fontes orais, aborda as sociabilidades negras em torno dos homens e mulheres da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. As entrevistas realizadas pela autora dão conta de mostrar como ocorriam as circulações pelo espaço, as atrações frequentadas e os preconceitos enfrentados pelos negras e negras no centro da cidade no período mencionado. Ademais, Fabia Barbosa deslinda o tema da permanência de africanos e afrodescendentes no centro da cidade, criando uma ligação entre a virada do século XIX para o XX – quando foi marcante a presença de ex-escravos que sofriam com as políticas de urbanização e as discriminações amparadas na visão do determinismo biológico – e a entrada no XXI, momento de retomada de fluxo da imigração de africanos e haitianos. Ontem, como hoje, tais personagens foram / são olhados como Outros, como estranhos e subalternos, o que leva a autora a considerar que estão em diálogo permanente com a situação da alteridade.

As questões raciais no transcurso do século XIX para o XX também são foco do artigo de Maria das Graças de Andrade Leal, professora da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), sobre o intelectual afro-baiano Manuel Querino (1851-1923). A autora se detém sobre a vida e a obra deste escritor, definindo os principais temas e fases de sua produção: uma primeira, que se estende até 1916, na qual aborda em textos de diversos gêneros o ambiente artístico (incluindo as artes populares, manuais), no período republicano, enfocando principalmente sujeitos excluídos, negros e mestiços, sobre os quais pesaram preconceitos e discriminações; a segunda fase, que marca a etapa final de sua vida, é caracterizada pela produção de trabalhos voltados à recuperação de práticas e tradições africanas, o que confronta as perspectivas deterministas coetâneas, que alegavam inferioridade dos afrodescendentes. Outro ponto de destaque no artigo são as apreciações de Querino sobre a República, guinada política que não teria trazido, segundo o intelectual, grandes mudanças para as camadas populares. Além disso, o artigo também coloca em questão algumas críticas feitas ao autor estudado, baseadas na ideia de que ele não havia produzido seus textos dentro de normas profissionais. Finalmente, destaca a sua produção memorialística e reflete sobre como ela significou o resguardo de noções e aspectos do patrimônio e da cultura negra da Bahia.

Do universo intelectual e artístico da Bahia na primeira metade do século XX, passamos a uma discussão sobre o mesmo tema – os intelectuais e as artes – mas no México nos anos de 1920-30. O enfoque recai sobre um dos mais intensos processos verificados em termos de mudanças culturais do período: a emergência das vanguardas artísticas em território latino-americano. Neste contexto foram deflagradas as necessidades de afirmação, no terreno artístico, das identidades próprias do continente, sem que se ignorasse as filiações com as correntes estéticas europeias, movimento que implicou uma complexa rearticulação – com suas devidas reinvenções – das tradicionais relações entre “as margens e o centro”. O artigo de Romilda Costa Motta, professora do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp), intitulado Vanguardas estéticas mexicanas: embates e polêmicas envolvendo o binômio identidade e alteridade fornece, em sua primeira parte, um bom panorama da arte de vanguarda na América Latina, situando-a em seus contextos social, político e cultural de produção. Localiza o leitor na diversificada seara de textos, manifestos e obras artísticas do período, para chegar ao cerne de seu artigo com uma análise instigante do debate entre dois grupos vanguardistas mexicanos nos anos 1920-30: de um lado os muralistas, e de outro, os artistas do círculo de Ulises, deslocados para um outro grupo chamado de Contemporáneos. O que dividia estas duas tendências era, basicamente, a adesão ao nacional e às camadas populares, pelo primeiro (os muralistas), e uma conexão com o cosmopolitismo pelo segundo (Ulises / Contemporáneos). As tensões resvalaram em ofensas pessoais, que ganharam repercussão pública, uma vez que expressas em obras (murais e poemas) que atingiram grandes alcances. Dentre os aspectos utilizados como meios de ataque estavam os julgamentos de membros do primeiro grupo sobre as orientações sexuais de artistas pertencentes ao segundo grupo. Estes enunciados revelam paradoxos curiosos, uma vez que mostram como certos setores das vanguardas artísticas reiteraram padrões morais tradicionais. Alteridade e identidade, aqui, são termos utilizados para localizar não só as complexas relações entre diferentes continentes (Europa / América), mas também as relações de classe e gênero. Antonieta Rivas Mercado – mecenas cultural no México no início do século XX -, Digo Rivera – um dos mais importantes muralistas mexicanos -, e Salvador Novo – poeta do grupo Ulises / Contemporáneos – são colocados em destaque para mostrar que as relações nas artes envolviam dois campos – o público e o privado -, em primeira medida colocados como opostos, mas cujas fronteiras, na verdade revelaram-se bastante fluidas e porosas.

Encerrando o dossiê, Paulo Ricardo Kralik Angelini, professor da Faculdade de Letras da PUC-RS, em artigo intitulado A doença do Brasil: imigração, estereotipização e transgressão no paraíso tropical, traz uma discussão de extrema atualidade. Trata-se da questão da imigração, especificamente a imigração brasileira em Portugal, país com o qual supostamente partilhamos cultura e língua comuns. Por meio de uma análise da literatura contemporânea portuguesa, o autor examina a forma como esses romances ainda apresentam o Brasil e os brasileiros por meio da chave do exotismo, do paraíso tropical, da sensualidade e da sexualidade exuberante. Utilizando-se da crítica pós-colonial, Angelini demonstra como os estereótipos organizam uma leitura sobre o imigrante brasileiro, ou sobre a paisagem brasileira, identificando neles uma ameaça à identidade portuguesa. Esta ameaça se dá sobretudo pela disruptura da mulher sensual e pelo espaço idealizado de fruição e evasão, elementos interpretados pelo autor como uma reedição de antigos clichês e incompreensões. Ao lado da aludida sensualidade, essas representações aparecem nos textos como se fossem uma “doença” do Brasil, o que demonstra uma relação cultural marcada ao mesmo tempo pela atração e repulsa.

Esta edição apresenta ainda três artigos livres. Jussara Parada Amed, pós-doutoranda do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), em artigo intitulado Júlia Lopes de Almeida, um novo ambiente para as mulheres: descobrir-se escritora no Brasil, nos traz a trajetória desta escritora de finais do século XIX, que participou da criação da Academia Brasileira de Letras, fazendo referência ainda ao ambiente literário feminino desta época. Léa Carrer Iamashita, do departamento de História da UnB, no artigo Saber médico no Brasil: Noções de degeneração e eugenia no debate educacional da década de 1920, analisa o conhecimento médico e o papel da eugenia no projeto republicano de educação e modernização do país. Finalmente, Carlos Eduardo Millen Grosso, doutor em História pela UFSC, em seu texto intitulado Fabricação da verdade em indagações policiais de defloramento, descreve os modos de produção de justiça para o crime de defloramento em Porto Alegre no final do século XIX e início do século XX, seguindo as etapas de produção da indagação policial para averiguação do ato, demonstrando os recursos utilizados pelos profissionais do sistema de justiça criminal, especialmente policiais, médicos legistas e delegados de polícia.

Os estudos apresentados mostram a ampla abrangência e diversidade temática que o conceito de alteridade pode abarcar. Acreditamos, assim, que este dossiê contribui para as reflexões críticas sobre o tema. Desejamos a todos uma ótima leitura.

Amilcar Torrão Filho (PUC-SP)

Stella Maris Scatena Franco (USP)


TORRÃO FILHO, Amilcar; FRANCO, Stella Maris Scatena. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.57, 2016. Acessar publicação original [DR]

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